28 de agosto de 2007

Te cuida dos alçapão

Não é fácil alçar vôo. Tem muito alçapão por aí e perigo por todos os lados. Aquilo que nos alimenta e protege é nossa prisão. Ainda que tenhamos consciência de nossa condição de prisioneiros, sabemos que é só na segurança da gaiola que temos sombra e água fresca. Não queremos alçar vôo.

No centro da nossa ilusão há somente uma grande e assustadora roda que prossegue girando e girando. Nós é que a movemos. Estamos todos correndo dentro dela, como ratos. Ela tem muitos nomes, muitas faces. Alguns a conhecem como trabalho, outros a chamam de família, outros ainda de igreja. Cada um acredita-se livre do outro, mas estão todos juntos. Seja qual for o nome, o destino que nossa ilusão criou é o sucesso, o caminho é a performance e o guia a segurança e o conforto.

A loucura daquele homem que não tinha onde reclinar a cabeça foi convidar-nos a voar. Mostrou-nos a porta da gaiola aberta. Xô, disse ele, voem, libertem-se. Abram mão do alimento, da segurança, da proteção, do sucesso, da glória. Só assim serão livres.

Pobre infeliz. Não sabia que ninguém o seguiria por isso. A liberdade é nosso maior inimigo. Tranquem a porta, joguem a chave fora. Quem teria coragem de voar?


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Patativa
Roberto Diamanso


Xô, patativa do galho de pau
Tiraram a mata daqui
Só resta a ti ir embora

Xô, patativa do galho de pau
Tiraram a mata daqui
Já me botaram na gaiola

Diga lá a azulão
Que não me sai da lembrança
Aquela nossa festança
Na sombra do juazeiro

Mas o perigo chegou
Liga na fonte, laço no ninho
Morre quem chegar primeiro

Xô, patativa do galho de pau
Tiraram a mata daqui
Já me botaram na gaiola

Xô, patativa do galho de pau
Tiraram a mata daqui
Só resta a ti ir embora

Sinto que já dói no peito a saudade
Quem me dera poder ir
Tem jeito não, posso não
Te cuida dos alçapão, vai-te embora

Sinto que já dói no peito a saudade
Quem me dera poder ir
Tem jeito não, posso não
Te cuida dos alçapão, vai-te embora







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Do imperdível CD Menestrel, de Roberto Diamanso



Você pode comprar o CD aqui.

18 de agosto de 2007

Grandes navegações

Quando icei pela primeira vez a âncora e deixei-me levar pelos ventos mar adentro, não imaginava a beleza das terras e embarcações que eu encontraria. Observei muita coisa entre mares revoltos e calmarias, às vezes de longe, eventualmente muito perto e, em algumas oportunidades, com contatos pessoais agradabilíssimos. Mas, recentemente, tenho sido presenteado por alguns contatos realmente especiais. São os encontros com outras embarcações que trazem tesouros similares àquele que garimpei, polí, lapidei e divulguei aqui mesmo nesse blog, entre os despojos de minha família.

O último encontro foi com a embarcação “Bossa Brasileira”, que trazia no convés a relíquia “Músicas do nosso Brasil”, de Stellinha Egg que, com a permissão do navegador Thiago Mello, veio enriquecer minha coleção pessoal.




“Músicas do Nosso Brasil” foi editado pela RCA Victor em 1956 em disco de 10 polegadas. As faixas haviam sido lançadas em diversos 78 rotações entre 1951 e 1954. São gravações antológicas de valor histórico e artístico incontestável. Canções, baiões, toadas e os chamados “batuques” - tudo em coesão impressionante, não parecendo tratar-se de uma coletânea. Ao vestir com tal exuberância algumas destas canções, Gaya não imaginou a dimensão histórica que o trabalho representaria. [Com a voz de] Stellinha Egg e arranjos de Gaya é uma obra-prima. Belo, divertido, intrigante e misterioso. E também histórico e fundamental. Como bônus, incluímos duas faixas presentes nos 78 rpms que originaram o LP, mas não entraram na edição final: “Noite de Temporal” e “Nunca Mais” ambas de autoria de Dorival Caymmi.


Stellinha Egg “Músicas do Nosso Brasil”1956 RCA Victor [BPL 3022]

01 Luar do Sertão [Catulo da P. Cearense, J. Pernambuco] canção 1952
02 Prenda Minha [Tradicional, adpt. Stellinha Egg] baião 1951
03 Recado à Yemanjá [Roskilde, Stellinha Egg] toada-baião 1954
04 O Vento [Dorival Caymmi] canção praieira 1953
05 Baião de Diamantina [H. de Almeida, R. Paes] baião 1953
06 Lamento Negro [Constantino Silva, H. Porto] macumba 1954
07 Lenda do Abaeté [Dorival Caymmi] batuque 1954
08 O Mar [Dorival Caymmi] canção 1953
09 Nunca Mais [Dorival Caymmi] samba-canção 1954

10 Noite de Temporal [Dorival Caymmi] batuque 1954
Arranjos para orquestra e coro do maestro Gaya.

[veja aqui a postagem completa na embarcação original de Thiago Mello]

9 de agosto de 2007

O salto no vazio


"Naquele momento o barco já estava no meio do lago. E as ondas batiam com força no barco porque o vento soprava contra ele. Já de madrugada, entre as três e as seis horas, Jesus foi até lá, andando em cima da água. Quando os discípulos viram Jesus andando em cima da água, ficaram apavorados e exclamaram: - É um fantasma! E gritaram de medo. Nesse instante Jesus disse: - Coragem! Sou eu! Não tenham medo! Então Pedro disse: - Se é o senhor mesmo, mande que eu vá andando em cima da água até onde o senhor está. - Venha! - respondeu Jesus. Pedro saiu do barco e começou a andar em cima da água, em direção a Jesus. Porém, quando sentiu a força do vento, ficou com medo e começou a afundar. Então gritou: - Socorro, Senhor! Imediatamente Jesus estendeu a mão, segurou Pedro e disse: - Como é pequena a sua fé! Por que você duvidou? Então os dois subiram no barco, e o vento se acalmou. E os discípulos adoraram Jesus, dizendo: - De fato, o senhor é o Filho de Deus!


Mateus 14.23 a 33


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O ponto central da fé não é ter certeza - é ter confiança. A certeza é prepotente, a confiança é dependente. A certeza exclui a dúvida, o arrepio na espinha (e quem não sente arrepio na espinha?). A confiança nos faz dar o passo para fora do barco, mesmo receosos, mesmo apavorados. A certeza é crença, a confiança é fé. O que passou na cabeça de Pedro, possivelmente, foi: se Jesus chamou, alguma coisa vai acontecer e, seja o que for, vai valer a pena.

O problema está em associarmos fé com certezas inabaláveis. A crença é assim - não há dúvida nenhuma, nunca, jamais. Tudo que nos é dito acerca da nossa religião, a ortodoxia toda, vira nossa crença. Na crença, a dúvida é sinônimo de fraqueza. A fé não é assim. Quanto mais dúvida eu tenho, mais confiança preciso ter. Se não me resta mais dúvida nenhuma, não é preciso confiar. Minha única certeza, na fé, é que Jesus está lá, de pé sobre a água me chamando. E se ele está me chamando, vale a pena me jogar no vazio - e confiar.

Então, se alguém quer seguir a Jesus, tem que se lançar no vazio, mesmo cheio de dúvidas, e incertezas, pela simples confiança de que, seja lá o que for que venha a acontecer, vale a pena. Não é pra ter certeza! O que importa é ver Jesus, conhecê-lo e entender que ele pede simplesmente para seguirmos seu modelo. E isso é muito mais difícil do que a mais piedosa das crenças.




Veja também:
Não há vida sem morte
Acerca do chamado
Fé e crença – Jaques Ellul, na Bacia das Almas.

6 de agosto de 2007

Stellinha e Gaya

A imagem na memória é de uma figura esguia, ombros altos mas mirrados, com a coluna arcada e cabelo desgrenhado. Devia ter pouco mais de 60 anos. As longas entradas na testa davam ares de intelectual e estava sempre envolto em uma pequena nuvem de fumaça do cigarro que não apagava nunca. Lembro dele nas peladas do grande Pobreza F. C., no curto período em que ele participou das batalhas futebolescas. Ia de carona com a gente. No campo, chamava a atenção pelas canelas finas e a idade avançada no meio do pessoal. Lembro também das longas partidas de xadrez entre ele e meu avô e da voz rouca, soltando fumaça junto com as palavras. Meu avô eventualmente comentava sobre suas convicções comunistas. Era uma figura estranha no meu imaginário infantil.

Stellinha e Gaya
Gaya, à esquerda, com a Stellinha.

Sei que quando ficou doente, a tia Stellinha não saia do seu lado. Permaneceu com ele durante todo seu sofrimento. Depois que ele partiu, ela passou a organizar o que pretendia que se tornasse o “Museu do Gaya”. Foram muitas e muitas tardes que passou enfurnada no meio de um mundo de coisas, entre discos, roupas, cenários, equipamentos de som, partituras e manuscritos. Nessa época meu irmão a acompanhava e ajudava no complexo trabalho de organizar e catalogar todo aquele pequeno mundo.

Nesses últimos tempos, da doença e do museu, é que ficou claro o quanto a vida de um estava misturada com a do outro.

"Sempre foi assim. Quando se falava em Gaya, falava-se em Stellinha. Quando se falava em Stellinha, falava-se em Gaya. Nunca foi, nem poderia ser de outra forma" – dizia minha tia famosa.


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A Grande Valsa Brasileira
Gaya e sua Orquestra de cordas

Composições para orquestra, escritas pelo maestro Gaya para repertório de doze músicas.




1. Velho Realejo (Custodio Mesquita e Sady Cabral)
2. Boa Noite Amor (José Maria de Abreu e Francisco Mattoso)
3. Branca (Zequinha de Abreu)
4. Deusa da Minha Rua (Jorge Faraj e Newton Teixeira)
5. Última Inspiração (Peter Pan)
6. Ave Maria (Erothides de Campos)
7. Saudades de Matão (Jorge Galatti e Raul Torres)
8. Meu Último Luar (Waldemar Henrique)
9. Mimi (Uriel Lourival)
10. Flôr do Mal (Santos Coelho e João Portaro)
11. Volta para o Meu Amor (Joubert de Carvalho e Tostes Malta)
12. Lágrimas de Virgem (Luiz Americano)


Para saber mais:

Histórias e músicas da Stellinha EggStellinha e Gaya – Uma história de amor
Gaya. O homem que sabia dos ritmos