29 de dezembro de 2008

Resgates compulsórios [5]

Incríveis histórias medíocres de montanha – a série

18.

No princípio, parecia bêbado. Andava cambaleante, trôpego, com os braços soltos, balançando loucamente conforme o corpo se deslocava aos trancos pela trilha íngreme. Conforme nos aproximávamos, pude perceber manchas de sangue na camisa. Olhei desconfiado. O rapaz caminhava convicto, sem considerar nossa presença. Não levava nada consigo. Mochila, bolsa, sacola, pochete; nada. Seguia de mãos vazias, sem olhar para trás. Perguntei gentilmente se estava tudo bem, se precisava de alguma ajuda, e ele parou. Virou lentamente, fora do prumo, com o tronco arqueado para esquerda. Quando me olhou de frente, vi o buraco pouco acima da testa, e o sangue escorrido pelo rosto e pela camisa. Me olhou com um olhar de peixe, absolutamente indiferente, assustadoramente inexpressivo, e respondeu calmamente:

- Está tudo bem.

- Rapaz. Você não está bem não. Está sangrando. Tem uma baita machucado na cabeça!

Ele olhou para si mesmo com espanto, tateou a cabeça desconfiado, sentiu a ferida, olhou o sangue na mão, franziu a testa pensativo e focalizou o infinito com os olhos por alguns segundos. Depois, virou-se calmamente para frente e seguiu caminhando cambaleante. Desci ao lado dele o tempo todo, conversando e apoiando seu corpo trôpego. Aos poucos foi colocando a cabeça em ordem. Lembrou do tombo e reconheceu assustado que estava machucado e precisava de ajuda. Acompanhei o rapaz até sua casa, no Bairro Alto. Prometeu que dali seguiria para o pronto socorro com seu pai. Despediu-se agradecido e nunca mais o vi.

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Acompanhe:
Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
1. Apresentação
2. O menino de asas
3. Queda livre

4. Às vezes falha
5. O Raio que o parta
6. Sopão
7. Cadê o caroço
8. Do piso ao teto
9. A chave da terra de Malboro
10. Meia lua inteira
11. Gênesis
12. Macacos me mordam
13. O Eterno
14. Resgates compulsórios 1

15. Resgates compulsórios 2
16. Resgates compulsórios 3
17. Resgates compulsórios 4
18. Resgates compulsórios 5

22 de dezembro de 2008

Resgates compulsórios [4]

Incríveis histórias medíocres de montanha – a série

17.

A noite havia caído um pouco precocemente, empurrada pela chuva. Descíamos a trilha encharcados e à luz de lanternas. Não era nada tão complicado para quem já havia passado por ali centenas de vezes. Difícil mesmo era estar ali, naquela situação, sem lanterna, e sem conhecer o caminho. Pois foi exatamente nessa condição que encontramos os dois casais na trilha. Caminhavam na escuridão total, tateando o mato, um pé depois do outro, quase sem sair do lugar. Ainda tinham um longo percurso até chegar ao destino.

Solícitos como sempre, nos oferecemos, conforme havíamos aprendido na escola dominical, para ser lâmpadas para os pés, e luz para o caminho. As mulheres, infinitamente mais sábias e humildes que qualquer marmanjo, aceitaram na hora. Os homems, primatas pouco evoluídos e carentes de mostrar sua virilidade diante de seus pares, tentaram desconversar e seguir adiante na escuridão, mas não foram longe. Depois de sair da trilha algumas vezes, e depois de alguns tombos hilários, cederam e aceitaram nossa luminosa companhia.

Acompanhamos lentamente os casais, apoiando, escorando, iluminando, esperando, incentivando, motivando, até chegarmos à estrada de terra. Íamos seguindo pela estrada, percorrer o longo trecho até o ponto de ônibus e encarar a longa espera e a longa viagem até o centro, que precederia a longa caminhada até em casa, quando percebemos que nossos companheiros dirigiram-se sorrateiros para a beira do caminho em direção à dois belos carros estacionados. Que alegria, carros! Veículos quentinhos e rápidos. Iluminamos o caminho até eles. Iluminamos as fechaduras para facilitar a introdução da chave. Iluminamos as mochilas, o porta-malas. Iluminamos as portas batendo, os acenos com as mãos, a partida, o adeus. Iluminamos a estrada vazia e o longo percurso até o ponto de ônibus. De lá, seguimos encharcados e gelados para casa.

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Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
1. Apresentação
2. O menino de asas
3. Queda livre

4. Às vezes falha
5. O Raio que o parta
6. Sopão
7. Cadê o caroço
8. Do piso ao teto
9. A chave da terra de Malboro
10. Meia lua inteira
11. Gênesis
12. Macacos me mordam
13. O Eterno
14. Resgates compulsórios 1
15. Resgates compulsórios 2
16. Resgates compulsórios 3
17. Resgates compulsórios 4

Natal 2008

Minha homenagem.


Feliz Natal.


15 de dezembro de 2008

Resgates compulsórios [3]

Incríveis histórias medíocres de montanha – a série

16.

Certo dia, enquanto usufruíamos daquela rocha maravilhosa, desgastando as pontas dos dedos, deliciados pela dor provocada pelos cristais rasgando a pele, fomos solicitados para um socorro. As gurias estavam nervosas indicando seu amigo, que fora também o guia daquela aventura, e vinha morro abaixo pulando em um pé só. Nos dispusemos de pronto a acompanhar o rapaz. Mas macho que é macho, herói que é herói, guia que é guia, não pede água. O rapaz era gigante. Perto de dois metros, cada coxa devia ser maior que a minha cintura. Saiu saltitando, obstinado, feito um saci, suave como um mastodonte. Tentamos alertar-lhe sobre a pressão no joelho, os riscos de torções e tropeções, mas ele seguiu pulando, confiante no seu taco. As meninas o acompanharam angustiadas e nós voltamos à carga.

Enquanto nos preparávamos para voltar às rochas, as moças retornaram, ofegantes, com a notícia inevitável. Descemos até o rapaz com mala e cuia. Não teríamos mais tempo para escalar mesmo. Empacotamos todo o equipamento e fomos ao encontro do herói, que estava desabado num canto da trilha, gemendo como bambu no vento. Devia pesar uns 150 quilos, o infeliz. Foi apoiado em nossos ombros até o ponto de ônibus. Dias depois, recebemos a notícia de que havia quebrado os dois tornozelos. Dizem por aí, com muita propriedade e pouca educação, que a inveja é uma merda. O orgulho também é.

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Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
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2. O menino de asas
3. Queda livre

4. Às vezes falha
5. O Raio que o parta
6. Sopão
7. Cadê o caroço
8. Do piso ao teto
9. A chave da terra de Malboro
10. Meia lua inteira
11. Gênesis
12. Macacos me mordam
13. O Eterno
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11 de dezembro de 2008

O vento

Vivemos em um tempo de controle total. Tá tudo dominado, diria o poeta do funk. Desde a dor de cabeça, que aliviamos com analgésico, passando pela temperatura do escritório, do quarto e do carro, devidamente condicionada, até a proliferação da espécie (graças à Deus). Sabemos previamente quando e para quantos filhos haveremos de entregar esse mundo mal cuidado para que, se tudo der certo, eles dêem um jeito na porcaria que andamos fazendo. Um final de semana prolongado pede consulta à meteorologia. Se não aceitarem o cartão, temos cheque. Se não aceitarem o cheque, um bocado de dinheiro vivo pra prevenir. Tudo absolutamente sob controle. Tudo planejado. Planejamos nosso futuro com planos de saúde, seguros, aplicações e previdências. Lutamos para evitar toda e qualquer possibilidade de solavanco no percurso.

O inesperado é nosso maior terror!

Na ânsia por um mundinho seguro direcionamos nosso tentáculos de controle e posse também para o mais imponderável dos alvos. Queremos (o cúmulo da pretensão) ter Deus sob controle. Daí vem a teologia alienada, os compêndios de doutrinas, as 4 leis espirituais, o apelo evangelístico que, se aceito, garante uma vaga no céu, o curso de batismo, a romaria dominical aos púlpitos sagrados, as correntes e os jejuns. Tudo em busca do controle e da segurança. Se eu fizer tudo direitinho, vai dar tudo certo. Metemos Deus no bolso, como nosso talismã. Temos ele todinho explicado em nossa cartilha e nos muitos cursos que fizemos e ainda faremos. Estigmatizamos os dons, transformamo-os em cargos, organizamo-os em ministérios e planejamos o calendário anual.

Nos resta, agora, aplicar a receita e papar o bolo.

A loucura que nos incomoda, que é nossa pedra no sapato, é a contragedora observação revelada nas desorganizadas páginas do novo testamento. O Cristo nos é revelado inesperado, intempestivo e selvagem como Aslam. Não se pode prever um passo daquele que, há dois mil anos, tentamos desesperadamente conter e controlar. Afirmam que o Espírito é vento. E onde anda o vento? Para onde vai? Quem o controla? Quem o mantém? Quem o retém?

Vento retido não é vento. Vento só é vento quando em movimento. E quanto maior e menos previsível ele é, tanto mais conhecemos sua força e tanto mais dobramo-nos diante de sua glória. Minha esperança e oração é que o vento seja forte o suficiente para me livrar do controle, rasgar as velas, arrancar o timão de minhas mãos, colocar-me à deriva. Tento, ao menos, convencer-me disso. Mas sei que minha alma anseia mesmo é pelo porto seguro, quente e confortável, que não exige nada de mim.

Gladir Cabral e João Alexandre cantam isso como ninguém:
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Amigo Vento - Gladir Cabral - CD Claridade
O Vento - Gladir Cabral - CD Cantos e Sonhos
O Vento - João Alexandre - CD Acústico

8 de dezembro de 2008

Resgates compulsórios [2]

Incríveis histórias medíocres de montanha – a série

15.

Nos primeiros e empolgados anos de montanhismo, passava boa parte do meu tempo nos fundos de uma loja do ramo, onde havia um pequeno muro de escalada. Matei muita aula para brincar ali. Aparecia sempre atrasado nas aulas de desenho mecânico, com os dedos encardidos de magnésio e hipersensibilizados pelas agarras altamente abrasivas que se usava antigamente. Segurava a lapiseira com a mão tremendo e exalava aquele cheiro típico de magnésio, poeira, suor e nylon. Numa dessas noites, enquanto matava aula com a nobre intenção de me tornar um exímio escalador, encontrei uma espécie inédita de saco de dormir gigante no meio da habitual bagunça de agarras, tecidos, nylons, lã sintética, pedaços de cordas e equipamentos velhos. Não tinha buraco para cabeça. Fechava inteiro, de um lado a outro, e possuía estranhas alças nas laterais. Sem titubear, resolvi experimentar a novidade. Estava lá dentro, com o zíper fechado, quando ouvi aquela voz fúnebre:

- Onde é que está aquele saco onde carregamos o morto ontem?

Um rapaz havia despencado de duzentos metros em um acidente besta no Marumbi. Seu corpo foi carregado, no dia anterior, no saco onde eu me encontrava. Foi meu primeiro contato com a tragédia montana.

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Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
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2. O menino de asas
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6. Sopão
7. Cadê o caroço
8. Do piso ao teto
9. A chave da terra de Malboro
10. Meia lua inteira
11. Gênesis
12. Macacos me mordam
13. O Eterno
14. Resgates compulsórios 1
15. Resgates compulsórios 2

4 de dezembro de 2008

Em todos os cantos

Estava sujo de lama quando o vi. Os olhos cheios de lágrimas que escorriam revelando finas linhas de pele escura sob o lodo malcheiroso da enchente. Chorava entre as casas destruídas, entre os destroços, entre o desespero. Vi o amor escorrendo como lágrima em dor e angústia e o desejo de abraçar a todos.

Vi-o também caminhando convicto carregando móveis, roupas e eletrodomésticos completamente destruídos, escorrendo suor, juntando entulhos, limpando bueiros.

Encontrei-o fardado, em tanques e caminhões, carregando macas. Vislumbrei-o de longe, chorando e assustado em casas inacessíveis.

Vi-o passando fome, bebendo água contaminada.

Observei a força de seus braços carregando alimentos e colchões. E vi o misto de tristeza e esperança em seus olhos enquanto separava roupas, brinquedos e comida nos galpões que recebiam doações.

Encontrei-o criança, inseguro, agarrado na saia da mãe; e idoso, suportando o rombo que lhe rebentou a alma enquanto toda sua vida deslizava em avalanches de lama, árvores, telhas e história.

Abracei-o, enfim, num canto isolado e inacessível, e choramos juntos.

Nos últimos 10 dias, Deus estava por todos os cantos em Blumenau.

1 de dezembro de 2008

Resgates compulsórios [1]

Incríveis histórias medíocres de montanha – a série

14.

Se você é um freqüentador assíduo de montanhas, fatalmente, mas cedo ou mais tarde, vai encontrar alguém precisando de ajuda. Perdidos, machucados, bêbados, drogados, apavorados, receosos, inseguros, neuróticos, acrofóbicos, frescos ou carentes, não importa, alguém, em algum momento, ou em vários, estará à deriva entre vales e cristas, sem saber para onde ir, como ir ou sem condições de ir. Encontrei, em minhas caminhadas por aí, todos os tipos acima em situações cômicas, trágicas ou tragicômicas. Os dias de procissão foram, de longe, os grandes campeões. Centenas de pessoas subiam o morro. Algumas dúzias para a missa lá em cima. O restante para bagunçar mesmo. Descíamos vários corpos em coma alcoólico, e alguns outros completamente alienados por um entorpecente qualquer. Os sãos também davam trabalho torcendo o tornozelo, despencando nas rampas de rocha próximas do cume, tendo crises de asma, pressão baixa ou canseira aguda. E nós lá, voluntariamente, graciosamente, encarnando algum tipo de santo montanhês altruísta, carregávamos essa gente morro abaixo.

Mas nem só de procissão vivem os acidentes.

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Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
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2. O menino de asas
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6. Sopão
7. Cadê o caroço
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10. Meia lua inteira
11. Gênesis
12. Macacos me mordam
13. O Eterno
14. Resgates compulsórios 1