31 de julho de 2008

Incríveis crentes e suas músicas maravilhosas


"O poeta pede para colocar sua cabeça nos céus.
É o lógico quem busca colocar os céus na cabeça.
E é a sua cabeça que racha."
Chesterton em 'Ortodoxia'.


Já escrevi aqui sobre os textos que mais me influenciaram no trecho mais recente da trilha que venho, aos trancos e barrancos, tentando percorrer. A lista precisa ser atualiza, por certo, porque já li outras coisas incríveis desde o último relato. Mas recentemente, influenciado pela prosa, percebi que faltava na minha lista poesia. Assim como descobri vida inteligente na prosa cristã, preciso espalhar a boa nova de que existe sensibilidade e criatividade na poesia desse país lamentavelmente gospelizado. É preciso compartilhar os lampejos de luz que irradiam de poetas sensíveis no meio da densa treva dos ministérios de louvor e seus mantras nauseantes.

Infelizmente devo lamentar o fato de que esse blog não deve ir muito além de sensibilizar um ou dois dos seus oito leitores. Mas vamos lá. Esta é minha humilde lista de sensíveis e ousados poetas cristãos brasileiros e suas músicas maravilhosas.

Sem dúvida o mais aclamado entre esses é o João. Impossível ouvir e não gostar. Já com muitos anos de estrada, poeta e profeta, vira e mexe vem com uma música provocante, direto na canela da instituição estagnada. Em Nome da Justiça, É proibido pensar e Tudo é vaidade são ótimos exemplos.

João Alexandre - www.joaoalexandre.com.br
Em nome da Justiça I Quem sou eu I República do amor I Tudo é vaidade


Outro que é figura carimbada e já tem os pés calejados é o Jorge Camargo. Suas músicas estão ficando cada vez mais profundas e densas. No link “sala de estar” do seu site tem algumas preciosidades de arrepiar. Amolece Meu Coração, com Rick Pantoja no piano, Heart of mine, Coragem. Só coisa boa. Sensibilidade para muito além da média.

Jorge Camargo - www.jorgecamargo.com.br
Amolece meu coração I Agostinho I Fale de amor I Além do Jardim I Pastores de Palavras I A Felicidade


Menos conhecidos, mas não menos espetaculares, estão dois figuras a respeito das quais, aqui nas bandas do sul, ainda não conheci ninguém que tenha ouvido falar. Terrível. E seguimos com nossas traduções meia-boca de rilsongues da vida. Silvestre e Stênio são imperdíveis.

Silvestre Kuhlmann - www.silvestre.mus.br
Louvor ao doador da vida I Chão de se arar I Supremo arquiteto


Stênio merece um pouco mais de atenção. O rapaz fisga o ponto mais doído do coração com melodia e poesia simples mas embebida em profundo significado. Se clicar nos links, acompanhe as letras com atenção. Cada estrofe vale a pena.

Stênio Marcius - www.steniomarcius.blogspot.com
Amigo do Vento I Barquinho I Estima I A Ùltima Canção I O Tapeceiro


Para quem conhece e ama a música e cultura do sertão nordestino, Diamanso é puro encantamento. Com criatividade impressionante e facilidade de cantar o evangelho sem os chavões cristãos e com profundos vínculos humanos, o cabra lembra a dupla de menestréis do sertão Elomar e Xangai. Sobre ele ainda é difícil encontrar informações na internet. Também completamente desconhecido aqui nas minhas redondezas. A música Patativa, do seu primeiro CD, me arrebatou. Mas todas as que ouvi são preciosidades.

Roberto Diamanso
Patativa


Conheci a música do Gerson graças a Henri Nouwen. Seu musical baseado no excelente livro “A volta do filho pródigo” é impecável.

Gerson Borges - www.gersonborges.com
Sem Direção
I Coração de Deus


Por incrível que pareça, esses são só alguns. Tem muita gente boa por aí (Arlindo Lima, Cintia e Silvia, Diego Venâncio, Dago Schelin...). Só falta os “levitas” e “ministros” abrirem seus olhos. Para esses, fica a dica de João no Apocalipse: quem tem ouvidos para ouvir, ouça.

Acabo de aprender a incorporar uma lista de reprodução do youtube. Se você der um play aí em baixo vai ver na sequência todos os vídeos linkados acima (excluindo o Patativa e Amolece meu coração, que não são links do youtube). Incrível.


Veja também:
Incríveis crentes e seus textos maravilhosos

Estar

28 de julho de 2008

Pipa

Subo lentamente a viela escura que me separa da ponte. O dia me foi insuportável. Passei silencioso e cabisbaixo pela porta de casa. Sabia que não me esperavam. Nem hoje, nem nunca. Há anos não esperam por mim. Desistiram, como quem desiste da pipa arrancada das mão pelo vento ou pelo cerol de outro moleque. E eu, como a pipa, vaguei sem rumo, sem destino, sem vigor, sem vida. Cambaleando ao vento, num vai-e-vem desgovernado, deixei-me levar.

Nas muitas noites de sarjeta, farrapo humano, semi-consciente, embebido em suco gástrico, sonhei com os últimos suspiros desse vôo desgovernado, com a proximidade do solo, com o inevitável fim. Nos sonhos, porém, eles estavam todos lá, de braços erguidos, correndo na minha direção, rindo, extasiados pela possibilidade de recuperar-me, seu bem mais precioso, fruto de suas mãos. E eu ria, e ria sem parar, em um êxtase descontrolado gritando – estou aqui, estou aqui!

Mas não correram. Apenas observaram a pipa ao vento. Lamentaram a perda por certo. Choraram, creio. Mas não lhes pareceu prudente correr o risco de atravessar essas ruelas, guetos e esquinas. Não lhes pareceu correto deixar seus compromissos para trás por uma pipa. Depois do choro, gritaram - maldita pipa, rebelde, inconseqüente! E viraram as costas. E tocaram a vida.

Eu olhei de longe, quando ainda muito alto, vi suas costas e chorei. Depois decidi deixar-me levar. E caí lentamente, por quanto tempo nem sei, até o beiral da ponte, de onde estou prestes a saltar.

BlogBlogs.Com.Br

24 de julho de 2008

The Beatles e o evangelho do Reino



Quando o movimento hippie despontou, os cristão ficaram de cabelo em pé. Apavoraram-se diante daqueles ideais. Trancaram-se dentro de suas igrejas, com as costas viradas para o mundo, olhos fechados, clamando por misericórdia. Agarraram suas crianças e protejeram-nas no mal. Temerosos e inseguros diante da loucura que se formava, fecharam os olhos para um fiapo de beleza que aparecia no centro do turbilhão. E, naturalmente, como fazem até hoje, mantiveram suas próprias loucuras isentas de julgamento.

Alheias à essa retração medrosa, pedras levantaram seu clamor. Do âmago das almas enebriadas por sexo livre e drogas, erguia-se um clamor semelhante ao de Paulo, que anunciava o início de um novo mundo onde não havia grego, nem judeu, circuncisão, nem incircuncisão, bárbaro, cita, servo ou livre. Uma fraternidade de homens.

Imagine que não exista nenhum país
Não é difícil de fazer
Nada porque matar ou porque morrer
Nenhuma religião também
Imagine todas as pessoas
Vivendo a vida em paz...

Imagine nenhuma propriedade
Eu me pergunto se você consegue
Nenhuma necessidade de ganância ou fome
Uma fraternidade de homens

Imagine todas as pessoas
Compartilhando o mundo todo.

Imagine - John Lennon
[tradução livre]

Aquela juventude transviada tinha um ideal. Muito pior do que isso, estava disposta a viver seu ideal. Criam nele a ponto de tentar torná-lo real. É claro que os meios são tão questionáveis quanto os resultados, mas o ideal era decididamente valioso e absurdamente semelhante ao Reino de Deus - paz e amor.

Em contraste com eles, nós, cristãos, nos encontramos hoje completamente inertes. Como Raul Seixas, permanecemos "parados, com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar".

Estou certo de que você já constatou que todos os anos seu celular, seu computador, os jogos que você utiliza - e tudo o mais - mudam: as funções multiplicam-se, as telas aumentam, colorem-se, as conexões da internet melhoram, etc. (...) Quem pode acreditar seriamente que vamos ser mais livres e mais felizes porque no ano que vem o peso de nosso aparelho de MP3 vai diminuir pela metade, ou sua memória duplicar? Conforme o desejo de Nietzsche, os ídolos morreram: de fato, nenhum ideal inspira mais o curso do mundo, só existe a necessidade absoluta do movimento pelo movimento. Rafael Campoy - citado em algum lugar que não encontrei mais...
Somos como ratos na gaiola. Nosso ideal de vida é correr naquela rodinha. Fazê-la girar e girar. Um celular novo, mais memória ram, carro novo, bicicleta nova.

O Evangelho, no entanto, é a proposta de um ideal pelo qual viver! A proposta de um Reino que já começou. "É chegado o Reino de Deus". “Venha a nós o Teu Reino”, orou aquele homem que jamais sonhou que um dia se tornaria um mero um adjetivo religioso.

O cristão, porém, jamais chegou a mover uma palha pelo ideal de Lennon, tão pouco pelo de Cristo. Está preocupado é com o ‘espiritual’. Suas preocupações e ênfases, seu relacionamento interesseiro com Deus, está quase sempre baseada numa devoção alienada. A única coisa não espiritual que envolve a devoção evangélica é o culto a Mamom. No mais, tudo gira em torno das almas e das sensações. É uma fé ectoplásmica.

Carecemos de uma reviravolta. Chega de gospel [sic]. Chega de louvor comercial. Precisamos cantar Beatles. Clamar pelo evangelho de Lennon, que sabia mais do Reino de Deus que nossos 'levitas' [sic].

21 de julho de 2008

Cadê o caroço

Incríveis histórias medíocres de montanha – a série

7.

O suprassumo da escalada na época, pelo menos para um piazito como eu, era ter a coragem de enfrentar as enormes, imponentes, assustadoras, desafiadoras, terríveis e temerosas paredes de granito do Marumbi. Já tinha escalado uma e outra viazinha no Lineu e no Paredão Preto, mas chegava a sonhar com as paredes realmente comprometedoras do local. Pescando as informações secretas que vazavam abafadas dos montanhistas de verdade, chegamos ao nome daquele que haveria de ser nosso primeiro grande desafio naquele conjunto de montanhas. O Caroço da Esfinge.

Fomos agraciados com um belíssimo croqui, feito de cabeça num naco de papel arrancado às pressas de algum lugar, pelo próprio autor da via (um deles).

Os preparativos para a nobre empreitada assemelhavam-se à um complexo ritual religioso de iniciação. Tudo organizado e planejado com o respeito de alguém prestes a pisar em solo santo.

O roteiro era simples. Acordar de madrugada, pegar o trem, descer na estação do Marumbi, seguir pela Noroeste montanha acima, até o local chamado ‘praça XV’, que deveria ser intuído no meio daquele matagal, um pouco antes da primeira janela. Na praça, a Noroeste ficaria para trás e desceríamos a encosta até cruzar um rio seco no fundo do vale e, voilá, a base do Caroço. Segundo o croqui, os primeiros grampos estariam bem acima na parede e teríamos que iniciar a escalada às cegas, seguindo por uma pequena fissura na rocha.

Foi exatamente o que fizemos. Depois de cumprir à risca todo trajeto, localizamos a fissura na base da parede. Segui por ela, na ponta da corda, por uns 20 metros e nada de grampo ou da bendita corrente que teria de estar por ali. Armei uma parada improvisada em um pequeno platô, utilizando um arbusto relativamente firme. Acocorado no platô minúsculo, seguia meu ritual mecânico e silencioso de esticar a corda para meu companheiro quando avistei um ponto negro minúsculo contrastando com o azul profundo do céu, surgindo por trás do Abrolhos, cruzando a Ponta do Tigre e lançando-se vertiginosamente pelo vale, observando tudo ao seu redor. A penugem parda e escura destacava o bico quase dourado, com a ponta curvada afiada como uma navalha. Naquele momento, tinha-se a nítida impressão de que absolutamente nada lhe escapava da visão. As pontas das asas e do rabo tremiam pelo movimento do vento enquanto a águia cortava o ar sem piedade. A certa altura, inclinou seu corpo para cima, mudando suavemente o plano de vôo, desenhando uma onda no céu, subindo levemente e reduzindo a velocidade como um gato que se prepara para o bote fatal. A cabeça e os olhos permaneciam fixos em algum ponto adiante de mim, mas um pouco abaixo. Encolheu as asas reduzindo-as à metade de sua envergadura e lançou-se em um bote definitivo rumo à vítima inocente que lhe serviria de alimento. Quando estava a ponto de cruzar a minha frente - e eu já podia ouvir o grito do vento sendo rasgado - desenhou, dessa vez muito mais abruptamente, uma nova onda no ar, batendo as asas abobalhadamente como o albatroz de Bernardo e Bianca. Foi nesse instante, quase parada no ar, que a ave virou a cabeça na minha direção, abriu as asas recuperando a compostura e, inclinando o corpo, planou suavemente até o platô onde eu estava. Pousou 2 metros ao lado, sem tirar os olhos de mim. Observou curiosamente cada suave puxada na corda, analisou os movimentos, a roupa e o equipamento. Nossos olhares se cruzaram algumas vezes naqueles segundos. Ela curiosa, eu maravilhado. Num movimento rápido, acompanhado pelo guincho espetacular das aves de rapina, voltou os olhos para o vale e precipitou-se novamente no vazio, possivelmente imaginando que tipo de figura patética eu era.

Daquele platô ainda tentamos subir mais alguns metros, mas a ausência de proteções começou a deixar a situação delicada demais e decidimos descer dali. Concluímos com muita propriedade que alguém deveria ter mudado a via de lugar e reservamos o restante do dia para conhecer toda a base da Esfinge.

Passamos ainda muitas outras noites sonhando com aquelas paredes.

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Acompanhe:
Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
1. Apresentação
2. O menino de asas
3. Queda livre

4. Às vezes falha
5. O Raio que o parta
6. Sopão
7. Cadê o caroço

17 de julho de 2008

Fugaz

Reuniram-se todos na sala de estar com a alma repleta de sonhos e a cabeça borbulhando idéias. Nenhuma, no entanto, resistiu à exposição. Ruiram todas, uma a uma. Mostraram-se frágeis, flácidas, escorregadias, fluídas, dispersas, informes.

Na cabeça, erguiam-se robustas, frondosas e indestrutíveis como uma figueira jovem. Expostas ao vento, voaram e desapareceram em algum lugar do vasto e insondável horizonte, como uma frágil semente de dente de leão.

A mente as protegia da dissolução. Soltas no espaço, a amplidão apoderou-se delas. Desapareceram por completo da presença daquele pequeno grupo. Quem sabe onde vão parar.

Despediram-se desanimados, mas ainda carregavam dentro de si os sonhos.

14 de julho de 2008

Sopão

Incríveis histórias medíocres de montanha – a série

6.

A chuva, apesar da terrível decepção e sofrimento potencial que trás a qualquer caminhante, é também, potencialmente, uma grande aliada à um contador de histórias. A maioria dos casos que ficam gravados na memória de um excursionista e, consequentemente, transformam-se em causos dignos de serem contados em rodas de amigos, seja em um boteco, ponto de ônibus, barraca ou cume de montanha, envolvem os desprazeres causados por essa dádiva de Deus, despejada graciosamente sobre justos e injustos.

Em uma de minhas primeiras visitas ao Pico Paraná, ponto culminante da impressionante Serra do Ibitiraquire, permitimos que um grupo inexperiente de aventureiros de sessão da tarde nos usasse como guias e tirasse proveito do nosso cavalheirismo, nobreza, boa-vontade e conhecimento em andanças montanhesas.

A coisa toda foi bizarra.

Começou na estrada de terra. Nós à pé, e os convidados de carro. Carona? Nem pensar. Iria sujar os tapetes do carrão. Como os motoristas não sabiam o caminho, nos acompanharam em todo trajeto. Patético.

No início da trilha, mais uma novela. As mocinhas que vieram ‘conhecer a natureza’, tinham trazido seus pertences espalhados no porta-malas, porque não cabiam em suas bolsinhas minúsculas. Mas isso não era problema. Nós, os experientes e educados pseudo-guias, estávamos equipados com modernas mochilas telescópicas. Confabulamos sobre o número de pessoas e as barracas necessárias, na esperança de poder abandonar algum peso e volume no carro, mas concluímos que seria imprudente. Nossos acompanhantes abelhudos, no entanto, ouviram a conversa e tiraram suas próprias conclusões. Sorrateiramente livraram-se de sua própria barraca, certos de que pessoas tão bondosas como nós cederiam um local seco e seguro para eles. Com um certo esforço coube tudo em nossas costas e iniciamos a caminhada.

O céu estava nublado, cinza chumbo, pesado, prometendo um dia daqueles. Tocamos montanha acima carregando peso para burro, enquanto os visitantes reclamavam da lama, da garoa, do cansaço, do mato, dos mosquitos, da fome, da sede e tudo mais que se possa imaginar. Chegamos ao campo 2 sem visibilidade alguma no horizonte. A garoa engrossou e armamos nossas barracas rapidamente. Ao final da labuta, percebemos que nossos acompanhantes permaneciam imóveis. Soubemos, naquele instante, de sua elegante decisão de deixar a barraca no carro para aliviar o peso, enquanto nós carregávamos suas tranqueiras. Graciosamente, como era de se esperar, cedemos uma de nossas barracas aos folgados e nos apertamos nas que sobraram.

Foi nessa noite, com outros quatro infelizes amontoados em uma barraca de três lugares, que tive meu primeiro contato com um tipo de impermeabilização muitíssimo interessante. A água entrava na barraca sem a menor cerimônia, mas, uma vez lá dentro, não conseguia mais sair. Nossas mochilas tornaram-se ilhas onde cada náufrago permanecia acocorado, tentando manter-se seco. Para aquecer o corpo gelado, arrumamos uma ilhazinha para o fogareiro e colocamos o miojão na panela, na esperança de que, engolindo algo quente, o frio terrível que nos doía nos ossos desse uma trégua. Mas como desgraça pouca é bobagem, minha ilha cedeu, jogando-me na água empoçada. O corpo reagiu de imediato, num movimento descontrolado, atingindo em cheio a panela e o fogareiro. O miojo quentinho virou um sopão gelado, diluído por toda a água da barraca. O jantar foi uma espécie de pescaria nojenta. O macarrão, catado com a mão naquela água gelada e suja, era despejado na boca como uma gosma pegajosa, lembrando aquelas cenas clichês de filme de terror, e descia gelado pela garganta.

A situação tornou-se inaceitável. Saímos todos daquela barraca miserável, implorando por vagas na vizinhança. Graças ao bom Deus meu irmão estava por ali com sua esposa e me cedeu um cantinho apertado, mas seco, em sua barraca minúscula. Os visitantes, tranquilamente acomodados em uma barraca emprestada, que nós carregamos e montamos, barraram os outros dois náufragos. Acharam desagradável demais permitir a entrada daquela gentalha molhada e suja naquela barraca sequinha.

Eu consegui dormir seco. Meus companheiros, sentados em suas ilhas, passaram a noite literalmente ensopados.

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Acompanhe:
Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
1. Apresentação
2. O menino de asas
3. Queda livre

4. Às vezes falha
5. O Raio que o parta
6. Sopão

10 de julho de 2008

Deus me disse

Um tempo atrás escrevi aqui mesmo sobre minhas sérias dificuldade acerca daquilo à que os cristãos costumam referir-se como "chamado". É fácil encontrar alguém que se sente chamado para isso, aquilo ou aquilo outro. Só está apto para determinadas funções o cristão que sente essa convocação específica e irrevogável.
Mas, se Deus um dia lançou um facho de luz sobre mim, ou sussurrou no meu ouvido, iluminando o caminho, revelando o próximo passo, eu jamais vi, jamais ouvi. Tudo que tenho são pensamentos, desejos, intenções, sensações. Sempre com uma ponta de dúvida, de receio. [Acerca do Chamado]
Depois de escrever, senti-me sozinho no mundo. Soltei o pensamento e ele voou para longe, me abandonando impiedosamente. Até que uns dias atrás voltou, com um ramo de oliveira no bico. O ramo foi extraído do assombroso livro "Feito de modo especial e admirável", de Paul Brand e Philip Yancey. Uma fantástica metáfora do corpo humano, repleta de curiosidades incríveis e aplicações precisas. Obrigado Paul.
Com muita freqüência, encontro cristãos que tendem a exibir a sua espiritualidade como uma aura do mundo sobrenatural. Segundo alguns, o cristão mais espiritual é alguém que afirma confiante: “Deus me disse que está na hora de eu comprar uma roupa nova” (...)

“Deus me disse” pode tornar-se uma maneira comum de falar.

Na verdade, eu acredito que a maior parte do que Deus tinha para me dizer já está escrito na Bíblia e cabe a mim estudar com diligência a sua vontade ali revelada. (...) Os universitários angustiam-se querendo saber que decisões tomar para o futuro,
esperando que Deus os alerte com um estonteante plano feito sob medida e
entregue pronto no endereço deles.

(...) O corpo de um atleta sabe o que a mente quer e está equipado e treinado para conseguir o que ele deseja. Da mesma forma, o cristão individual empregaria melhor o seu tempo aperfeiçoando a obediência prática diária àquilo que Deus já revelou, em vez de empreender ardentes buscas de algum segredo mágico e evasivo como o Santo Graal.


Paul Brand e Philip Yancey
Feito de modo especial e adminável

7 de julho de 2008

O raio que o parta

Incríveis histórias medíocres de montanha – a série

5.

Saímos em 12 pessoas abarrotadas dentro de uma Topic alugada. Passaríamos os próximos 5 dias juntos, num pé de serra, encurralados por grandes paredes verticais e dezenas de possibilidades de rotas para alcançar os benditos cumes. Não era a primeira vez que iríamos para lá, mas esperávamos ser a primeira vez que ninguém nos passaria a perna no local. Em outras visitas havíamos sido enganados por taxistas de Kombi abandonando-nos na beira da estrada, jurando de pé junto que a trilha começava ‘logo ali’; restaurantes fantasmas nos serviram, entre outras bizarrices, bistecas no osso, que já vinham mordidas da cozinha; e padarias com produtos superfaturados, especialmente para turistas trouxas. Dessa vez seria diferente. E como.

A expectativa era enorme. Naquela época os croquis de vias e trilhas eram raridades que valiam ouro. Tudo que tínhamos eram dicas sombrias e distorcidas que exigiam grande exercício de imaginação. O trato com a empresa que alugou a Van era pagar a estadia e alimentação do motorista. Dividimos uma barraca e nossos miojos com ele que, graças a Deus, achou a experiência extraordinária.

Chegamos na base das paredes de granito no fim da tarde. Tempo suficiente para nos lançarmos à primeira via. Parte do grupo ficou na base, organizando as barracas e o jantar enquanto o restante se espalhou pelas paredes.

Optamos por uma via fácil, para ser escalada junto com as esposas, só curtindo o visual. As informações coletadas com antecedência definiam a dificuldade da rota como 3º grau. Iniciamos a escaladinha na maior tranqüilidade. Com o passar dos metros, a coisa começou a complicar, não pela dificuldade técnica, mas pela total ausência de proteções na parede. Finalizamos o primeiro esticão diretamente na parada, 25 metros acima do solo, sem nenhum ponto de proteção intermediário. A situação se repetiu no segundo esticão, mas com um agravante. Alguns metros antes da parada surgiu repentinamente por trás da parede um toró de lavar até a alma. Descemos os dois lances de rapel debaixo de muita água e assustadores raios estourando muito próximos de nós. Já na frágil segurança da barraca úmida, encharcados mas felizes, dormimos sonhando com o dia seguinte.

Nos 3 dias que se seguiram, apreciamos um raro espetáculo da natureza. Foram 72 horas de chuva ininterrupta. Às vezes ela nos dava um fiapo de esperança reduzindo-se a uma finíssima garoa. Nesses breves momentos, quase todos saíam das barracas para alternar a umidade de dentro com a de fora. Quase todos. Um de nós conseguiu a proeza de passar todo esse tempo sem nem botar a cabeça para fora. Certamente se algum fiscal do Guinnes estivesse por ali, dava pra enquadrar o cara em algum tipo de recorde mundial.

O que tornou a viagem menos traumática foi a noite que passamos conversando com um morador do local, na boca do fogão à lenha da sua simpática casinha de madeira. Nós, habitantes da urbis, falávamos e gesticulávamos contando histórias, ora exagerando um pouco, ora mentindo descaradamente, possivelmente compensando as longas horas de imobilidade na barraca. O dono da casa nos observava com a curiosidade de quem observa pela primeira vez chipanzés correndo em uma jaula. No ritmo deliciosamente lento de quem mora no interior, alimentava o fogo que nos aquecia, sentado sobre os calcanhares como se estivesse em uma confortável cadeira na sala de estar.

Motivados pelo tempo chuvoso, nossas histórias rodavam o assunto das tempestades e raios nos cumes da montanha, dos cabelos erguidos pela estática, dos leves choques sentidos quando a mão tocava o solo úmido e dos horrores dessas sensações. Foi quando alguém olhou diretamente nos olhos daquele senhor, perguntando-lhe se ele mesmo não havia vivido alguma experiência interessante com tempestades e relâmpagos. Com movimentos lentos e o semblante inabalável de quem não entende em absoluto a nossa empolgação, aquele senhor finalmente abriu a boca:

- Uns anos atrás eu e meu irmão ‘tava roçano’ o mato ali atrás. Quando ele levantou a enxada, um raio pegou ele e matou.

O homem, com aquele típico olhar triste do interior, colocou mais um pedaço de madeira no fogo enquanto mantínhamos um profundo e constrangido silêncio.

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No último dia o sol brilhou a tempo de secar parcialmente as barracas. Nos despedimos do morro tomando uma garapa espremida à manivela na casa daquele senhor e conhecendo a espetacular coleção de plantas extraordinárias de sua simpaticíssima esposa.

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Acompanhe:
Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
1. Apresentação
2. O menino de asas
3. Queda livre

4. Às vezes falha

5. O Raio que o parta

3 de julho de 2008

Impulsos elétricos



[Você pode se perguntar:] Como posso saber se a idéia de Deus não é simplesmente uma série de impulsos elétricos presentes no meu cérebro? Responda-me agora: Como posso saber se esses impulsos elétricos não são o recurso escolhido por Deus para comunicar-me uma realidade espiritual que de outro modo eu não poderia conhecer?


Paul Brand e Philip Yancey
Feito de modo especial e adminável.