7 de julho de 2008

O raio que o parta

Incríveis histórias medíocres de montanha – a série

5.

Saímos em 12 pessoas abarrotadas dentro de uma Topic alugada. Passaríamos os próximos 5 dias juntos, num pé de serra, encurralados por grandes paredes verticais e dezenas de possibilidades de rotas para alcançar os benditos cumes. Não era a primeira vez que iríamos para lá, mas esperávamos ser a primeira vez que ninguém nos passaria a perna no local. Em outras visitas havíamos sido enganados por taxistas de Kombi abandonando-nos na beira da estrada, jurando de pé junto que a trilha começava ‘logo ali’; restaurantes fantasmas nos serviram, entre outras bizarrices, bistecas no osso, que já vinham mordidas da cozinha; e padarias com produtos superfaturados, especialmente para turistas trouxas. Dessa vez seria diferente. E como.

A expectativa era enorme. Naquela época os croquis de vias e trilhas eram raridades que valiam ouro. Tudo que tínhamos eram dicas sombrias e distorcidas que exigiam grande exercício de imaginação. O trato com a empresa que alugou a Van era pagar a estadia e alimentação do motorista. Dividimos uma barraca e nossos miojos com ele que, graças a Deus, achou a experiência extraordinária.

Chegamos na base das paredes de granito no fim da tarde. Tempo suficiente para nos lançarmos à primeira via. Parte do grupo ficou na base, organizando as barracas e o jantar enquanto o restante se espalhou pelas paredes.

Optamos por uma via fácil, para ser escalada junto com as esposas, só curtindo o visual. As informações coletadas com antecedência definiam a dificuldade da rota como 3º grau. Iniciamos a escaladinha na maior tranqüilidade. Com o passar dos metros, a coisa começou a complicar, não pela dificuldade técnica, mas pela total ausência de proteções na parede. Finalizamos o primeiro esticão diretamente na parada, 25 metros acima do solo, sem nenhum ponto de proteção intermediário. A situação se repetiu no segundo esticão, mas com um agravante. Alguns metros antes da parada surgiu repentinamente por trás da parede um toró de lavar até a alma. Descemos os dois lances de rapel debaixo de muita água e assustadores raios estourando muito próximos de nós. Já na frágil segurança da barraca úmida, encharcados mas felizes, dormimos sonhando com o dia seguinte.

Nos 3 dias que se seguiram, apreciamos um raro espetáculo da natureza. Foram 72 horas de chuva ininterrupta. Às vezes ela nos dava um fiapo de esperança reduzindo-se a uma finíssima garoa. Nesses breves momentos, quase todos saíam das barracas para alternar a umidade de dentro com a de fora. Quase todos. Um de nós conseguiu a proeza de passar todo esse tempo sem nem botar a cabeça para fora. Certamente se algum fiscal do Guinnes estivesse por ali, dava pra enquadrar o cara em algum tipo de recorde mundial.

O que tornou a viagem menos traumática foi a noite que passamos conversando com um morador do local, na boca do fogão à lenha da sua simpática casinha de madeira. Nós, habitantes da urbis, falávamos e gesticulávamos contando histórias, ora exagerando um pouco, ora mentindo descaradamente, possivelmente compensando as longas horas de imobilidade na barraca. O dono da casa nos observava com a curiosidade de quem observa pela primeira vez chipanzés correndo em uma jaula. No ritmo deliciosamente lento de quem mora no interior, alimentava o fogo que nos aquecia, sentado sobre os calcanhares como se estivesse em uma confortável cadeira na sala de estar.

Motivados pelo tempo chuvoso, nossas histórias rodavam o assunto das tempestades e raios nos cumes da montanha, dos cabelos erguidos pela estática, dos leves choques sentidos quando a mão tocava o solo úmido e dos horrores dessas sensações. Foi quando alguém olhou diretamente nos olhos daquele senhor, perguntando-lhe se ele mesmo não havia vivido alguma experiência interessante com tempestades e relâmpagos. Com movimentos lentos e o semblante inabalável de quem não entende em absoluto a nossa empolgação, aquele senhor finalmente abriu a boca:

- Uns anos atrás eu e meu irmão ‘tava roçano’ o mato ali atrás. Quando ele levantou a enxada, um raio pegou ele e matou.

O homem, com aquele típico olhar triste do interior, colocou mais um pedaço de madeira no fogo enquanto mantínhamos um profundo e constrangido silêncio.

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No último dia o sol brilhou a tempo de secar parcialmente as barracas. Nos despedimos do morro tomando uma garapa espremida à manivela na casa daquele senhor e conhecendo a espetacular coleção de plantas extraordinárias de sua simpaticíssima esposa.

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Acompanhe:
Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
1. Apresentação
2. O menino de asas
3. Queda livre

4. Às vezes falha

5. O Raio que o parta

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