24 de março de 2008

Também sobrevivi [1]

Yancey e Luther King

Descobri só recentemente que Phillip Yancey tornou-se um proscrito de uma certa corrente cristã. Inocência minha. Não poderia deixar de ser, diante do que escreve. Quem abre a boca para falar contra o sistema de controle estabelecido não pode merecer nada mais do que a excomunhão. Não foi o que fizeram com os profetas em toda a história de Israel?

Besteira minha comparar Yancey a um profeta também. Não creio que ele mesmo se perceba assim. Profetas estão por aí nos púlpitos dos apóstolos e não escrevendo livros que nos levam à reflexão e contestam o status quo.

Li recentemente o delicioso “Alma Sobrevivente”. Mais do que isso. Li em um contexto acadêmico e, dentro desse contexto, fui obrigado a escrever uma resenha. Está escrita há alguns meses. Talvez interesse à alguém.

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Yancey inicia sua narrativa observando as marcas deixadas pela igreja institucional, sua pregação incoerente, suas certezas dúbias, sua fé pragmática e o verniz espiritual com que os cristãos se pintam para que seus argumentos ganhem força nas falsas aparências. Argumenta também sobre o inegável fato de que enquanto muitos se convertem ao padrão de vida exigido pela ‘igreja’ (seja lá o que isso signifique), outros tantos afastam-se definitivamente de qualquer espiritualidade por terem percebido a tremenda discrepância que existe entre o que se prega e a realidade dos que pregam. Finalmente nos conta como foi profundamente influenciado por vidas que viveram e pregaram um evangelho genuíno, tanto dentro como fora da ‘igreja’, ressaltando que a pregação dos ‘de fora’ teve mais força sobre sua própria vida. Apesar de não termos tido em nosso país um segregacionismo tão evidente quanto o relatado no capítulo sobre Martin Luther King Jr, muitas semelhanças existem entre a posição da igreja dos EUA e a brasileira. Ambas abraçavam o ‘status quo’ e posicionaram-se a favor da permanência da injustiça evidente na sociedade. Dois textos interessantes sobre o protestantismo e a escravidão no Brasil podem ser lidos aqui. Além disso, nossa participação nos tempos de ditadura também foi bastante vergonhosa, com apoio massivo aos desmandos do regime militar, obviamente influenciados pelos nossos colonizadores espirituais oriundos da América do Norte. Muito interessante a análise da vida moral de Luther King, comparando-o com os grandes profetas bíblicos.


Estaríamos certamente em perigo se o mensageiro indigno invalidasse a
mensagem.



A ênfase é dada sobre a dedicação de Luther King em viver, anunciar e implantar um Reino de justiça, paz, amor e igualdade, baseado na mensagem de Cristo e disposto a carregar sua cruz para isso, pagando inclusive com sua vida. Além disso, a coragem e ousadia desse homem são tão motivantes quanto a coragem e ousadia dos heróis bíblicos.


[continua]

17 de março de 2008

Uma vida no mar [2]


lonely boat
Upload feito originalmente por Peter Getz


[antes desse]


O horizonte estava agora cerca de dois palmos acima de onde deveria estar. Havia estranhamente se deslocado, como se a terra plana dos antigos estivesse loucamente inclinando-se. Percebeu que estava sendo sugado mar adentro com cada vez mais velocidade. E o horizonte erguia-se lentamente. Quando enfim tomou consciência do que de fato estava ocorrendo, foi estranhamente inundado por improvável calmaria na alma. As mãos soltaram-se das bordas e os braços cairam pesados pelo lado do corpo. Os músculos da face, dos ombros e das costas entregaram-se por compleo ao mais puro ócio. O pavor cedeu lugar à contemplação. A angústia à reverência. Sentiu-se no auge da maturidade adulta, com a sabedoria precisa de alguém que já viveu uma longa vida e ainda mantém a consciência e a virilidade. Percebeu que naquele louco instante estava no mais sofisticado camarote do mais belo teatro, e observava sob perspectiva única, privilegiada e indescritível o mais intenso espetáculo que jamais alguém vira.

A gigantesca parede de água avançando sobre a costa era como o som perfeito de cem mil orquetras, os movimentos precisos e fantásticos de cem mil bailarinos, as vozes penetrantes de cem mil tenores. Desejou intensamente, motivado por puro carinho, que seus pais e um punhado de amigos mais chegados estivessem ali com ele. Angustiava-se por não poder compartilhar com ninguém tão vasta beleza. Extasiado pelo esplendor indizível do evento, perdeu totalmente o controle sobre seu corpo. Permanecia estático, com a cabeça pendendo para a esquerda, a boca aberta e a coluna acentuadamente arcada. Lembrava agora um velho senil em seu leito de morte.

Aos poucos, a orquestra, os bailarinos e os tenores foram aquietando-se. Permanecia apenas o sibilar insistente, agudo e monótono de um violino solitário. O horizonte agora já estava quase diretamente sobre sua cabeça.

Os segundos seguintes poderiam ter sido anos. Quando a proa do barco ergueu-se vigorosamente, Tino ainda teve tempo abrir os braços e lançar a cabeça para trás, olhos fechados, como a criança que recebe na face as primeiras gotas de chuva em uma tarde de verão, e foi engolido pela onda.

10 de março de 2008

Uma vida no mar [1]


Solitude
Upload feito originalmente por Joaquim Mello

Florentino da Mata, apesar do nome, era do mar. Nos últimos seis anos, porém, atufou-se na cidade para estudar. Da Mata, do mar para cidade, para o concreto, debruçado sobre livros, esperava poder salvar sua própria gente da miséria que os assolava desde que o peixe começou a minguar. Achava engraçado buscar na cidade, que matara os peixes, a esperança de salvar seus irmãos da fome. Há poucos dias havia retornado, instalando-se nostálgico no mesmo quarto onde cresceu.

Desde o seu retorno passava todo tempo caminhando de casa em casa, revendo amigos e parentes, proseando, curioso sobre tudo que passara nos seis anos de sua ausência. Falava pouco da cidade. Dizia que não se tinha o que dizer sobre lugar feio como aquele. Queria mesmo é falar de areia, de restinga, carangueijo e pesca. E do mar. Do mar que tornara-se ainda mais pobre. Que negava-se a oferecer-lhes comida. Que roubava-lhes a praia. Havia, inclusive, levado a casa de Nicolau Cajado, que morava agora de favor com amigos.

Quando o sol se punha, aquietava-se em casa e, à luz de lampião, proseava com seus pais até os olhos pesarem. Quando menino era chamado por todos na vila de Flor. Menos pelo pai. Para ele o menino era Tino, muito mais macho. E ele preferia assim. À noitinha, em casa, falavam da sua infância, dos risos, da meninice, da fartura de peixes, da moenda de farinha, das festas, do som da rabeca, do fandango, dos tamancos batendo na terra. Uma única vez falaram de seus irmãos que haviam morrido no mar - como deve morrer toda gente de pesca - encerrou o pai. E não tocaram mais no assunto.

Apesar da melancolia nos olhares e nas histórias, o retorno ao litoral revigorou Tino. Passou mais de uma semana peregrinando de gente em gente, assuntando desapressado com todos, nas soleiras das portas, nas varandas, nas sombras das árvores ou na praia, com o sol queimando o lombo e os pés assobiando na areia seca ou espirrando a fina lâmina de água adiante.

Em uma manhã exageradamente quente, não pôde mais resistir à sedução do vento, que trazia o cheiro do mar. A brisa arrebatava-lhe a alma.

Lançou-se sozinho às ondas, como uma criança eufórica diante do brinquedo novo, enquanto o sol ebulia-se da água no horizonte. Venceu a arrebentação em remadas determinadas. Os músculos ressurgiam eufóricos e inesperadamente firmes depois dos anos encurvado sobre livros. Cortou dezenas de vagalhões impetuosos e famintos antes de finalmente vagar tranquilo no remanso das águas profundas. O mar lhe parecia coberto de diamantes refletindo a luz do sol, que agora já pairava a mais de um palmo do horizonte. O corpo molhado de suor e água fazia-o brilhar como um anjo e era ele mesmo um tributo de louvor aos céus com sua beleza agreste. A brisa que soprava constante, era a resposta graciosa de Deus ao canto entoado pelo mover do corpo jovem no barco.

Tino encontrava-se de frente para a costa quando começou a perceber o movimento estranho do mar. O continente afastava-se rapidamente como se o barco estivesse sendo sugado por uma vigorosa corrente que o recolhia mar adentro. Enquanto ainda observava a costa, foi engolido pela sombra que seguiu derramando-se convicta até a praia e deixou todo litoral na escuridão, menos as pontas dos montes, que ainda sorviam diretamente o amarelo intenso do sol. Os olhos de Tino mantinham-se fixos na praia, temendo olhar para trás como a criança que, à noite, prefere atravessar de olhos fechados o longo corredor escuro que a separa da segurança da cama dos pais. Quando enfim encontrou coragem suficiente para virar-se, estranhou o impossível desaparecimento do horizonte. A linha firme e resoluta que dividia o mar do céu havia sido arrebatada e diante dele via-se apenas uma imensa mancha cinza-azulada. Demorou alguns segundos, observando o oeste com os olhos semi-cerrados e a testa franzida como um campo arado, agarrado às bordas do barco com força tal que lhe esfolava os dedos, antes de perceber o que havia ocorrido.

[continua]

2 de março de 2008

Saudade

Quando eu ainda era uma criança miúda ela me despertava medo. No meio dos mimos de todos os velhinhos, ela era a única pessoa que imponha algum respeito. Com ela por perto não ousávamos aprontar.

Os anos passaram e a infância me escoou pelos vãos dos dedos. Somente na idade adulta é que conheci o coração daquela senhora.

Chorei mais de uma vez ao vê-la entregando-se de corpo e alma para cuidar da irmã que já não suportava o peso da idade avançada. Me curvei, em respeito e admiração, cada vez que vi que a entrega não era somente à irmã, mas a todos que estavam ao seu alcance. Aliviou as dores de centenas de pessoas, inclusive as minhas, entregando-lhes seu coração e seu riso solto. Jamais conheci alguém mais disponível ao próximo quanto ela.

No tempo em que fui seu vizinho, uma janela minúscula fechada por uma pequena tábua unia nossas cozinhas. Inúmeras vezes ouvia o bater suave das suas mão na tábua. Ao retirá-la, deparava-me com pastéis, mini-pizzas com massa feita por ela ou algum docinho. Viveu em comovente simplicidade, sempre grata pelo pouco que tinha e sempre disposta a repartir o que não lhe sobrava.

Já beirando os oitenta anos, repetia com naturalidade – “não quero nunca ficar velha”.
E não ficou. Morreu jovem como sempre.

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Nesse mês completo seis anos longe de Curitiba. No dia em que saí de lá, os quatro velhinhos mais queridos do mundo me abraçaram e beijaram em longa despedida. Eram todos meus vizinhos. Por cinco anos compartilhei intensamente minha vida com eles. Para chegar à minha casa, bem nos fundo do terreno do meu avô, tinha que passar pelo casarão do Dr. Arthur e da Dona Aladia e pela casinha da Ica e da Aci. Todos foram para mim exemplos tocantes em vários aspectos, muitos dos quais possivelmente ainda nem me dei conta. Confesso que os admiro mais hoje, inundado de saudade, nostalgia e lágrimas, do que quando convivemos. Culpa da maldita cegueira que nos impede de ver as coisas importantes quando é preciso vê-las. Enquanto reclamamos das folhas caídas no chão, não vemos a beleza vertiginosa dos galhos imensos dançando ao vento.

Desde que saí de lá, um a um, os quatro nos deixaram. Uma geração se foi. Minha filha mais nova mal os conheceu. Certamente não se lembrará deles. Eu, no entanto, jamais me esquecerei.

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Nos fins de tarde, quando subia a escadaria do longo corredor, a primeira visão que se abria atrás do portãozinho de ferro era a janela da casinha delas. O sol, a essa hora, batia de frente na casa banhando-a de ouro e refletindo como louco nos cabelos brancos e nos olhos que acompanhavam minha chegada. Era impossível não desviar do caminho direto à minha casa nos fundo e ir de encontro àqueles olhos. A porta se abria antes de eu chegar. Se sentasse no sofá para uma conversinha rápida, receberia invariavelmente suas mãos em minhas costas. Se falasse ou demonstrasse qualquer fiapo de cansaço ou desânimo com o longo dia enfrentado, suas mãos puxariam delicadamente minha cabeça até deitá-la sobre seu ombro magro mas aconchegante. E a ouviria sussurrar essa canção.

Almir Satter - Cabecinha no ombro.mp3


Encosta a tua cabecinha no meu ombro e chora
E conta logo a tua mágoa toda para mim
Quem chora no meu ombro eu juro que não vai embora,
que não vai embora, que não vai embora
(...) porque gosta de mim

Amor, eu quero o teu carinho, porque eu vivo tão sozinho

Não sei se a saudade fica ou se ela vai embora,
se ela vai embora, se ela vai embora
(...) porque gosta de mim

A suadade ficou.


Para Aci,
que viveu o Evangelho da forma mais intensa e pura que já vi,
e que certamente nunca soube disso.
Em memória.



Veja também:
[Ica]
Naquele Instante
[Aladia] Nos Bastidores
[Arthur] O Quarto Rei
[A casa] Catedral