26 de fevereiro de 2009

Menino

Não! Não posso, não devo, não quero viver como toda essa gente insiste em viver. Não! Não posso aceitar sossegado toda essa sacanagem, toda essa injustiça, toda essa miséria. Não dá para engolir tanta safadeza, tanta cara de pau. Não! Não dá para aceitar o egoismo e o cinismo que cresce dentro de mim e de cada um e nos devora a todos.

Ah! menino que habita em mim, que se esconde num canto de minhalma. Assobia, sussurra, canta, grita, chora, me estende a mão! Me mostra o calor do sol no meio dessa gélida escuridão. Me fala de amizade, respeito, caráter. Me faz crer na bondade. Me enche de alegria. Inunda-me de amor. Sim! Me faz levantar e correr e dançar transbordando esperança e graça.

Contagia a mim para que eu possa contagiar a outros.


"Eu lhes asseguro que, a não ser que vocês se convertam e se tornem
como crianças, jamais entrarão no Reino dos céus." Mateus 18:3






Bola de Meia, Bola de Gude

Milton Nascimento

Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão

Há um passado no meu presente
Um sol bem quente lá no meu quintal
Toda vez que a bruxa me assombra
O menino me dá a mão

E me fala de coisas bonitas
Que eu acredito
Que não deixarão de existir
Amizade, palavra, respeito
Caráter, bondade, alegria e amor

Pois não posso, não devo, não quero
Viver como toda essa gente
Insiste em viver
E não posso aceitar sossegado
Qualquer sacanagem ser coisa normal

Bola de meia, bola de gude
O solidário não quer solidão
Toda vez que a tristeza me alcança
O menino me dá a mão

Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto fraqueja
Ele vem pra me dar a mão


Originalmente escrito para Música Cristã Brasileira.

23 de fevereiro de 2009

O carnaval do crente - de novo

Se preguiça matasse (postando de novo texto de março de 2007).
E viva o carnaval!

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O assunto da aula era o carnaval. A disciplina, Cultura Brasileira. A turma debatia sobre os efeitos benéficos e perniciosos da grande festa popular nacional na sociedade. Eu me lembrei daquele sambinha meio bossa do Tom e pensei quase sem querer numa paródia evangélica para a canção. Ficaria assim:

A felicidade do crente parece
A grande ilusão dominical
A gente trabalha a semana inteira
Por um momento de sonho
Pra viver a fantasia
De pastor, diácono ou obreira
E tudo se acabar segunda-feira


Olha só o próprio Tom cantando com a Banda Nova (voz de Danilo Caymmi) em Montreal, 1986 (obviamente a versão original, e não a minha):

A felicidade

Tristeza não tem fim
Felicidade sim...

A felicidade é como a pluma
Que o vento vai levando pelo ar
Voa tão leve
Mas tem a vida breve
Precisa que haja vento sem parar

A felicidade do pobre parece
A grande ilusão do carnaval
A gente trabalha o ano inteiro
Por um momento de sonho
Pra fazer a fantasia
De rei, ou de pirata, ou jardineira
E tudo se acabar na quarta-feira

Tristeza não tem fim
Felicidade sim...

A felicidade é como a gota
De orvalho numa pétala de flor
Brilha tranquila
Depois de leve oscila
E cai como uma lágrima de amor

A minha felicidade está sonhando
Nos olhos de minha namorada
É como esta noite
Passando, passando
Em busca da madrugada
Falem baixo por favor...

Pra que ela acorde alegre como o dia
Oferecendo beijos de amor

Tristeza não tem fimFelicidade sim...

19 de fevereiro de 2009

Vacas sagradas

"Desde que o rio cavou seu leito, é muito difícil mudar seu curso."

"A satisfação é o maior inimigo da transformação."

"Vacas sagradas obstruem o caminho do cordeiro."


Wolfgang Simson,
em "Casas que transformam o mundo"

16 de fevereiro de 2009

Aquecido e seguro

Sei que é muito mais cult citar filósofos e pregadores famosos. Tilich, Dostoievsky, Lewis ou Chesterton. E há, sem dúvida, muito o que citar deles. Mas um dos filósofos que mais admiro é Watteron. Sim, o Bill, o criador de Calvin e Haroldo.





12 de fevereiro de 2009

O monstro

É estranho, mas foi assim.

Quando o céu caiu sobre nossas cabeças, nos sobreveio inesperada bonança. Um instante depois do caos, quando muitos ainda sofriam, quando ainda faltava água e comida e ainda havia muitos incomunicáveis e desaparecidos, paradoxalmente, o trânsito aquietou e sobreveio sobre motoristas antes ensandecidos, buzinadores, impacientes e deselegantes, a mais suave e cerimoniosa parcimônia. Os desmoronamentos haviam rompido dezenas de cabos e derrubado um bocado de postes, além de inúmeras pontes destruidas e ruas interrompidas. Metade da cidade estava sem luz e por cerca de 10 dias nenhum semáforo funcionou. Era de se esperar o caos, mas os motoristas deslocavam-se respeitosamente, reduzindo em cada cruzamento, embalando a não mais que 50 km/h nas vias rápidas. E o fluxo de veículos escoava como leito de rio em planície, calmo e constante, agradável e suficiente. Ninguém corria e ninguém se atrasava. Todos preocupavam-se uns com os outros e davam passagem, sorriam e acenavam. Carros novos com motores possantes e equipados com a mais alta e incompreensível tecnologia (que faria enlouquecer o melhor mecânico de dez anos atrás) comportavam-se como seus pesados e antiquados avós nas ruelas dos anos 50. Motoristas tensos, estressados, impacientes, grosseiros e/ou irresponsáveis transfiguraram-se em senhores de respeito, em gentis senhoras e em plácidos jovens polidos e honrados. E assim foi, por uma ou duas semanas.

Até que ouvi os primeiros rumores de que, na região norte, semáforos começavam a ser religados. Gradativamente, moradores das Itoupavas começaram a chegar atrasados e mal-humorados em seus compromissos. Cada dia em uma nova região semáforos voltavam a funcionar. As luzes, como estalar de dedos do hipnotizador, despertavam motoristas da sonolência respeitosa, fazendo pedestres atravessarem as ruas correndo entre veículos apressados.

Alguns dias depois amanheci ao som de buzinas. Na descida do morro, em direção à rua principal, já intuía o ocorrido. Seria inevitável. A luz voltou. É o fim da bonança. O monstro chegou ao sul, abocanhou a cidade toda. Antes afugentado pelo tremores dos morros, pelas avalanches e enxurradas, ressurgia, vindo do norte, com suas luzes vermelhas, amarelas e verdes despertando os mais profundos rancores humanos despejados todos no ar por escapamentos e palavrões. Trânsito é seu nome. Alimenta-se de pressa, embebeda-se em ugências e compromissos, e degusta sorridente o sangue recolhido do asfalto. Voltamos à correria.

Estranho, mas foi assim.

5 de fevereiro de 2009

O tempo

Crônica Kaiowá

Quando cruzamos os limites da aldeia, superamos apenas o primeiro, e certamente o mais simples, dos obstáculos que teríamos que superar. Um muro enorme e absolutamente intransponível, no curto período de que dispúnhamos, mantinha-se rijo e imponente em nosso caminho. Não um muro simples e plano, mas uma intrincada parede infestada de relevos e formas estranhas como um labirinto vertical.

Abandonamos a neurose de produção, a loucura dos prazos e a enebriante ansiedade dos resultados e nos espatifamos em uma parede que erguia-se como largo muro de arrimo a conter todo o peso da insanidade que construímos.

Do lado de lá, dentro da aldeia, onde imagens de pobreza, sofrimento, miséria e sujeira nos queimavam a retina, onde álcool, violência e drogas corroíam famílias como ferrugem, destruíam um povo como câncer, onde o forte oprimia cruelmente o fraco devorando-o vivo como gafanhoto, descortinava-se também um inimaginável outro mundo. Um mundo onde é permitido a todos e a qualquer um, em qualquer momento, sentar à sombra de uma mangueira, com uma cuia de mate na mão, e conversar. Onde cada frase é precedida de longos momentos de respeitoso silêncio e contemplação, e os compromissos não são como pesadas cargas lançadas sobre o lombo de infelizes prisioneiros do tempo, do relógio, de incontáveis responsabilidades. Não, daquele lado do muro o tempo é outro, marcado tão somente pela aurora e pelo entardecer. E os compromissos são subordinados ao momento. Lá, o que se vive tem maior valor do que o que se irá viver. O hoje tem maior valor que o amanhã. ‘A cada dia basta seu próprio mal’, é a batida do coração kaiowá. Batida semelhante à do mestre – ‘não andem ansiosos com o dia de amanhã’.

Quando olhei no relógio e disse à Kuerai E’pa que precisava ir; quando deixei-o com sua cuia à sombra da mangueira e parti rumo ao meu compromisso; quando olhei para trás e o vi já pequeno, sentado na mesma posição, sozinho, sorvendo o mate e olhando o céu; quando percebi que ele permaneceria ali, desfrutando o instante, contemplando a criação de Nhandejara, só então percebi como deveria parecer-lhe estranho. Naquele instante me vi a partir de seus olhos e considerei-me louco. Então, enquanto caminhava apressado, ouvi uma voz suave sussurrando em mim: olhe os pássaros, veja os lírios do campo, aprenda com Kuerai E’pa ao pé da mangueira. Ao som dessa voz quase inaudível olhei de novo para trás procurando-o, mas já o tinha perdido de vista. Voltei-me novamente adiante, fitando o relógio. Sabia que não poderia voltar atrás. Tinha um compromisso e estava atrasado. Precisava correr.

Kuerai e’pa. Paciência
Nhandejara. Deus




"...Estava certo
De que tudo o que eu dizia
Representava a verdade
Pra todo mundo que ouvia

Foi quando um velho
Levantou-se da cadeira
E saiu assoviando
Uma triste melodia..."

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Veja também:
Felicidade e sucesso
Nossa única esperança de redenção

A vaquinha e a mansão

2 de fevereiro de 2009

Inacabado

Penso que Deus deve ter sido um artista brincalhão para inventar coisas tão incríveis para se comer. Penso mais: que ele foi gracioso. Deu-nos as coisas incompletas, cruas. Deixou-nos o prazer de inventar a culinária.
Rubem Alves - A festa de Babete


Quando nos criou "à sua imagem e semelhança", Deus deu-nos essa incrível capacidade de inventar. E colocou diante de nós toda matéria prima. Fez como o pai que coloca diante de seu filho pequeno um arsenal de tintas, pincéis, tesouras, colas e papéis dos mais variados tipos e cores. Sei como é isso. Minha filha de 6 anos produz pinturas e colagens com voracidade e alegria desconcertantes. Basta colocar diante dela a matéria prima.

- Isso é seu filha. Pode pintar, recortar e colar.

E começa a produção. É delicioso acompanhar o prazer, a dedicação, o esforço daquela pequenina criatura em cada pequeno projeto. E cada obra pronta é um presentinho colocado com carinho em minhas mãos, acompanhado de um grande e cativante sorriso, como que devolvendo, de forma aprimorada, aprefeiçoada, refinada, o que lhe foi entregue, ciente de que era essa a vontade do pai. Não preciso lhe pedir nada. É reação natural dela trabalhar, produzir, transformar, criar e desfrutar de cada instante, para depois presentear a quem tudo lhe deu, de graça, sem lhe pedir nada em troca.

- Pra você, papai - e recebo meu papelzinho todo enfeitado e colorido.

Quando crescer, quero ser como minha filha. Desfrutar com alegria do que meu pai me dá, transformar e aprimorar o que me chegue às mãos, da melhor forma que puder, simplesmente para poder entregar-lhe tudo de novo como presente, com um coração imensamente grato por ter recebido dele, de mãos beijadas, tudo o que precisava para viver.