30 de outubro de 2008

Questão didática [2]

Mateus 23, 24, 25.


2. Interlúdio (O tempo e seus rumores)

Apesar da pergunta equivocada (quando?) dos discípulos e da respostas direta do mestre (não interessa!), o rabi dá uma canja para seus interlocutores e discorre sobre as coisas que haveriam de acontecer. Mas sua atenção, evidentemente, não está aí. Ele passar pelo assunto rápida e superficialmente, visivelmente disposto a atingir uma outra questão, que é o que realmente interessa, mas, como de costume, nem passou pela cabeça de seus seguidores. Para Jesus o que deve nos preocupar não é quando, não é um ponto qualquer perdido em algum lugar distante da inimaginável linha do tempo. Depois de passar de leve por alguns sinais genéricos do que haveria de vir, ele volta sua atenção à única coisa que realmente deveria nos interessar. O foco principal, e talvez o único, de Jesus é o que precisa ser feito aqui e agora por ninguém menos do que eu mesmo.

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Questão didática:
1. Destruição
2. Interlúdio
3. Só existe um quando

27 de outubro de 2008

Macacos me mordam

Incríveis histórias medíocres de montanha – a série

12.

Estávamos em Vassouras quando o policial nos parou, há 600 quilômetros da partida e 600 do destino. Eu no volante, com minha carteira de motorista em dia, mas os documentos do carro vagando no limbo, em algum ponto entre a origem e o destino. Cem quilômetros antes, quando chegávamos ao Parque Nacional do Itatiaia, nos demos conta de que os documentos ficaram em Curitiba, junto com a carteira do meu irmão, que vinha dirigindo até ali. Desfrutamos de dois belos dias de caminhada no parque, com algumas escaladinhas simples aqui e ali. Antes de pegarmos novamente a estrada, conseguimos pedir, por telefone, que meus pais enviassem pelo correio a carteira e os documentos para Governador Valadares. Dali para frente, assumi o comando do carro. O posto da polícia rodoviária estava sem energia elétrica e o policial nos abordou com uma lanterna na mão.

– Documentos, por favor.

Mostrei-lhe meus documentos e aguardei a reação.

– Documentos do carro.

Nosso roteiro incluía, além do Itatiaia, o morro do Ibituruna, em Governador Valadares – onde assistiríamos o casamento de um primo e voaríamos de parapente – a Serra da Caraça, Serra do Cipó e Serra da Moeda, em Minas, mais a Serra da Bocaina e Serra dos Órgãos, no Rio de Janeiro. Viajávamos no Fiesta ‘mil’ do meu pai. Eu, meu irmão e nossas esposas, além de todo equipamento para camping, escalada e dois parapentes.

– Não estão comigo, senhor policial. Devem, agora, estar viajando pelo correio até Valadares, nosso destino final, à 600 quilômetros daqui.

O homem me chamou para uma conversa particular. Acompanhei-o na escuridão até a guarita na beira da estrada. Apontou-me um placa em um canto escuro, indicando exatamente qual seria o valor da multa que eu teria que pagar, caso não encontrássemos outra solução. Minha consciência teimosa não me permitia ‘molhar’ a mão do ilustre policial. Apelei para a ignorância:

– Desculpe, senhor, mas minha religião não permite nenhuma solução alternativa à lei.

Com um misto de incredulidade, espanto e desdém, o policial me encaminhou até o seu superior, que ouviu a mesma ladainha religiosa. Deu certo.

– Se manda da minha frente, rapaz, antes que eu mude de idéia!

O pacote, no correio de Valadares, estava em nome do meu irmão. Para retirá-lo, ele precisaria apresentar um documento, mas seus documentos estavam justamente dentro daquele pacote. Mais uma novela. No Ibituruna, belo e famoso morro da região, onde pretendíamos voar de parapente, fomos barrados pela fiscalização. Nunca tivemos a documentação exigida pelo extinto Departamento de Aviação Comercial – DAC – que regulamentava e fiscalizava o vôo-livre na época. Fomos sempre voadores clandestinos.

Na serra da Caraça, paisagem de tirar o fôlego. Na serra do Cipó, roubaram nosso fogareiro, mas escalamos um bocado. Na serra da Moeda, um belo vôo. Na serra da Bocaina, um mergulho no mar dos ricos, em Angra dos Reis, e o ataque de um cachorro feroz. O ‘grand finale’ merece uma descrição mais detalhada.

Tínhamos informações superficiais sobre a trilha e a parede, mas o desejo de alcançar o cume era enorme. Um dos integrantes do grupo abandonou a empreitada pouco antes de chegarmos à base da parede, por conta de um fortíssimo desarranjo intestinal. Ao menos teve tempo de presenciar a cena improvável que se descortinou diante de nós.

Eles surgiram não se sabe de onde, movendo-se lentamente, em passadas largas, pelas copas das árvores. Vários filhotes viajavam confortavelmente agarrados às costas de suas mães. Os Monocarvoeiros são os maiores primatas das américas. Vivem em grupos de seis a doze indivíduos e estão ameaçados de extinção. O grupo passou a menos de 10 metros de nossas bocas abertas. O maior deles postou-se de frente para nós, nos encarando nos olhos, enquanto os demais passavam desconfiados mais atrás. Somente quando o último se afastou em segurança é que o líder que nos fitava seguiu lentamente seu caminho, mas sem nos tirar do seu campo de visão desconfiado. Lentamente, sumiram todos entre a vegetação.

Calcula-se que restem entre 200 e 1200 indivíduos desta espécie no planeta.

Nos perdemos na trilha e chegamos à parede não exatamente no ponto que pretendíamos. Encaramos a primeira via que apareceu e, até hoje, não sabemos o nome da maldita. Alcançamos o cume do dedo depois de quatro cordadas fáceis. Erramos também a descida. Nossa corda não chegava na parada e optamos por descer pela via que subimos, apesar das transversais que tiveram que ser desescaladas.

Férias como essas, nunca mais.

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Acompanhe:
Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
1. Apresentação
2. O menino de asas
3. Queda livre

4. Às vezes falha
5. O Raio que o parta
6. Sopão
7. Cadê o caroço
8. Do piso ao teto
9. A chave da terra de Malboro
10. Meia lua inteira
11. Gênesis
12. Macacos me mordam

24 de outubro de 2008

Questão didática [1]

Mateus 23, 24, 25.

1. Destruição

Depois de 3 anos vagando sem destino pelo interior do país, o líder daquele bando finalmente caminhou convicto para a capital. Se ele fosse realmente quem esperavam, certamente estaria rumando para armar a grande reviravolta que livraria seu povo da opressão e os colocaria de novo em posição de destaque sobre todos as outras nações. Quando subiu as escadarias do templo, seu olhar penetrante revelava que tinha algo em mente, que estava às portas de iniciar o processo que culminaria na retomada do poder e controle da nação que havia sido escolhida por Deus. Ao menos era essa a expectativa de seus seguidores. Até que tudo começou a ruir.

Com convicção impressionante, a plenos pulmões, tomado daquela espécie de coragem e ousadia que faz todos se calarem, disparou como um arqueiro flechas certeiras sobre as autoridades religiosas da época. Bispos, apóstolos, profetas, pastores e líderes. Os ungidos do Senhor olhavam atônitos para aquele galileuzinho e sua corja de seguidores, enquanto ele disparava:

- Cobras venenosas! Caixões lacrados! Limpinhos por fora e por dentro apodrecidos!

Em poucos minutos o homem destruiu um importante referencial construido a duras penas por séculos de tradição religiosa.

- Vocês ainda querem ter homens como modelo de comportamento ético? - gritava o galileu aos seus discipulos nas entrelinhas. - Ainda querem criar um referencial humano que faça o trabalho por vocês? Ainda querem criar e reverenciar um segundo nível religioso onde possam colocar algumas pessoas para que se tornem seus intermediários? Querem apontar para eles e orgulharem-se deles pelo que são? Pois eu vou lhes mostrar o que eles são! Não são nada mais do que qualquer outro homem. Não são nada mais do que vocês mesmos. Vivem tão somente de aparência. Nada mais!

No final do discurso, saiu consternado. Enquanto atravessava os arcos e colunas do templo rumo a escadaria, ouviu o comentário de seus discípulos.

- É verdade, aqueles homens não valem um tostão. Mas veja que belo templo Senhor. Esse templo, esse local, esse culto que prestamos, essa liturgia toda, essa romaria, esse centro de poder, controle e unidade religiosa e social da nossa nação, esse lugar é lindo. É impressionante.

Com um longo suspiro, sem desviar os olhos do horizonte, o mestre balbucia entre os dentes:

- Disso tudo, não vai restar pedra sobre pedra!

As palavras penetram como espada a alma de seus seguidores. Não bastava ao rabi destruir todo o referencial humano. Ele precisava ir mais longe. Destruiu também, em uma única frase murmurada, 4 mil anos de história. Arrancou a bóia da mão do náufrago à deriva e o abandonou sozinho na imensidão do mar. Não há referencial físico. Não há tradição religiosa. Costumes e crenças. Peregrinações e rituais. Sem o templo, tudo isso desaparece. O silêncio toma conta do grupo que ruma para o cume do monte das Oliveiras, já do lado de fora do muro da grande cidade. Mas o assunto não para por aí. No cume do morro e ainda tomados de pavor, seus seguidores, atordoados com a imensidão vazia do horizonte que se descortinava diante deles, indagam ao mestre:

- Quando? Quando isso vai acontecer?

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Questão didática:
1. Destruição
2. Interlúdio
3. Só existe um quando

16 de outubro de 2008

Senda negra

Uma senda negra rasga o coração da metrópole. O menino cão funga lixos e cachimbos, oculto pelo breu da viela cercada de hotéis de luxo e heliportos. Remexe a escória pútrida das esquinas de orelha em pé, atento a todo som e movimento que o atinge com cruéis lembranças de chutes, palavrões e abusos. Sabe ser fraco e vulnerável. Sabe da loucura que o envolve, que o agarra sem pudor, que já há muito lhe roubou o último fiapo de infância e humanidade. O menino é cão e o denso breu é desprovido de alma, moldado na mistura funesta de concreto e descaso. O último fiapo de alegria e esperança encontra-se na casa amarela e nos anjos que entram e saem de lá e vão ao encontro do menino cão nas madrugadas escuras. Mas são tantos meninos. E tantas noites.

“A colheita é grande, mas os trabalhadores são poucos.”
Lucas 10.2

13 de outubro de 2008

Gênesis

Incríveis histórias medíocres de montanha – a série

11.

No princípio criou Deus as montanhas, os vales e as falésias. E neles plantou os pequenos afloramentos rochosos, as paredes colossais, as fendas, fissuras, chaminés e tetos, e as espantosas plantas rupestres endêmicas. E cercou-os com o vôo provocante dos urubus, os mares de nuvens e o efeito alucinante provocado pela refração dos raios de sol na densa neblina que envolve os corpos dos montanhistas solitários, cercando-os de uma aura multicolorida, em eventos tão físicos quanto espirituais. E criou também os mocós, as tempestades, as nuvens galopantes abraçando carinhosamente o contorno do relevo, o vento gelado, os platôs improváveis e abençoados, as agarras exatas nos lugares exatos e aquele pequeno arbusto impossível, isolado em centenas de metros de rocha vertical, agarrado à parede com milhares de raízes, como fios de cabelo, presas em saliências minúsculas. E viu Deus que isso era bom. Ah, e como era bom.

Depois fez o homem e a mulher, e colocou-os em um jardim, no vale entre dois grandes rios, mas os fez olhar para os montes e disse-lhes: “Andem por todos os vales e bebam de todos os rios, mas saibam que somente no cume desses montes encontrarão a parte que lhes falta. Pois quando os fiz, retirei parte de vocês, e plantei em algum ponto de alguma dessas montanhas.” E foi nesse dia que nasceu no homem o desejo de conhecer todos os cumes e faces e paredes de todas as montanhas. Jamais, em qualquer das aventuras, travessias e escaladas que o homem empreendeu desde sua criação, pretendeu ele algo mais do que encontrar-se a si mesmo.

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Eu abri os olhos para esse desejo latente quando observava, em uma pedreira abandonada, alguns cabeludos com calças de lycra ridículas, presos à cordas coloridas, pendurados pela ponta das mãos e dos pés, movendo-se com precisão felina pelas paredes de granito cinza. Depois daquele dia, uma sucessão de fatos coincidentes conduziram-me definitivamente à prática desse esporte não-esporte.

Naqueles tempos remotos, não tínhamos acesso a informação alguma. Equipamentos custavam tanto quanto nosso próprio fígado. Não sabíamos nada sobre cursos e não havia internet, nem google (santo Deus, como sobrevivíamos?). As informações estavam devidamente escondidas em locais secretos e inacessíveis. Cavocávamos onde podíamos para encontrar algo que nos conduzisse com segurança, nos tortuosos e confusos caminhos que trilhávamos, mas dependíamos muito mais da nossa imaginação. Em muitos casos, nossas criações eram absolutamente absurdas. Vou lhes contar, em segredo, algumas delas.

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Nossa primeira escalada foi na mesma pedreira onde encontramos aqueles alienígenas cabeludos. Amarramos a corda, em cima do bloco rochoso, em vários pontos de concreto que estavam abandonados por lá. Tínhamos adquirido, à muito custo, um único mosquetão mimado por todos, e uma única cadeirinha. Amarramos uma vítima na ponta da corda, que passava pelo mosquetão, lá em cima, e descia até a tampa de um bueiro. Passava por lá e seguia até nosso grupo. Amarramos a corda na cintura do mais pesado de nós e o restante segurou firmemente. Enquanto a vítima tentava escalar alguma coisa, a turma agarrada na corda em fila indiana caminhava para mantê-la tensionada. Em várias situações, içávamos a vítima que não conseguia vencer determinados pontos da parede. Feche os olhos e tente imaginar a cena, sem rir, nem chorar.

Depois dessa lamentável experiência, começamos a evoluir rapidamente. Eu e meu parceiro fiel (irmão camarada) compramos um único par de tênis de escalada. Íamos para montanha com nossos três mosquetões e encarávamos as vias que nos pareciam mais fáceis. Tínhamos também um freio oito e um maione feito em casa (que hoje em dia ninguém sabe mais o que é). Um mosquetão ficava com o segurança e o guia escalava com os outros dois. A cada duas costuras, o infeliz tinha que buscar o mosquetão de baixo. Chegando na parada, quando a via era mais difícil, o tênis era lançado para o segundo. Num desses lançamentos, o par caiu dentro de uma fenda estreita, uns dois metros rocha adentro, entalado entre as paredes, à dois metros do chão. Filho único de pai solteiro, aquele par de calçados tinha valor inestimável. Acreditei que seria possível resgatá-lo e entrei de cabeça na fenda. O peito e as costas roçavam na pedra áspera enquanto puxava o meu próprio corpo em direção àquele funil, sem parar para pensar no retorno. E sucedeu conforme o previsível. Alcancei o calçado, mas entalei.

Com o tronco travado firmemente entre as duas paredes de rocha, praticamente perdi a capacidade de dilatar o peito e encher o pulmão de ar. Clamei por socorro com desespero suficiente para fazer meu irmão rapelar com certa urgência para o resgate da sardinha enlatada. Com goles pequenos e rápidos de ar, como a gestante aprende a fazer no curso ‘parto sem medo’, mantive a mente oxigenada enquanto desenvolvíamos em conjunto alguma engenharia capaz de me sacar daquela situação humilhante. Acabei, depois de muito esforço, e sem soltar o par de tênis da mão, conseguindo a liberdade. Apesar da estupidez da situação, minha vida, ali, esteve por um fio.

O próximo passo na nossa vertiginosa ascensão no mundo das escaladas era natural. Encontramos aquela parede virgem cercada por um pântano fétido e ouvimos o clamor da rocha, ansiando ser escalada. Lançamo-nos em detalhada investigação sobre os mistérios da conquista. Clifs, rurps, nuts, estribos e uma série de novos termos passaram a enriquecer nosso vocabulário. Obviamente tínhamos acesso somente às palavras. Para a primeira via que abrimos, tivemos que usar nossa criatividade e inconseqüência. Entortamos algumas chapas de metal e fizemos nossos próprios clifs. Muito bons, por sinal. Compramos brocas com ponta de vídea e uma bela marreta... de 3 kg. Além disso, selecionamos algumas chaves de boca bem robustas da nossa caixa de ferramentas, que usamos como proteção em algumas fissuras. Os primeiros furos foram feitos assim mesmo. Clifs caseiros, chaves de boca, estribos feitos com corda de varal e uma marreta de 3kg batendo diretamente sobre as brocas, sem mandril. Além de terminarmos o dia com o braço latejando pelo peso da marreta, quebramos todas as brocas. Nas semanas seguintes descobrimos que uma marretinha de 300g seria suficiente, e conseguimos um belo mandril emprestado. Com esse arsenal abrimos três vias de 15 a 20 metros onde hoje se encontra um famoso teatro. O pântano virou um lago repleto de peixes e patos, e tem até uma cachoeirinha. Mas o acesso às vias foi proibido.

O engraçado foi ver, semanas depois da proibição, uma campanha publicitária convidando o Brasil inteiro para fazer turismo em Curitiba. Uma das cenas de destaque era o recém inaugurado teatro, com a bela parede de granito ao fundo. Então a câmera viajava em direção à uma dupla de escaladores na via que abrimos com nosso suor e sangue, mostrando, em um momento mágico, a fusão de cultura, esporte, lazer e meio-ambiente. Politicagem miserável. Propaganda enganosa. Ninguém nunca mais pode escalar ali.

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Acompanhe:
Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
1. Apresentação
2. O menino de asas
3. Queda livre

4. Às vezes falha
5. O Raio que o parta
6. Sopão
7. Cadê o caroço
8. Do piso ao teto
9. A chave da terra de Malboro
10. Meia lua inteira

11. Gênesis

9 de outubro de 2008

A vaquinha e a mansão

Recebi um email dia desses. Uma historinha famosa dessas que circulam em textos, palestras e power-points por aí. Imediatamente pensei no outro lado da história. Não pude evitar. Escrevi e guardei por um bom tempo. Resolvi postar. Quem sabe seja útil pra alguém. Primeiro vem a original. Logo abaixo, uma outra possibilidade:

História da vaquinha – a original

Um Mestre da sabedoria passeava por uma floresta, com seu Jovem discípulo, quando avistou ao longe um sítio de aparência pobre, e resolveu fazer uma breve visita. Durante o percurso ele falou ao aprendiz sobre a importância das visitas e as oportunidades de aprendizado que temos, também com as pessoas que mal conhecemos. Chegando ao sítio constatou a pobreza do lugar, sem acabamento, casa de madeira e os moradores, um casal e três filhos, vestidos com roupas sujas e rasgadas. Aproximou-se do senhor, que parecia ser o pai daquela família, e perguntou:

- Neste lugar não há sinais de pontos de comércio, nem de trabalho. Como vocês sobrevivem"?

Calmamente veio a resposta:
- Meu senhor, temos uma vaquinha que nos da vários litros de leite todos os dias. Uma parte nós vendemos ou trocamos na cidade mais próxima por outros gêneros de alimentos. Com a outra parte fazemos queijo, coalhada, etc., para o nosso consumo... e assim vamos sobrevivendo.

O Mestre agradeceu a informação, contemplou o lugar por uns momentos, despediu-se e foi embora. No meio do caminho, em tom grave, ordenou ao seu fiel discípulo:

- Pegue a vaquinha, leve-a até o precipício e empurre-a lá para baixo.

Em pânico, o jovem ponderou ao Mestre que a vaquinha era o único meio de sobrevivência daquela família, Percebendo o silêncio do Mestre, sentiu-se obrigado a cumprir a ordem. Assim, empurrou a vaquinha morro abaixo, vendo-a morrer. Essa cena ficou marcada na memória do jovem durante alguns anos. Certo dia, ele decidiu largar tudo o que aprendera e voltar ao mesmo lugar para contar tudo àquela família, pedir perdão e ajudá-los.

Quando se aproximava, avistou um sítio muito bonito todo murado, com árvores floridas, carro na garagem e algumas crianças brincando no jardim. Ficou desesperado imaginando que aquela humilde família tivera que vender o sítio para sobreviver. Apertou o passo e ao chegar lá foi recebido por um caseiro simpático, a quem perguntou sobre a família que ali morou há alguns anos.

- Continuam morando aqui - respondeu rapidamente o caseiro.

Surpreso, ele entrou correndo na casa e viu que era efetivamente a mesma família que visitara antes com o Mestre. Depois de elogiar o local, dirigiu-se ao senhor que era o dono da vaquinha que havia morrido:

- Como o senhor conseguiu melhorar este sítio e ficar tão bem de vida?

A resposta veio com entusiasmo:
- Tínhamos uma vaquinha que caiu no precipício e morreu. Daí em diante tivemos que aprender a fazer outras coisas e desenvolver habilidades que nem sabíamos que tínhamos. Assim, conseguimos conquistar o sucesso que seus olhos vêem agora!


História da mansão – uma outra possibilidade

Um Mestre da Sabedoria passeava por uma floresta com seu jovem discípulo, quando avistou ao longe uma fazenda enorme com uma mansão no ponto mais alto da propriedade, e resolveu fazer uma visita.

Durante o percurso ele falou ao aprendiz sobre a importância das visitas e as oportunidades de aprendizado que temos, também com as pessoas que mal conhecemos.

Chegando à mansão, constatou a riqueza do lugar, os carros luxuosos, o heliporto, a piscina, os empregados e o jardim impecável. Avistando um senhor que varria a grama, aproximou-se dele e perguntou:

- É o senhor o dono desse lugar?

- Não senhor. Sou só o jardineiro.

- E como faço para falar com o proprietário?

- É difícil. Ele não fala com qualquer um. E raramente está em casa. Passa a maior parte do tempo viajando, trabalhando, de um lado pra outro. Quando chega aqui, está sempre muito cansado e não tem ânimo para falar com ninguém. Normalmente nos pede para afastar todo visitante, dizer que não está, não pode atender.

- Ele não tem família? Filhos? – perguntou o sábio mestre.

- As crianças passam a manhã na escola e a tarde fazem uma série de atividades acompanhados da babá. Chegam em casa só de noite. E a esposa não gosta muito de vir ao jardim. Sente-se muito solitária e passa a maior parte do tempo sozinha ou conversando com alguém no computador.

O Mestre agradeceu a informação, contemplou o lugar por uns momentos, despediu-se e foi embora. No caminho, encontrou, um pouco mais à frente, casas simples, com gente simples na varanda e crianças descalças correndo livremente pelo jardim. Os maiores ajudavam um adulto a consertar o telhado, enquanto contavam piadas e riam-se uns dos outros. Podia-se sentir o cheiro doce de um pequeno bolo de fubá que descansava no parapeito mal acabado da varanda. Parou para observar a casa e foi imediatamente convidado à sentar a sombra. As crianças se reuniram em torno do mestre, cochichando, apontando e dando risadas. Uma senhora roliça e sorridente saiu da casa e, ao ver o homem, percebendo que caminhara muito e estava cansado, ofereceu-lhe água.

Pouco tempo depois, com o telhado já consertado, todos reuniram-se em torno do sábio desconhecido, ouvindo suas histórias e repartindo as migalhas do bolo de fubá. Ao longe, o mestre observou um homem caminhando sozinho na estrada. Dois cachorros surgiram do mato e, latindo e abanando freneticamente o rabo, correram na direção dele. As crianças acompanharam os cães e fizeram uma grande festa em torno daquele senhor. Ao se aproximarem, o mestre o reconheceu. Era o jardineiro da mansão.

Depois de muita prosa, o mestre e o discípulo seguiram seu caminho. O mestre, com um sorriso maroto no canto da boca, perguntou ao discípulo:

- Você entendeu, entre as duas famílias que conhecemos hoje, qual delas alcançou o sucesso?

- Entendi, – respondeu o discípulo – entendi.

E seguiram seu caminho.


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Veja também:
Felicidade e sucesso
Nossa única esperança de redenção

6 de outubro de 2008

Sala vazia

Sozinho num canto da sala vazia as paredes mal pintadas erguem-se como cela de uma prisão voluntária. A noite está abafada e o ventilador de teto não funciona. O encontro deveria ter acontecido há uma hora. As palavras que inundam o coração alvoroçam-se ansiosas na língua muda, mas não há quem ouça. É terrível o vazio da sala que comprime todo o ambiente em angustiante mornidão. O tempo precipita-se impiedoso e a sala continua vazia. Não há mais esperança. Melhor pegar as coisas, as palavras inclusive, e voltar para casa.


Vá rapidamente para as ruas e becos e traga os pobres, os aleijados, os cegos e os mancos. (Lc 14:21)