30 de março de 2007

A natureza tal como ela é

Todo cristianismo que se fundamenta sobre uma dicotomia - algum tipo de conceito platônico - é evidente que não tem resposta para o problema da natureza, e devemos dizer, com lágrimas nos olhos, que muito do cristianismo ortodoxo e evangélico está enraizado num conceito platônico, cujo interesse está no "supra-hitórico", nas coisas celestiais - somente na "salvação da alma" e a glória do céu. Nesse conceito platônico, ainda que se use a ortodoxia e terminologia evangélicas, há pouco ou nenhum interesse nos prazeres do corpo e no uso racional do intelecto.

Nesse tipo de cristianismo manifesta-se uma forte tendência em não ver na natureza nada mais que a clássica prova de demontrarmos a existência de Deus. "Olhe a natureza", dizem, "olhe os Alpes. Só um ser como Deus poderia tê-los feito". E isso é tudo. A natureza tem sido relegada a simples prova acadêmica da existência do Criador, com pouco valor em si mesma. Os cristão que assim pensam não têm o menor interesse na natureza tal como ela é. Usam-na como uma arma apologética, em lugar de pensar e falar do seu valor intrínseco e real.

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Francis Schaeffer em
A poluição e a morte do homem
página 45

29 de março de 2007

Desintoxicação evangélica

Segundo Schaeffer, em Poluição e a Morte do Homem, as palavras possuem duas características básicas que usamos para interpretá-las – definição e conotação.

A conotação continua seu curso, não importa o que se faça com a definição. O homem moderno confunde e procura ignorar a definição das palavras religiosas, porém, de qualquer modo, gosta de tirar proveito da força de sua motivação e conotação.
É muito difícil nos dias de hoje falar sobre a boa-nova do Reino dentro de uma igreja porque os termos utilizados nos evangelhos e nas cartas estão imbuídos de nova e lastimável definição. As teologias modernas foram capazes de distorcer completamente palavras e conceitos ensinados por Jesus e seus primeiros discípulos, tirando, no entanto, grande proveito de sua conotação.

Textos como tudo posso naquele que me fortalece, recebereis poder, batizados com o espírito, faça prova de mim, maldição, bênção, santidade... todos têm em nossas igrejas uma conotação cristã, santa, bíblica, mas todos perderam absolutamente sua definição original.

Para que possamos entender o que está escrito, precisamos de um profundo trabalho de desintoxicação evangélica. Caso contrário, por mais que a conotação permaneça cristã aos ouvidos mais inocentes, a definição será cada vez mais pagã.

21 de março de 2007

Acerca do chamado

Queria muito ter um 'chamado', daqueles que a gente ouve em testemunhos nos encontros de missões. É o sonho da minha vida. Ter meu destino traçado. Poder lutar por um caminho revelado em detalhes.

Mas se Deus um dia lançou um facho de luz sobre mim, ou sussurrou no meu ouvido, iluminando o caminho, revelando o próximo passo, eu jamais vi, jamais ouvi.

Tudo que tenho são pensamentos, desejos, intenções, sensações. Sempre com uma ponta de dúvida, de receio.

Ainda assim me resta o consolo de que toda a boa dádiva provém do pai das luzes. De modo que se meus pensamentos, desejos, sonhos, impressões, sensações, são motivados por um desejo sincero de servir em amor, então eles todos provém de Deus. Ainda que eu tenha pensamentos conflitantes, posso confiar em um Deus que está comigo independente de minha escolha, pois foi ele que me deu a capacidade de sentir, pensar, planejar e escolher.

Isso, obviamente, não elimina a necessidade da oração. Mas elimina a necessidade da resposta clara, mística, mágica. Até porque, se Deus nos desse sempre esse tipo de resposta, estaria eliminada a necessidade da fé. E sem fé, todo mundo sabe, é impossível agradar a Deus.

Aí fica claro, como disse Jacques Ellul, que a fé reside na dúvida. E o que agrada a Deus, no fim das contas, são as escolhas inseguras e titubeantes que me levam a agarrar nEle em cada passo.

19 de março de 2007

O carnaval do crente

O assunto da aula era o carnaval. A disciplina, Cultura Brasileira. A turma debatia sobre os efeitos benéficos e perniciosos da grande festa popular nacional na sociedade. Eu me lembrei daquele sambinha meio bossa do Tom e pensei quase sem querer numa paródia evangélica para a canção. Ficaria assim:

A felicidade do crente parece
A grande ilusão dominical
A gente trabalha a semana inteira
Por um momento de sonho
Pra viver a fantasia
De pastor, diácono ou obreira
E tudo se acabar segunda-feira


Olha só o próprio Tom cantando com a Banda Nova (voz de Danilo Caymmi) em Montreal, 1986 (obviamente a versão original, e não a minha):

A felicidade

Tristeza não tem fim
Felicidade sim...

A felicidade é como a pluma
Que o vento vai levando pelo ar
Voa tão leve
Mas tem a vida breve
Precisa que haja vento sem parar

A felicidade do pobre parece
A grande ilusão do carnaval
A gente trabalha o ano inteiro
Por um momento de sonho
Pra fazer a fantasia
De rei, ou de pirata, ou jardineira
E tudo se acabar na quarta-feira

Tristeza não tem fim
Felicidade sim...

A felicidade é como a gota
De orvalho numa pétala de flor
Brilha tranquila
Depois de leve oscila
E cai como uma lágrima de amor

A minha felicidade está sonhando
Nos olhos de minha namorada
É como esta noite
Passando, passando
Em busca da madrugada
Falem baixo por favor...

Pra que ela acorde alegre como o dia
Oferecendo beijos de amor

Tristeza não tem fimFelicidade sim...

16 de março de 2007

As autoridades e minha submissão

O que a mensagem de Romanos 13:1-7 significa para nós dentro do nosso contexto e realidade.


“Pois os governantes não devem ser temidos, a não ser pelos que praticam o mal. Você quer se ver livre do medo da autoridade? Pratique o bem, e ela o enaltecerá.” Rm 13:3


Será que Paulo teria escrito esse texto se conhecesse a realidade do nazismo? Ora, Paulo conhecia os desmandos e injustiças de uma autoridade civil. Ele mesmo já havia sido vítima de prisões e açoites, mesmo ciente de estar praticando o bem. Alguns anos depois de escrever esse texto, ele foi feito vítima fatal desse governo.

Parece que ao escrever esse trecho, Paulo refere-se à autoridade como uma necessidade diante da nossa situação atual. Uma sociedade caída e pervertida carece de mecanismos de ordem para manter-se viva. Os governos instituídos colaboram para esse ambiente ordenado, ainda que de forma imperfeita. De fato a ordem foi mantida muitas vezes pela espada, de forma cruel e injusta. Mas é sob essa ordem que nos mantivemos até aqui. Ao estarmos submissos às ‘autoridades governamentais’, colaboramos de alguma forma à essa ordem necessária. Mas essa submissão não é incondicional.

No versículo 3 encontramos a chave da argumentação - ‘pratique o bem’. Paulo supõe que a autoridade seja serva de Deus para o bem e, sendo assim, devemos ser colaboradores dela. Mas no capítulo anterior (12:18), Paulo admoesta os Romanos a fazerem ‘todo o possível para viverem em paz uns com os outros’. Existem situações em que o submeter-se ao Estado pode ser exatamente o contrário de ‘fazer o bem’, e aí, talvez, seja impossível manter a paz. É evidente que diante dessas circunstâncias, nossa prioridade é fazer o bem.

Na nossa atual situação política, podemos, inclusive, colaborar para que o Estado atue por nós, a favor do bem. Somos uma sociedade democrática, e temos parte da responsabilidade pelo Estado que nos governa. Sabemos que cabe ao Estado criar condições de vida, educação, saúde, segurança e trabalho ao cidadão. Por isso, como cristãos, não podemos nos omitir politicamente, muito menos cooptar com a politicagem que permeia todos os setores da nossa sociedade. Temos que participar ativamente dos processos políticos que temos à disposição, não para ‘garantir nossa parte’, como vergonhosamente faz a bancada ‘evangélica’ no congresso, mas para atuar a favor do bem maior, pela sociedade toda, independente de fé.

Para isso, não precisamos ser governados por evangélicos, nem erguer desesperadamente a bandeira contra casamentos homossexuais ou aborto. Devemos eleger cidadãos compromissados com a justiça, a distribuição de renda, a educação, a saúde, o meio-ambiente, independente da fé que apregoem. E se tivermos cristãos concorrendo a cargos públicos, a última coisa que deve nos interessar é a profissão de fé do sujeito. O envolvimento da Igreja com o Estado se dá no mesmo âmbito do envolvimento da Igreja com as demais esferas da sociedade. Ela é sal, que se dissolve e dá sabor. O sal, quando dá sabor, desaparece. Todo mundo sabe que está lá, mas ele não precisa ser anunciado.

Além disso, o envolvimento direto do cristão com o estado, a possibilidade de o cristão “exercer ofícios civis” (cf. confissão de fé de Augsburgo), parece não ter sido questionada nem por Paulo, nem Pedro, nem por Cristo. Afinal, o centurião Cornélio jamais foi admoestado a deixar seu cargo. Pedro, no entanto, concluiu que Deus aceita a “todo o que o teme e faz o que é justo” (At 10:35). Da mesma forma o carcereiro de Filipos foi aceito e batizado por Paulo sem mais controvérsias. E Jesus não achou em Jerusalém ninguém com mais fé que certo centurião. Todos debaixo do Estado e sujeitos às ordens de praticar ações repressivas contra cidadão comuns.
Ora, que oportunidade maior teria o Estado de praticar o bem, do que tendo entre seus servidores, cristãos dedicados à tal pratica? Temos sim que nos levantar contra as autoridades que ‘praticam o mal’, que governam para si, que enchem os bolsos às custas da saúde e educação de seus eleitores, incluindo os que se dizem "irmãos em Cristo". E podemos nos envolver com o Estado e participar ativamente dele como indivíduos, se fizermos de nossa função, seja no Estado ou fora dele, instrumento de justiça e prática do bem, “não por causa da possibilidade de uma punição, mas também por uma questão de consciência”.

13 de março de 2007

O Grande Inquisidor [parte VIII]

DE FIODOR DOSTOIEVSKI, EM OS IRMÃOS KARAMÁZOVI [final]

Nós tornamos todos os homens felizes e as revoltas e os massacres inseparáveis de tua liberdade cessarão. Oh! Nós os persuadiremos de que não serão verdadeiramente livres senão abdicando de sua liberdade em nosso favor. Pois bem, diremos a verdade ou mentiremos? Convencer-se-ão eles próprios de que dizemos a verdade, porque se lembrarão daquela servidão e daquela perturbação em que os mergulhou a tua liberdade. A independência, o livre-pensamento, a ciência tê-los-ão desviado num tal labirinto, posto em presença de tais prodígios, de tais enigmas, que uns, rebeldes furiosos, destruir-se-ão a si mesmos, e os outros, rebeldes, porém fracos, multidão covarde e miserável, se arrastarão a nossos pés, gritando: 'Sim, tínheis razão, somente vós possuíeis seu segredo e nós voltamos a vós; salvai-nos de nós mesmos!' Sem dúvida, recebendo de nós os pães, verão bem que tomamos os deles, ganhos com seu próprio trabalho, para distribuí-los, sem nenhum milagre; verão bem que não mudamos as pedras em pão; mas o que lhes causará mais prazer que o próprio pão será recebê-lo de nossas mãos! Porque se lembrarão de que outrora o próprio pão, fruto de seu trabalho, mudava-se em pedra em suas mãos, ao passo que, quando voltaram a nós, as pedras tornaram-se pão. Compreenderão o valor da submissão definitiva. E, enquanto os homens não a tiverem compreendido, serão infelizes. Quem mais contribui para essa incompreensão, dize-me? Quem dividiu o rebanho e dispersou-o por estradas desconhecidas? Mas o rebanho se recomporá, voltará a obedecer e será isso para todo o sempre. Então, dar-lhe-emos uma felicidade mansa e humilde, uma felicidade adaptada a criaturas fracas como eles. Nós os persuadiremos, por fim, a não se orgulharem, porque fôste tu, elevando-os, quem os ensinou a serem orgulhosos; provar-lhes-emos que são débeis, que são crianças dignas de dó, mas que a felicidade infantil é a mais deleitável. Tornar-se-ão tímidos, não nos perderão de vista e se comprimirão contra nós com medo, como uma tenra ninhada sob a asa materna. Sentirão uma surpresa medrosa e terão orgulho de toda aquela energia e inteligência que nos permitiram domar a multidão inumerável dos rebeldes. Nossa cólera fá-los-á tremerem, a timidez dominá-los-á, seus olhos tornar-se-ão lacrimosos como os das crianças e das mulheres; mas, a um sinal nosso, passarão bem facilmente ao riso e à alegria, à alegria radiosa das crianças. Decerto, sujeitá-los-emos ao trabalho, mas nas horas de lazer organizaremos sua vida como um brinquedo de criança, com cantos, coros, danças inocentes. Oh! permitiremos mesmo que pequem — são fracos —, e nos amarão por causa disso como crianças. Dir-lhes-emos que todo pecado será redimido, se fôr cometido com nossa permissão; por amor é que lhes permitiremos que pequem e assumiremos o castigo de tais pecados. Amar-nos-ão como a benfeitores que tomam a si a carga de seus pecados perante Deus. Não terão segredo algum para conosco. De acordo com seu grau de obediência, permitir-lhes-emos ou proibir-lhes-emos que vivam com suas mulheres e suas amantes, que tenham filhos ou não tenham, e eles nos escutarão com alegria. Submeter-nos-ão os segredos mais penosos de sua consciência, resolveremos todos os casos e eles aceitarão nossa decisão com alegria, porque ela lhes poupará a grave preocupação de resolverem eles mesmos livremente. E todos serão felizes, milhões de criaturas, exceto uns 100 000, seus diretores, exceto nós, os depositários do segredo. Os felizes contar-se-ão por bilhões e haverá 100 000 mártires encarregados do conhecimento maldito do bem e do mal.

Morrerão tranqüilamente, extinguir-se-ão mansamente em teu nome e no outro mundo nada encontrarão senão a morte. Mas nós guardaremos o segredo; nós os ninaremos, para sua felicidade, com uma recompensa eterna no céu. Porque, se houvesse outra vida, não seria decerto para criaturas como eles. Profetiza-se que voltarás para vencer de novo, cercado de teus eleitos, poderosos e orgulhosos; diremos que eles só se salvaram a si mesmos, ao passo que nós salvamos o mundo inteiro. Dizem que a fornicadora, montada na besta e tendo nas mãos a taça do mistério, será desonrada, que os fracos se revoltarão de novo, rasgarão sua púrpura e desnudarão seu corpo 'impuro'. Eu me levantarei então e te mostrarei os bilhões de felizes que não conheceram o pecado. E nós, que nos sobrecarregamos com seus pecados, para sua felicidade, nós nos ergueremos diante de ti, dizendo: 'Não te tememos; também eu estive no deserto, vivi de gafanhotos e de raízes; também eu abençoei a liberdade com que gratificaste os homens e me preparava para figurar entre teus eleitos, os poderosos e os fortes, ardendo por completar-lhes o número. Mas dominei-me e não quis servir uma causa insensata. Voltei a juntar-me àqueles que corrigiram tua obra. Abandonei os orgulhosos, voltei aos humildes, para fazer a felicidade deles. O que te digo se realizará e nosso império se edificará. Repito-te, amanhã, a um sinal meu, verás aquele rebanho dócil trazer carvões acesos para a fogueira a que subirás, por teres vindo estorvar nossa obra. Porque, se alguém mereceu mais que todos a fogueira, fôste tu. Amanhã, queimar-te-ei. Dixi."*

* Tenho dito. Expressão latina empregada antigamente no final dos discursos.

Veja também:
O Grande Inquisidor - parte 1
O Grande Inquisidor - parte 2
O Grande Inquisidor - parte 3
O Grande Inquisidor - parte 4
O Grande Inquisidor - parte 5
O Grande Inquisidor - parte 6
O Grande Inquisidor - parte 7
O Grande Inquisidor - parte 8

O Grande Inquisidor [parte VII]

DE FIODOR DOSTOIEVSKI, EM OS IRMÃOS KARAMÁZOVI [parte VII]

Mas, lembra-te, não eram eles senão alguns milhares e quase deuses, e o resto? É falta deles, dos outros, dos fracos humanos, se não puderam suportar o que suportam os fortes? É culpada a alma fraca por não poder conter dons tão terríveis? Vieste na verdade apenas para os eleitos? Então, é um mistério, incompreensível para nós, e teremos o direito de pregá-lo aos homens, de ensinar que não é a livre decisão dos corações nem o amor que importam, mas o mistério, ao qual devem eles submeter-se cegamente, mesmo malgrado sua consciência. É o que temos feito. Corrigimos tua obra baseando-a no milagre, no mistério, na autoridade. E os homens regozijaram-se por ser de novo levados como um rebanho e libertados daquele dom funesto que lhes causava tais tormentos. Tínhamos razão de agir assim, dize-mo? Não era amar a humanidade compreender sua fraqueza, aliviar seu fardo com amor, tolerar mesmo o pecado à sua fraca natureza, contanto que fosse com nossa permissão? Por que então vir entravar nossa obra? Por que guardas tu o silêncio, fixando-me com teu olhar penetrante e terno? É preferível que te zangues, não quero o teu amor, porque eu mesmo não te amo. Por que haveria eu de dissimular isto? Sei a quem falo, tu conheces o que tenho a dizer-te, vejo-o nos teus olhos. Cabe a mim esconder-te nosso segredo? Talvez o queiras ouvir de minha boca. Ei-lo: não estamos contigo, mas com ele, desde muito tempo já. Há justamente oito séculos que recebemos dele esse derradeiro dom que tu repeliste com indignação, quando ele te mostrava todos os reinos da terra; aceitamos Roma e o gládio de César e declaramo-nos os únicos reis da terra, se bem que até agora não tenhamos tido ainda tempo de completar nossa obra. Alias de quem a culpa? Oh! o negócio está apenas começado, bem longe de ser completado, e a terra terá de sofrer ainda muito, mas atingiremos nosso fim, seremos césares e então pensaremos na felicidade universal.
Entretanto, terias podido então tomar o gládio de César. Por que repeliste esse derradeiro dom? Seguindo esse terceiro conselho do poderoso espírito, realizavas tudo quanto os homens procuram na terra: um senhor diante de quem inclinar-se, um guarda de sua consciência e o meio de se unirem finalmente na concórdia em uma comunidade de formigueiro, porque a necessidade da união universal é o terceiro e derradeiro tormento da raça humana. A humanidade teve sempre tendência no seu conjunto para organizar-se sobre uma base universal. Houve grandes povos de história gloriosa, mas, à medida que se elevaram, sofreram mais, experimentando mais fortemente que os outros a necessidade da união universal. Os grandes conquistadores, os Tamerlão e Gengis-Cã, que percorreram a terra como um furacão, encarnavam, também eles, sem ter disso consciência, essa aspiração dos povos à unidade. Aceitando a púrpura de César, terias fundado o império universal e dado a paz ao mundo. Com efeito, quem está qualificado para dominar os homens senão aqueles que lhes dominam a consciência e dispõem de seu pão? Tomamos o gládio de César e, assim fazendo, nós te abandonamos para segui-lo. Oh! Decorrerão ainda séculos de licença intelectual, de vã ciência e de antropofagia, porque será nisto que eles acabarão, depois de ter edificado sua torre de Babel sem nós. Mas então a besta virá para nós arrastando-se, lamberá nossos pés, regá-los-á com lágrimas de sangue. E nós montaremos nela, ergueremos no ar uma taça em que estará gravada a palavra: 'Mistério'. Então somente a paz e a felicidade reinarão sobre os homens. Tu te orgulhas de teus eleitos, mas não passam de um escol, ao passo que nós daremos o repouso a todos. Aliás, entre esses fortes destinados a ser eleitos, quantos se cansaram por fim de esperar-te, levaram e levarão ainda a outras partes as forças de seu espírito e o ardor de seu coração, quantos acabarão por insurgir-se contra ti em nome da liberdade! Mas serás tu que lha terás dado.

[continua]

Veja também:
O Grande Inquisidor - parte 1
O Grande Inquisidor - parte 2
O Grande Inquisidor - parte 3
O Grande Inquisidor - parte 4
O Grande Inquisidor - parte 5
O Grande Inquisidor - parte 6
O Grande Inquisidor - parte 7
O Grande Inquisidor - parte 8

10 de março de 2007

O Grande Inquisidor [parte VI]

DE FIODOR DOSTOIEVSKI, EM OS IRMÃOS KARAMÁZOVI [parte VI]

Há três forças, as únicas que possam subjugar para sempre a consciência desses fracos revoltados, a saber: o milagre, o mistério, a autoridade! Tu rejeitaste todas as três, dando assim um exemplo. O espírito terrível e profundo havia-te transportado ao pináculo e havia-te dito: 'Queres saber se és o filho de Deus? Lança-te daqui abaixo, porque está escrito que os anjos o sustentarão e o carregarão, e ele não sofrerá nenhum ferimento. Saberás então se és o filho de Deus e provarás assim tua fé em teu pai'. Mas repeliste esta proposta, não te precipitaste. Mostraste então uma altivez sublime, divina, mas os homens, raça fraca e revoltada, não são deuses! Sabias que, dando um passo, um gesto para te precipitares, terias tentado o Senhor e perdido a fé nele, ter-te-ias rebentado sobre aquela terra que vinhas salvar, para grande alegria do tentador. Mas há muitos como tu? Podes admitir um instante que os homens teriam a força de suportar semelhante tentação? É próprio da natureza humana repelir o milagre e, nos momentos graves da vida, diante das questões capitais e dolorosas, agarrar-se à livre decisão do coração? Oh! Tu sabias que tua firmeza seria relatada nas Escrituras, atravessaria as idades e iria até as regiões mais longínquas, e esperavas que, seguindo teu exemplo, o homem se contentaria com Deus, sem recorrer ao milagre. Mas ignoravas que o homem rejeita Deus ao mesmo tempo que o milagre, porque é sobretudo o milagre que ele procura. E, como não saberia passar sem ele, forja novos, os seus próprios, inclinar-se-á diante dos prodígios de um mágico, dos sortilégios de uma feiticeira, ainda que seja um revoltado, um herege, um ímpio confesso. Tu não desceste da cruz, quando zombavam de ti e gritavam-te, por derrisão: 'Desce da cruz e creremos em ti'. Não o fizeste, porque de novo não quiseste sujeitar o homem por meio de um milagre. Desejavas uma fé livre e não inspirada pelo maravilhoso. Tinhas necessidade de um livre amor e não dos transportes servis dum escravo aterrorizado. Aí ainda, fazias idéia demasiado alta dos homens, porque são escravos, se bem que tenham sido criados rebeldes. Vê e julga, após quinze séculos decorridos: quem elevaste até a ti? Juro-o, o homem é mais fraco e mais vil do que o pensavas. Pode ele, pode ele realizar o mesmo que tu? A grande estima que tinhas por ele fez mal à compaixão. Exigiste demasiado dele. Tu, no entanto, que o amavas mais do que a ti mesmo! Estimando-o menos, ter-lhe-ias imposto um fardo mais leve, mas em relação com teu amor. Ele é fraco e covarde. Que importa que no presente se insurja por toda parte contra nossa autoridade e se mostre orgulhoso de sua revolta? É o orgulho de jovens escolares que se amotinaram em aula e expulsaram seu mestre. Mas a alegria dos garotos terá fim e lhes custará caro. Derrubarão os templos e inundarão a terra de sangue. Mas perceberão por fim, essas crianças estúpidas, que são apenas fracos revoltosos, incapazes de revoltar-se por muito tempo. Derramarão lágrimas bobas e compreenderão que o Criador, fazendo-os rebeldes, quis zombar deles, certamente. Gritarão contra ele com desespero e essa blasfêmia torná-los-á ainda mais infelizes, porque a natureza humana não tolera a blasfêmia e acaba sempre por tirar vingança dela. Assim, a inquietação, a perturbação, a desgraça, tal a partilha dos homens, após os sofrimentos que suportaste pela liberdade deles. Teu eminente profeta diz, na sua visão simbólica, que viu todos os participantes da primeira ressurreição e que havia 12 000 para cada tribo. Para serem tão numerosos, deveriam ser mais que homens, quase deuses. Suportaram tua cruz e a existência no deserto, nutrindo-se de gafanhotos e de raízes; decerto, podes orgulhar-te desses filhos da liberdade, do livre amor, de seu sublime sacrifício em teu nome.

[continua]

Veja também:
O Grande Inquisidor - parte 1
O Grande Inquisidor - parte 2
O Grande Inquisidor - parte 3
O Grande Inquisidor - parte 4
O Grande Inquisidor - parte 5
O Grande Inquisidor - parte 6
O Grande Inquisidor - parte 7
O Grande Inquisidor - parte 8

8 de março de 2007

Síndrome de perseguição

Recentemente, por conta de bispos e deputados que foram pegos ‘com a mão na massa’, voltou à tona, com a corda toda, mais uma síndrome evangélica da qual já fui vítima.

A desgraça é que nós, evangélicos, precisamos muito de uma massagenzinha no ego, para compensar nossa total irrelevância quanto à vivência do Evangelho relacional e comprometedor anunciado por Jesus. E nada melhor do que nos sentirmos perseguidos. Aí temos a agradável sensação de estarmos arrasando, ‘detonando as portas do inferno’, e esse é o glorioso motivo de tamanha perseguição sobre nós.

Por isso os pastores que gostam de amealhar multidões usam tanto esse artifício de colocar o diabo em tudo quanto é lugar. Se não é a Globo, é a Disney ou o senado (proteger a "bancada evangélica" e os bispos da Renascer é o fim da picada).

O fato é que quanto mais diabo esses caras puserem na nossa frente, mais distantes estamos de combater o verdadeiro bom combate. Ficaremos beligerando contra "instituições do mal", enquanto caminhamos diligentemente pela estrada, passando por cima dos corpos caídos, feridos, machucados, carentes de amor, graça e relacionamento puro e desinteressado.

O mal não é institucionalizado (e a igreja também não é). O mal se encontra nos cantos escondidos dos nossos corações "evangélicos". É esse o mal que devemos combater. E a única forma eficaz de combater esse mal, é praticando o bem, através do amor, pela graça de Deus.

O resto é conversa pra boi dormir. Ou melhor. O resto é manipulação de massas.

O Grande Inquisidor [parte V]

DE FIODOR DOSTOIEVSKI, EM OS IRMÃOS KARAMÁZOVI [parte V]

Consentindo no milagre dos pães, terias acalmado a eterna inquietação da humanidade — indivíduos e coletividade —, isto é: 'Diante de quem se inclinar?' Porque não há, para o homem que fica livre, preocupação mais constante e mais ardente do que procurar um ser diante do qual se inclinar. Mas só quer ele inclinar-se diante de uma força incontestada, que todos os humanos respeitem por consenso universal. Porque essas pobres criaturas atormentar-se-ão em procurar um culto que reúna não somente alguns fiéis, mas no qual todos juntos comunguem, unidos pela mesma fé. Porque essa necessidade da comunidade na adoção é o principal tormento de cada indivíduo e da humanidade inteira, desde o começo dos séculos. É para realizar esse sonho que se têm os homens exterminado pelo gládio. Os povos forjaram deuses e desconfiaram uns dos outros: 'Abandonai vossos deuses, adorai os nossos, senão, ai de vós e de vossos deuses!' E assim será até o fim do mundo, mesmo quando os deuses tiverem desaparecido; prosternar-se-ão diante dos ídolos. Tu não ignoravas, tu não podias ignorar esse segredo fundamental da natureza humana e, no entanto, repeliste a única bandeira infalível que te ofereciam e que teria curvado sem contestação todos os homens diante de ti, a bandeira do pão terrestre; rejeitaste-a em nome do pão do céu e da liberdade! Vê o que fizeste em seguida, sempre em nome da liberdade! Não há, repito-te, preocupação mais aguda para o homem que encontrar o mais cedo possível um ser a quem delegar esse dom da liberdade que o infeliz traz consigo ao nascer. Mas, para dispor da liberdade dos homens, é preciso dar-lhes a paz da consciência. O pão te garantia o êxito; o homem se inclina diante de quem lhe dá, porque é uma coisa incontestável, mas, se um outro se torna senhor da consciência humana, largará ali mesmo o teu pão para seguir aquele que cativa sua consciência. Nisto tu tinhas razão, porque o segredo da existência humana consiste não somente em viver, mas ainda em encontrar um motivo de viver. Sem uma idéia nítida da finalidade da existência, prefere o homem a ela renunciar e se destruirá em vez de ficar na terra, embora cercado de montes de pão. Mas que aconteceu? Em lugar de te apoderares da liberdade humana, tu ainda a estendeste! Esqueceste-te então de que o homem prefere a paz e até mesmo a morte à liberdade de discernir o bem e o mal? Não há nada de mais sedutor para o homem do que o livre arbítrio, mas também nada de mais doloroso. E, em lugar de princípios sólidos que teriam tranqüilizado para sempre a consciência humana, tu escolheste noções vagas, estranhas, enigmáticas, tudo quanto ultrapassa a força dos homens e com isso agiste como se não os amasses, tu, que vieras dar tua vida por eles! Aumentaste a liberdade humana em vez de confiscá-la e assim impuseste para sempre ao ser moral os pavores dessa liberdade. Querias ser livremente amado, voluntariamente seguido pelos homens fascinados. Em lugar da dura lei antiga, o homem, devia doravante, com coração livre, discernir o bem e o mal, não tendo para se guiar senão tua imagem, mas não previas que ele repeliria afinal e contestaria mesmo tua imagem e tua liberdade, esmagado sob essa carga terrível: a liberdade de escolher? Gritarão por fim que a verdade não estava em ti, de outro modo não os terias deixado numa incerteza tão angustiosa, com tantas preocupações e problemas insolúveis. Preparaste assim a ruína de teu reino. Não acuses ninguém. Entretanto, era isso que te propunham? Há três forças, as únicas que possam subjugar para sempre a consciência desses fracos revoltados, a saber: o milagre, o mistério, a autoridade!

[continua]

Veja também:
O Grande Inquisidor - parte 1
O Grande Inquisidor - parte 2
O Grande Inquisidor - parte 3
O Grande Inquisidor - parte 4
O Grande Inquisidor - parte 5
O Grande Inquisidor - parte 6
O Grande Inquisidor - parte 7
O Grande Inquisidor - parte 8

6 de março de 2007

O Grande Inquisidor [parte IV]

DE FIODOR DOSTOIEVSKI, EM OS IRMÃOS KARAMÁZOVI [parte IV]

"Decide, pois, tu mesmo quem tinha razão: tu, ou aquele que te interrogava? Lembra-te da primeira pergunta, do sentido, senão do teor: queres ir para o mundo de mãos vazias, pregando aos homens uma liberdade que a estupidez e a ignomínia naturais deles os impedem de compreender, uma liberdade que lhes causa medo, porque não há e jamais houve nada de mais intolerável para o homem e para a sociedade! Vês aquelas pedras naquele deserto árido? Muda-as em pão e atrás de ti correrá a humanidade, como um rebanho dócil e reconhecido, tremendo, no entanto, no receio de que tua mão se retire e não tenham eles mais pão. Mas tu não quiseste privar o homem da liberdade e recusaste, estimando que era ela incompatível com a obediência comprada por meio de pães. Replicaste que o homem não vive somente de pão; mas sabes que, em nome desse pão terrestre, o espírito da terra se insurgirá contra ti, lutará e te vencerá, que todos o seguirão, gritando: 'Quem é semelhante a esse animal? Ele nos deu o fogo do céu!' Séculos passarão e a humanidade proclamará pela boca de seus sábios e de seus intelectuais que não há crimes e, por conseguinte, não há pecado; só há famintos. 'Nutre-os e então exige deles que sejam virtuosos!' Eis o que se inscreverá sobre o estandarte da revolta que abaterá teu templo. Em seu lugar elevar-se-á novo edifício, uma segunda torre de Babel, que ficará sem dúvida inacabada, como a primeira, mas tu terias podido poupar aos homens essa nova tentativa e mil anos de sofrimento. Porque virão eles procurar-nos, depois de ter penado mil anos para construir sua torre! Procurar-nos-ão sob a terra como outrora, nas catacumbas onde estaremos escondidos (perseguir-nos-ão de novo) e clamarão: 'Dai-nos de comer, porque aqueles que nos tinham prometido o fogo do céu não no-lo deram'. Então, acabaremos a torre deles, porque para isso basta apenas o alimento, e nós os nutriremos, utilizando-nos falsamente de teu nome, e os faremos crescer. Sem nós, estarão sempre famintos. Nenhuma ciência lhes dará pão, enquanto permanecerem livres, mas acabarão por depositá-la a nossos pés, essa liberdade, dizendo: 'Reduzi-nos à servidão, contanto que nos alimenteis'. Compreenderão por fim que a liberdade e o pão da terra à vontade para cada um são inconciliáveis, porque jamais saberão reparti-los entre si! Convencer-se-ão também de sua impotência para ser livres sendo fracos, depravados, nulos e revoltados. Tu lhes prometias o pão do céu; ainda uma vez, é ele comparável ao da terra aos olhos da fraca raça humana, eternamente ingrata e depravada? Milhares e dezenas de milhares de almas seguir-te-ão por causa desse pão, mas que acontecerá aos milhões e bilhões que não terão a coragem de preferir o pão do céu ao da terra? Será que só preferes os grandes e os fortes, aos quais os outros, a multidão inumerável, que é fraca, mas te ama, só serviria de matéria explorável? Eles também nos são queridos, os seres fracos. Embora depravados e revoltados, tornar-se-ão finalmente dóceis. Ficarão espantados e acreditarão que somos deuses por ter consentido, pondo-nos a comandá-los, em assumir a liberdade que os atemorizava e reinar sobre eles, de modo que ao final terão medo de ser livres. Mas lhes diremos que somos teus discípulos e reinamos em teu nome. Enganá-los-emos de novo, porque então não deixaremos que te aproximes de nós. E será essa impostura que constituirá nosso sofrimento, porque será preciso que mintamos. Tal é o sentido da primeira pergunta que te foi feita no deserto, e eis o que rejeitaste em nome da liberdade, que punhas acima de tudo. No entanto, ocultava ela o segredo do mundo.

[continua]

Veja também:
O Grande Inquisidor - parte 1
O Grande Inquisidor - parte 2
O Grande Inquisidor - parte 3
O Grande Inquisidor - parte 4
O Grande Inquisidor - parte 5
O Grande Inquisidor - parte 6
O Grande Inquisidor - parte 7
O Grande Inquisidor - parte 8

5 de março de 2007

Síntese da morte

Quando minha tia-avó morreu, meu filho quis saber porque.
- As pessoas morrem quando ficam velhas, meu filho - sintetizei, depois de outras explicações mais técnicas e espirituais.

Na semana seguinte, estivemos em um aniversário da família, e meu filho, com um olhar intrigado, perguntou para uma senhora de idade que assistia televisão:
- A senhora já é velha?
- Sim - ela respondeu educadamente.
- Ah! Então vai morrer logo! - concluiu o sábio guri, com a polidez típica de uma criança de 4 anos.

4 de março de 2007

O Grande Inquisidor [parte III]

DE FIODOR DOSTOIEVSKI, EM OS IRMÃOS KARAMÁZOVI [parte III]

"Tens tu o direito de nos revelar um só dos segredos do mundo donde vens?", pergunta o velho, que responde em seu lugar: "Não, não tens o direito, porque essa revelação se ajuntaria à de outrora, e seria isso retirar aos homens a liberdade que defendias tanto na terra. Todas as tuas revelações novas feririam a liberdade da fé, porque pareceriam miraculosas; ora, tu punhas acima de tudo, há quinze séculos, essa liberdade da fé. Não disseste bem muitas vezes: "Quero tornar-vos livres"? Pois bem, viste-os, os homens "livres" — acrescenta o velho, com ar sarcástico. — Sim, isto nos custou caro — prosseguiu ele, olhando-o com severidade —, mas levamos o cabo afinal àquela obra em teu nome. Foram-nos precisos quinze séculos de rude labor para instaurar a liberdade; mas está feito, e bem feito. Não o crês? Olhas-me com doçura, sem mesmo fazer-me a honra de te indignares. Mas fica sabendo que jamais os homens se creram tão livres como agora, e, no entanto, a liberdade deles depositaram-na humildemente a nossos pés. Isto é a nossa obra, para dizer a verdade: é a liberdade que sonhavas?"

***

— Não compreendo de novo — interrompeu Aliócha. — Ironiza ele, zomba?

— Absolutamente! Vangloria-se de ter, ele e os seus, suprimido a liberdade, com o fito de tornar os homens felizes.

***

"Porque é agora, pela primeira vez (fala ele, bem entendido, da Inquisição), que se pode pensar na felicidade dos homens. São naturalmente revoltados; revoltados podem ser felizes? Tu estavas advertido — diz-lhe ele —, conselhos não te faltaram, mas não os levaste em conta, rejeitaste o único meio de proporcionar a felicidade aos homens; felizmente, ao partires, tu nos transmitiste a obra, prometeste, concedeste-nos solenemente o direito de ligar e desligar; decerto, não podes pensar em retirar de nós agora esse direito. Por que então vieste estorvar-nos?"

***

— Que significa isso: "As advertências e os conselhos não te faltaram?" — perguntou Aliócha.

— Mas é o ponto capital no discurso do ancião.

***

"O espírito terrível e profundo, o espírito da destruição e do nada", continua ele, "falou-te no deserto e as Escrituras relatam que ele te 'tentou', é verdade? E nada se podia dizer de mais penetrante que o que te foi dito nas três perguntas ou, para falar com as Escrituras, as 'tentações' que repeliste? Se jamais houve na terra um milagre autêntico e retumbante, foi o dia daquelas três tentações. O simples fato de terem sido formuladas aquelas três perguntas constitui um milagre. Suponhamos que tenham desaparecido das Escrituras, que seja preciso reconstituí-las, imaginá-las de novo para substituí-las ali, e que se reúnam para esse efeito todos os sábios da terra, homens de Estado, prelados, sábios, filósofos, poetas, dizendo-lhes: imaginai, redigi três perguntas que não somente correspondam à importância do acontecimento, mas ainda exprimam em três frases toda a história da humanidade futura — acreditas que esse areópago da sabedoria humana poderia imaginar nada de tão forte e de tão profundo como as três questões que te propôs então o poderoso espírito? Essas três questões provam por si sós que se tem de ver com o espírito eterno e absoluto e não com um espírito humano transitório. Porque resumem e predizem ao mesmo tempo toda a história ulterior da humanidade, são as três formas em que se cristalizam todas as contradições insolúveis da natureza humana. Não se podia na ocasião perceber isso, porque o futuro estava velado, mas agora, após quinze séculos decorridos, vemos que tudo fora previsto naquelas três perguntas e realizou-se a ponto de ser impossível acrescentar-lhes ou retirar-lhes uma só palavra.

[continua]

Veja também:
O Grande Inquisidor - parte 1
O Grande Inquisidor - parte 2
O Grande Inquisidor - parte 3
O Grande Inquisidor - parte 4
O Grande Inquisidor - parte 5
O Grande Inquisidor - parte 6
O Grande Inquisidor - parte 7
O Grande Inquisidor - parte 8

1 de março de 2007

Naquele dia

A tal da "música gospel" segue cada vez mais intragável. Uma sequência de mantras entorpecentes de pobreza rítmica, melódica e poética de dar náuseas. Li, no subversivo site do Caio Fábio, uma frase que diz tudo:
Naquele dia Ele dirá: Nunca ouvi musica Gospel!

E sabe-se lá tudo o mais que Ele dirá naquele dia.