30 de março de 2009

O estrago que a gente fez

Que estrago a gente fez. Quando associamos Jesus à nossa imagem (ao invés de caminharmos na direção da imagem dele), encerramos inúmeras possibilidades de diálogo. Podemos citar o Dalai-Lama, Maomé, Gandhi ou Buda sem indentificar-nos com religião alguma nem assustar ninguém. As citações são tomadas simplesmente como apontamentos de idéias de terceiros - grandes terceiros, diga-se de passagem; terceiros dignos de respeito. Com o Cristo é diferente. Ao citá-lo injetamos uma dose de desconfiança no leitor - será o cara um crente? Imediatamente pululam na mente fértil do que lê, imagens de padres pedófilos, pastores estelionatários, fogueiras, guerras e preconceito. E ele têm razão.

Às vezes penso que o melhor que poderíamos fazer é propor um Jesus não Cristo. Um homem, tão somente. Um profeta como Gandhi. Abriríamos portas cerradas e poderíamos mostrar a mensagem do galileu - o que ele disse, o que propôs como caminho, como solução existencial ao ser-humano. Encerraríamos a possibilidade do milagre, a pré-existência, o retorno entre nuvens e nos concetraríamos no sermão do monte e nas parábolas. Falaríamos sobre isso nos bares, nas praças, nos pontos de ônibus. Deixaríamos a palavra entrar e descansar em nós. Dormir no nosso peito até que nascesse, brotasse, remodelasse nossos conceitos. Que nos enchesse de esperança. Sim! Vale a pena, diríamos. E deixaríamos nossos sofás confortáveis, abandonaríamos os bancos gelados das igrejas e nos lançaríamos às ruas, aos asilos, aos orfanatos, às favelas, aos becos escuros, como lâmpadas, como luz.

Antes que se apavorem alguns, esclareço que creio no Cristo. Aceito com facilidade e embevecido o fato de que quando houve a grande explosão, foi Jesus quem acendeu o pavio. Que foi ele quem conduziu aquela pequena molécula na lenta e milagrosa jornada da água ao solo e dali aos ares. Quase consigo vê-lo, com um sorriso matreiro, observando as últimas transformações que levaram aquele ser primitivo à sua própria imagem e semelhança. E sinto em minhas narinas o sopro que inflou o peito do primata quando enfim estava pronto para iniciar sua jornada de conhecimento do bem e do mal - e todas as suas incríveis consequências. Creio também que desde que acendeu o paviu ele já conhecia a cruz. E creio na ressurreição. E aguardo ansioso o dia que vou encontrá-lo habitando uma nova terra.

No entanto, às vezes, desconfio que sem toda essa crença embutida no pacote da mensagem, ela poderia ser pregada e ouvida sem o preconceito que carrega por conta da desastrosa assimilação entre ela e nós. E, sendo ouvida sem preconceitos, algum efeito haveria de produzir. Como produziu em Gandhi.

- Oh! Eu não rejeito seu Cristo. Eu amo seu Cristo.
Apenas creio que muitos de vocês cristãos são bem diferentes do vosso Cristo.
Gandhi, em resposta a Stanley Jones quando lhe indagou por quê, apesar de citar tanto as palavras de Jesus, recusava-se a tornar-se cristão.

Não sei. Sinceramente, não sei.

26 de março de 2009

Sobre mosquitos e camelos

Texto distribuído pela Secretaria Nacional da Comissão Pastoral da Terra:


“Ai dos que coam mosquitos e engolem camelos” (MT 23,24)

A Coordenação Nacional da CPT diante das manifestações do presidente do STF, Gilmar Mendes, vem a público se manifestar.

No dia 25 de fevereiro, à raiz da morte de quatro seguranças armados de fazendas no Pernambuco e de ocupações de terras no Pontal do Paranapanema, o ministro acusou os movimentos de praticarem ações ilegais e criticou o poder executivo de cometer ato ilícito por repassar recursos públicos para quem, segundo ele, pratica ações ilegais. Cobrou do Ministério Público investigação sobre tais repasses.

No dia 4 de março, voltou à carga discordando do procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, para quem o repasse de dinheiro público a entidades que “invadem” propriedades públicas ou privadas, como o MST, não deve ser classificado automaticamente como crime.O ministro, então, anunciou a decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do qual ele mesmo é presidente, de recomendar aos tribunais de todo o país que seja dada prioridade a ações sobre conflitos fundiários.

Esta medida de dar prioridade aos conflitos agrários era mais do que necessária. Quem sabe com ela aconteça o julgamento das apelações dos responsáveis pelo massacre de Eldorado de Carajás, (PA), sucedido em 1996; tenha um desfecho o processo do massacre de Corumbiara, (RO), (1995); seja por fim julgada a chacina dos fiscais do Ministério do Trabalho, em Unaí, MG (2004); seja também julgado o massacre de sem terras, em Felisburgo (MG) 2004; o mesmo acontecendo com o arrastado julgamento do assassinato de Irmã Dorothy Stang, em Anapu (PA) no ano de2005, e cuja federalização foi negada pelo STJ, em 2005.

Quem sabe com esta medida possam ser analisados os mais de mil e quinhentos casos de assassinato de trabalhadores do campo. A CPT, com efeito, registrou de 1985 a 2007, 1.117 ocorrências de conflitos com a morte de 1.493 trabalhadores. (Em 2008, ainda dados parciais, são 23 os assassinatos). Destas 1.117 ocorrências, só 85 foram julgadas até hoje, tendo sido condenados 71 executores dos crimes e absolvidos 49 e condenados somente 19 mandantes, dos quais nenhum se encontra preso. Ou aguardam julgamento das apelações em liberdade, ou fugiram da prisão, muitas vezes pela porta da frente, ou morreram.

Causa estranheza, porém, o fato desta medida estar sendo tomada neste momento. A prioridade pedida pelo CNJ será para o conjunto dos conflitos fundiários ou para levantar as ações dos sem terra a fim de incriminá-los? Pelo que se pode deduzir da fala do presidente do STF, “faltam só dois anos para o fim do governo Lula”... e não se pode esperar, “pois estamos falando de mortes” nos parece ser a segunda alternativa, pois conflitos fundiários, seguidos de mortes, são constantes. Alguém já viu, por acaso, este presidente do Supremo se levantar contra a violência que se abate sobre os trabalhadores do campo, ou denunciar a grilagem de terras públicas, ou cobrar medidas contra os fazendeiros que exploram mão-de-obra escrava?

Ao contrário, o ministro vem se mostrando insistentemente zeloso em cobrar do governo as migalhas repassadas aos movimentos que hoje abastecem dezenas de cidades brasileiras com os produtos dos seus assentamentos, que conseguiram, com sua produção, elevar a renda de diversos municípios, além de suprirem o poder público em ações de educação, de assistência técnica, e em ações comunitárias. O ministro não faz a mesma cobrança em relação ao repasse de vultosos recursos ao agronegócio e às suas entidades de classe.

Pelas intervenções do ministro se deduz que ele vê na organização dos trabalhadores sem terra, sobretudo no MST, uma ameaça constante aos direitos constitucionais.

O ministro Gilmar Mendes não esconde sua parcialidade e de que lado está. Como grande proprietário de terra no Mato Grosso ele é um representante das elites brasileiras, ciosas dos seus privilégios. Para ele e para elas os que valem, são os que impulsionam o “progresso”, embora ao preço do desvio de recursos, da grilagem de terras, da destruição do meio-ambiente, e da exploração da mão de obra em condições análogas às de trabalho escravo.

Gilmar Mendes escancara aos olhos da Nação a realidade do poder judiciário que, com raras exceções, vem colocando o direito à propriedade da terra como um direito absoluto e relativiza a sua função social. O poder judiciário, na maioria das vezes leniente com a classe dominante é agílimo para atender suas demandas contra os pequenos e extremamente lento ou omisso em face das justas reivindicações destes. Exemplo disso foi a veloz libertação do banqueiro Daniel Dantas, também grande latifundiário no Pará, mesmo pesando sobre ele acusações muito sérias, inclusive de tentativa de corrupção.

O Evangelho é incisivo ao denunciar a hipocrisia reinante nas altas esferas do poder: “Ai de vocês, guias cegos, vocês coam um mosquito, mas engolem um camelo” (MT 23,23-24).

Que o Deus de Justiça ilumine nosso País e o livre de juízes como Gilmar Mendes!

Goiânia, 6 de março de 2009.

Dom Xavier Gilles de Maupeou d’Ableiges, Presidente da Comissão Pastoral da Terra

23 de março de 2009

Ideologia que mata

Numa sala apertada, com janelas pequenas e paredes de cal desbotadas, sentaram-se, desiludidos, índios e não-índios.

- É sempre muito triste - disse-me a Lucília na volta.

Ela tinha ido à cidade de Lábrea para a reunião do Distrito de Saúde Indígena (DISEI), da qual participavam a JOCUM e o CIMI, juntamente com órgãos públicos. Lucília sempre ora pela microcidade e por suas mazelas: corrupção, devassidão extrema, doenças, entre outras.
Os habitantes de Lábrea têm os rostos macilentos das muitas malárias e cachaças. Falam sem convicção, parecendo não saber o que dizem. Mas sabem; só não creem mais que algo possa mudar no caos de desserviços que o governo finge prestar àquele arremedo de cidade.

- Isto é o que mais me dói - me diz Lucília na volta. - Os índios baixam a cabeça como animais domesticados à custa de muita dor. O formato da reunião é excludente. Discute-se como em uma repartição pública, e os indígenas não acompanham.

A situação Suruwahá é debatida. Lucília imagina a dificuldade dos técnicos presos no posto distante de tudo. Parece que nem visitar a aldeia eles conseguem. O medo, a pouca educação, o salário menor ainda - os índios que se virem para chegar até o posto.
E assim foi. No dia 14 de janeiro Naru caminhou sete horas com Tititu nos braços, antes saudável, agora sem vida. A menina estava em péssimo estado e o técnico não sabia como tratá-la. Fez gestos e sons imitando um avião, para mostrar aos pais da menina que ela deveria ser retirada. A noite caiu, a menina piorou. De madrugada o corpinho esfriou e foi endurecendo aos poucos. A alma de Tititu foi para Jaxuwá, no reino onde as bananas são fartas e os peixes, grandes.

Tititu foi escolhida para morrer desde que nasceu. A ideologia que impede os Suruwahá de obter tratamento médico decente prevê que casos de deformidade congênita sejam “eliminados” no nascimento. O pai da menina recusa-se a matá-la ao ver a deformidade com que nasceu. Não conhece a ideologia, ainda se sente gente. Pede ajuda, e Lucília e Moisés conseguem retirá-la da aldeia. Com a oferta de muitos irmãos, ela vai a São Paulo para ser operada no Hospital das Clínicas. Mas a ideologia envia um procurador do Ministério Público, que proíbe a cirurgia. Os médicos ficam chocados com a proibição. A mídia divulga o caso e a pressão aumenta. O procurador desiste do impedimento e a menina é operada. Volta à aldeia, mas precisa de um medicamento mensal. Enquanto a JOCUM está presente, o remédio chega - agitamos meio mundo, vamos para a Funasa a cada atraso. Até que a ideologia nos impede de voltar à aldeia. Nas mãos da ideologia, os índios não têm chance. Para o CIMI, a Funai e a Funasa eles não são gente. São um construto, uma abstração antropológica, um número nos gráficos. A falta do medicamento na data precisa poderia causar a morte da menina Tititu; morte já prevista, escrita, desenhada e explicada academicamente na voz estridente da ideologia.

É a inexorável força darwiniana. Tristes, imaginamos o sofrimento de Naru, o pai, e de Kusiumã, a mãe, carregando a filha na mata escura para vê-la esfriar de repente ao som de um forró desafinado no barraco de madeira do posto da Funai.

Texto de Bráulia Ribeiro para Ultimato.
Via Teologia Livre.



Mais:
- acompanhe o blog ATINI, sobre crianças indígenas
- assista e divulgue o documentário Hakani, sobre infanticídio indígena
- conheça o site Hakani.org

Leia também:
O tempo
Ha'eve Irû

19 de março de 2009

Nunca foi

"A Ressurreição, digo a Alegria, não é anúncio glamuroso de Vitória, como bradam muitos vestidos de brilho; ela é o sussurro sutil avisando que não é preciso vencer, nunca foi!"

De Rondinelly, citado por Gondim.

12 de março de 2009

Reticências

Isso havia sido escreito e postado aqui em 3 vezes (sem juros) ano passado. Estou postando de novo, agora o texto completo de uma só vez. Desculpem a repetição, mas me será útil.

1. Morte


Desde pequeno aprendi a ler a bíblia como um livro de conceitos. De cada frase, versículo ou capítulo eu deveria extrair um profunda lição capaz de remodelar minha vida ou, pelo menos, meu dia. Ouvia diversas vezes a bem intencionada alegoria que dizia que esse livro santo era o ‘manual do fabricante’. Qualquer espécie de enguiço poderia ser resolvida em uma simples consulta ao manual. Algumas bíblias traziam inclusive um índice de busca rápida. Angustiado? Salmo 46. Deprimido? Romanos 8:31-39. Sem dinheiro? Salmo 37. Era (ou deveria ser) uma leitura conceitual, racional, correta, objetiva, acertada. Não me espanta o histórico de frustração das minhas inúmeras tentativas de penetrar os insondáveis segredos escondidos entre as palavras desse manual complexo e impenetrável.

Carregado suavemente por diversos sopros de diversas fontes, aos poucos fui tomando conhecimento de uma outra bíblia. Aquele pesado compêndio acadêmico de capa preta e palavras de chumbo precipitou-se do pedestal para o solo fértil do mundo dos sonhos e, ao tocá-lo, foi tragado para suas entranhas com a mesma comoção de um náufrago que encontra água doce depois de dias à deriva em alto mar.

Descobri a imprecisão, as subjetividades, as divergências e as inúmeras variações de texto nos milhares de fragmentos de manuscritos* encontrados por todos os cantos do mundo e preservados e reunidos com esforços dignos de muita honra. A intolerante ‘inerrância’ que brotava convicta das entranhas da minha origem religiosa despetalou-se como uma frágil for do campo.

E brotou diante de mim a narrativa.


2. Vida

De forma inesperada e redentora, aquele pesado livro de capa preta ressurgiu do pó da terra leve e alado. Multicolorido, passou a borboletear diante de meu olhos e, para pegá-lo, tive que correr, pular, rolar, cair e levantar. Refletindo todas as cores do arco-íris, o livro agora fluído e impreciso, causou-me alumbramento.

É engraçado como se aceita que Deus, quando encarnado, revele a verdade através de metáforas, parábolas e alegorias. Bodas do cordeiro, virgens, ovelhas e bodes são permitidos ao Deus homem. Antes de sua manifestação em carne e osso, porém, lhe é proibido usar esse tipo de linguagem. Gênesis precisa ser literal. A torre de Babel também. E a arca de Noé. E o grande peixe de Jonas. A simples menção da possibilidade da metáfora abala os alicerces da fé da maioria dos cristãos que conheço.

Abandonei a limitada sala escura da objetividade e, como Alice, conheci o país das maravilhas; como Dorothy, fui levado por um redemoinho ao maravilhoso mundo de Oz.

Alguns podem apavorar-se com descrição tão festiva e fantasiosa do livro sagrado. Esses crêem que transformar esse manual em um livro de histórias fantásticas é depreciá-lo, reduzi-lo, limitá-lo. Engano terrível. Nenhum conceito pode ser maior que a narrativa. Nenhuma conclusão pode ser maior que a história em si.

As considerações finais são a clausura da história.


3. À luz de um abajur

Uma das muitas aplicações sobre a inusitada afirmação de Jesus de que o Reino de Deus é das criancinhas, está na forma como elas lidam com a narrativa. Abra um livro, sob a luz amarela de um abajur, do lado de um menino de 5 anos, no silêncio de seu quarto, entre brinquedos e bonecos, com a sombra da noite e seus ruídos estranhos entrando pelas frestas da veneziana, e comece a ler uma história. O pequenino e frágil menino pode tornar-se herói, gigante, mago, rei ou monstro. Ele se assusta, ri, arregala os olhos, observa calado, agarra seu braço com força ou reclina-se sobre seu peito com o sorriso meigo de um anjo.

Ao libertar-me das letras de chumbo do livro preto, pude iniciar minha jornada à infância. Não é fácil. Não é natural ou intuitivo para quem abandonou há anos a beleza da imaginação e entregou-se ao mundo cinza da objetividade. Mas é uma viagem que vale a pena. É um esforço compensador. Sentir a brisa morna dos montes da palestina ou os ventos terríveis e gelados das tempestades no mar da galiléia. Sentar entorno da fogueira e inalar o cheiro do peixe e o ar denso no momento do confronto entre o mestre e o homem que o negou. Ver em seus olhos a graça e o perdão inesperados. Notar o peso dos ferros nos braços e pernas de Paulo, no canto úmido e fétido de uma prisão romana. E dançar em festas de casamento.

Penetrar na história nos faz entender que as letras são carregadas de emoções, embotadas em suor e lágrimas, embaladas em músicas e danças. Que há no ar tensão, medo, angústia, sarcasmo, dúvida, alegria, receio, esperança, desalento, êxtase, cansaço e renovo. Que os corpos da história se tocam, exalam odores, impregnam-se de pó, abraçam-se, trocam carinhos, afetos, provocações, empurrões, desavenças, olhares de ódio, inveja e perdão.

A narrativa é inconclusa, como é a humanidade. É cheia de variáveis, de caminhos, de circunstâncias, de nuances e possibilidades. Ela liberta a bíblia da clausura das considerações finais e a eleva à altura do fantástico, que extrapola tempo, espaço, cultura, lei, tradição e mito.

A leitura conceitual da bíblia é conclusiva. É a busca pelo ponto final.
A leitura narrativa é incerta. É o encontro com as reticências. Experimente...


  • * Existem cerca de 200.000 variantes no texto em um enorme volume de manuscritos referentes a 10.000 passagens ou palavras na Bíblia. Há diversos erros não-intencionais que resultam de problemas de cópia. Em alguns lugares falta uma letra, em outros se pula uma linha inteira ou troca-se letras parecidas (exemplos em Geisler & Nix 1997, 173). Às vezes, o escriba incluía as notas ou comentários nas margens como partes do texto. Em alguns casos não sabemos se havia intenção de mudar o texto ou não (1 Jo 5:7) (Geisler & Nix 1997, 172-74). Existem também variações intencionais para conformar o texto a uma escola de escribas, padronizar a utilização no culto ou eliminar diferenças doutrinárias introduzidas (1 Jo 5:7; Mc 16:9-20). Essas diferenças entre manuscritos não é coisa recente. Orígenes já se referia às grandes diferenças entre os manuscritos a ponto de dizer que talvez todos os textos da época haviam sido corrompidos (Metzger 1992, 152). (FONTE: Introdução à hermenêutica para Pós Graduação em Teologia Prática da Faculdade Fidelis. De Arthur W. Dück).

9 de março de 2009

Misterioso fundão

Sentado na areia observo meus filhos brincando. A praia, para eles, é lugar de mistério, fantasias espetaculares e emoções intensas. Pulando sobre ondas eles enfrentam monstros, gigantes e dragões. Cruzam oceanos sobre suas pequenas pranchas, vencendo piratas e lutando com tubarões. Castelos de areia são fortalezas intransponíveis. Muralhas erguem-se sobre eles e legiões de soldados atacam impiedosamente seus domínios como ondas. E, se as paredes são destruídas, eles mesmos se lançam sobre os vagalhões com coragem, distribuindo golpes, saltos, gritos e poses. E saem vitoriosos. Vivi cada uma dessas aventuras um dia. E sei que nada no infinito horizonte de qualquer que seja o litoral se compara à ousadia insana de desvendar, nos braços do pai, os insondáveis mistérios do "fundão".

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Lembro-me de transpor ondas gigantescas sob o impacto violento da água. Da assustadora espuma branca, da força da corrente, do repucho traiçoeiro. A inóspita e apavorante arrebentação poderia ceifar a vida de Titãs. Por isso eu sabia que, mais do que tudo, teria que agarrar-me com todas as forças ao corpo daquele jovem herói. Ele vencia as ondas por mim. Dominava-as, feria suas cristas com o corpo esguio, sem recuar. Convicto, poderoso como Hércules, me agarrava e comprimia forte e carinhosamente em seu peito. De repente, a calmaria. Mar escuro, horizonte eterno, brisa. Ele podia agora me soltar, me jogar para cima, me ver nadando de volta. Eu estava, com ele, onde nenhuma outra criança poderia estar. Nos braços de meu pai eu havia vencido o mais impiedoso inimigo e encontrava-me agora no enigmático "fundão".

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Quando meus filhos saem das ondas correndo em minha direção, olhos fixos em mim, expectativa estampada no rosto, sei o que me espera. Conheço todas as suas emoções e sei que eles nada sabem sobre as minhas. Nem desconfiam que as gotas salgadas que escorrem dos meus olhos enquanto corto as ondas, com eles em meus braços, na direção mística do "fundão", não são água do mar.



Para meu pai
por ter me levado tantaz vezes pra lá da arrebentação.

5 de março de 2009

Cristo, meu camarada

"[...] uma fundamentação objetiva para continuar camarada de Cristo."
"[as leituas de Marx] não me sugeriram jamais que eu deixasse de encontrar Cristo nas esquinas das próprias favelas."



Entrevista completa:
Parte 1
Parte 2

2 de março de 2009

Sepultamento



Inadvertidamente, noites atrás, uma estrela despencou do céu diretamente sobre mim. Dessas que cruzam o firmamento como bolas de fogo. Tecnicamente não são estrelas, sei disso. Mas o fato é, segundo soube, que essa bendita foi lançada no espaço no exato instante da grande explosão que originou todas as coisas. Ou, para os mais poéticos, diretamente das mãos de Deus no quarto dia.

E singrou o espaço todo, cruzou constelações, conheceu as fronteiras do universo. Foi adorada como Deus e temida como diabo em insólitas civilizações de planetas remotos. E seguiu sua viagem intrépida, inalterada, decidida e confiante, através do espaço e do tempo, e das eras, até perceber-se em rota de colisão com este minúsculo planeta azul.

Estremeceu diante da possibilidade do choque, mas não alterou em nada o curso e entrou em nossa atmosfera, incandescente, rasgando o céu em cruel e doloroso atrito com o rugoso ar que abraça nosso planeta.

Eu caminhava tranquilo por uma viela, mãos no bolso, olhando para o chão, alheio ao efêmero e sutil espetáculo do firmamento quando, por alguns segundos, a tal estrela brilhou fascinante naquela noite escura e, como que em um último suspiro, realizou centenas de desejos de casais de namorados, crianças e caboclos (que são os únicos que ainda olham o céu e ainda falam com estrelas) antes de desfazer-se quase por completo e atingir-me o olho como um cisco.

Pisquei incomodado e sepultei a estrela com a lágrima que me limpou o olho.