30 de janeiro de 2008

Ausência

Saí de casa mais cedo naquele dia. O sol rasgava a neblina com raios brancos e somente as pontas dos morros apareciam no horizonte, como que em pequenas janelas embaçadas. É época de colheita de fumo e as chaminés da Souza Cruz não param e deixam um cheiro doce no ar. As colunas brancas de fumaça que se erguem das torres da fábrica e o céu cinza pela espessa neblina deixam tudo com um ar apocalíptico de pós-guerra.

Não vi ninguém no caminho de casa até o trabalho. Nenhum carro, nenhuma alma. Só a neblina densa e os raios de sol, que quando incidem sobre a viseira do capacete me cegam por completo. O estacionamento também estava deserto. Ninguém no elevador. Conferi a hora no relógio de parede – 7h10. Abri a porta da agência, liguei no-break, servidor, micro e sentei na minha mesa. Agenda, telefone, CDs, canetas, blocos de anotação, calendário e algumas revistas estavam desordenadamente organizados como de costume. Mas o silêncio era absurdo. Procurei alguma notícia na internet, mas estava fora do ar. Não havia motivo para isso. O tempo passou lentamente enquanto esperava mais alguém chegar. Tentei ordenar a mente para perceber se alguma coisa fazia sentido. Enquanto pensava, alisando os pelos da barba em movimentos circulares do bigode ao queixo, com o indicador e o polegar, comecei a lembrar de outras estranhezas que de alguma forma não tinha percebido antes. E meus filhos? E minha esposa? Não lembrava de tê-los visto nessa manhã. Na verdade, não estava certo se havia saído da cama ou mesmo acordado essa manhã. Imaginei que seria um sonho. Imaginei que acordaria logo. Mas o tempo custava a passar. Tentei folhear revistas para passar o tempo na esperança de que logo alguém mais chegasse, mas todas as páginas estavam em branco, assim como a tela do meu computador. Esperei até 8h30 e não apareceu mais ninguém. Tentei telefonar, mas nenhuma ligação completava. Saí pelas ruas, procurando alguma presença redentora naquela louca manhã. Gritei, bati em portas, janelas e vitrines, mas estava definitivamente só. Desci ao estacionamento, subi na moto e saí pela Sete, passando pela Fonte Luminosa e seguindo em direção ao colégio dos meus filhos. Deserto. Subi a Amazonas até a minha casa. Vazia.

Passei as semanas seguintes vagando por todos os lugares que conhecia, procurando qualquer sinal de vida ou vestígio do que pudesse ter acontecido. Fui a Curitiba, Joinville, Florianópolis. Vaguei por todas as casas de todos os conhecidos. Arrombei, vasculhei gavetas, armários, mesas, porões e sótãos. Não era só as pessoas que haviam sumido, mas todos os animais e insetos. Pelo menos estava livre dos insetos.

De uns tempos pra cá não tenho mais contado os dias. Desde aquela manhã se passaram pelo menos 15 anos. Não consigo descrever o que me mantém aqui. Todas as noites durmo esperando acordar de um sonho para o mundo real ou simplesmente não acordar mais. Absolutamente nada faz o menor sentido sem a presença de mais alguém.

9 de janeiro de 2008

A cultura de dentro

O pior mal é o que vem disfarçado de cordeiro.


O problema cultural da igreja não está em descobrir formas de interagir com a cultura “de fora”, mas em descobrir formas de eliminar a “cultura de dentro”. Toda missão de uma igreja é transcultural se você percebe que a própria igreja desenvolveu e mantém-se profundamente embebida em uma cultura própria, desconectada do mundo ao redor.

O cristão moderno tem músicas, revistas, programas de televisão e rádio, grifes de roupa, livrarias, eventos, feiras, restaurantes, shows de música, dança e teatro voltados para entretenimento próprio.

Na nossa realidade cristã, o auge do discipulado acontece quando conseguimos transformar um crente novo em alguém tão esquisito e alienado quanto nós mesmos. Quando conseguimos por fim isolar completamente o novo convertido do mundo “de fora” e aprisioná-lo, junto conosco, naquilo que Caio Fábio chamou de “triângulo da morte”, que resume nossa existência nesse mundo ao ciclo “casa-trabalho-igreja”.

Nos esforçamos para fazer com que os eventos da igreja tenham uma cara mais palatável para os “de fora”. Acreditamos que “interagir com a cultura” é tocar as músicas do louvor em um novo ritmo, mudar a liturgia aqui e ali, fazer retoques na estrutura eclesiástica arcaica, criar um novo evento e extinguir um antigo. Mas não temos coragem e disposição suficiente para darmos liberdade para que aqueles que foram libertos pelo Evangelho possam vivê-lo livremente nos ambientes de onde eles vieram e influenciar esses ambientes, e os amigos que estão lá, com a graça que os alcançou e libertou. Nosso grande pavor é perder a alma do infeliz se o deixarmos sair dos muros de segurança da subcultura cristã. Nosso esforço só é recompensado, quando o novo crente demonstra de forma clara os novos padrões de comportamento estético adquiridos.

É espantoso ver que pessoas com anos de igreja ainda se perguntam se podem jogar baralho, ouvir essa ou aquela música, ver esse ou aquele filme, tratar-se com homeopatia ou pegar na mão do namorado.

De nada adianta disfarçar-nos com manifestações culturais “externas”, se ainda permanecemos cativos da cultura interna. Precisamos perder o medo e conduzir o povo pra fora dos nossos muros e mostrar que tem pasto verde do lado de fora. A cultura popular pode nos alimentar a alma. Beleza e espiritualidade estão conectadas e um filme ou música “secular” pode nos levar a um momento da mais pura adoração. E técnicas orientais de meditação podem nos fazer mais sensíveis à voz do Espírito Santo, na medida em que nos ensinam a afastar-nos da maluquice do ritmo de vida pós-moderno.

Evidentemente tudo isso pode também nos fazer mal. Mas a submersão na cultura evangélica alienada é um mal terrível que vem, em pele de cordeiro, nos comendo pelas beiradas, e nós não o distinguimos direito.


Leia também:
Evangelho e cultura.
O Movimento pelo movimento.

2 de janeiro de 2008

Astros bailando

E começa um novo ano.

Terra e sol seguem bailando.
O astro rei com a mão estendida,
tocando a pequenina mão da terra,
apoiando suavemente a moça
que gira em torno dele e de si.

Não sei como não ficamos tontos.
Aliás, ficamos, e cada vez mais.
Na roda-viva da vida, de tanto bailar,
a humanidade entorta e leva o planeta consigo.
Alguém, por favor, desligue a música.

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Todo novo ano exige alguma reflexão. Exige também um telefonema, um email, um torpedo, um cartão ou, pelo menos, uma postagem no blog, desejando que dê tudo certo.

Um bom ano a todos.

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Leia também:
Apesar de Copérnico, todo o Universo
gira ao redor de nosso pequeno globo.


A Natureza tal como ela é.