31 de agosto de 2009

Um próximo passo

Depois de mais de 3 décadas, muito esforço, dedicação, envolvimento, alegrias e sofrimentos, deixei de lado a 'igreja formal'. É possível, apesar de pouco provável, que alguns dos leitores desse blog sejam membros da mesma igreja da qual eu participava. A esses, se existirem, um abraço apertado. Não nos veremos mais nos domingos nem nos demais encontros promovidos pela instituição (salvo, talvez, como visitante em alguma situação), mas espero ainda encontrá-los aqui e ali, e poder abraçá-los cheio de saudades.

A história da despedida foi, pelo menos para mim, mais suave do que poderia imaginar. As conversas com os pastores e os emails desconfiados geraram, como seria inevitável, certa tensão e desconforto. Mas o tempo foi soprando o nevoeiro e, aos poucos, o ambiente foi ficando iluminado. Tornou-se claro, e aqui falo unicamente por mim, que os caminhos não eram mais os mesmos e não nos permitiam mais seguir lado a lado.

Minha cabeça e coração já estavam muito distantes do modelo formal, repleto de cuidados, de excesso de zelo pelo desejo de manter o povo unido e as engrenajens funcionando - e são tantas engrenagens, tantos ministérios, reuniões, assembléias, planos, projetos, números e gráficos. Tudo bem intencionado, creio, mas com o propósito claro de crescer, aparecer e permanecer. E eu já venho há muito sonhando com o diminuir, dispersar, desaparecer e sumir.

Sei que para muitos isso parece exagero (afinal, a 'igreja' que abandonei não é nem de longe adepta das loucuras do mundo gospel, nem da manipulação descarada e bandida de malafaias e terranovas que querem mesmo é enriquecer às custas da cegueira da multidão, tangida de um lado para outro como gado em pasto seco). Mas não creio que seja. Um pouquinho só de fermento leveda a massa toda.

O chamado que um dia aceitei seguir porque me atingiu em cheio o coração e encheu-me de alumbramento, é o chamado para sumir. O que ecoa no meu peito são as palavras de dispersão. Vão - disse o mestre - sejam sal, sejam luz, sempre indo, caminhando, espalhando, dispersando, sumindo na multidão. Sal se dissolve e some. Dá gosto mas, depois que é espalhado, ninguém mais sabe onde está. Sumiu, mas salgou. Luz não se pega, não se toca, ninguém sabe descrever sua aparência. Sabemos que há luz porque tudo se torna visível - mas não sabemos onde ela está, não podemos tocá-la, descrevê-la.

Não. Não desprezo o ajuntamento nem a comunhão. Mas eles não tem nenhum valor se não forem frutos do desejo intenso do reencontro amoroso dos dispersos cheios de saudade. Um reencontro banhado na expectativa de compartilhar histórias boas e ruins da dispersão e, assim, de modo simples, livre e natural, aprender e crescer na fé. Mas são breves paradas, como a cervejinha no boteco, e não como a agenda profissional de um homem de negócios.

Como aquilo que enche meu coração vaza pela boca, nos últimos tempos passei realmente a ser, e continuo aqui falando unicamente por mim, um incômodo para o grupo. Sempre 'do contra', muito disperso, pouco participativo, pouco engajado. Estava dando um baita mau exemplo. 'Cuidado com o Tuco', é o que diziam aqui e ali, cheios de zelo e cuidado. O engraçado é que minguém se interessou pelo que eu fazia fora da igreja - isso parece não ter a menor importância. Então, para não ficar nessa lenga-lenga, causando indisposição e perturbando gente boa e bem intencionada, achei melhor me afastar. E com isso, creio, me libertei e libertei quem ficou. Cada um livre para seguir sua jornada da maneira como lhe brota no coração.

Atualmente engrosso a fileira das estatísticas dos 'sem igreja'. Obviamente sei que não é possível estar com Jesus e ser um 'sem igreja' a menos que se defina igreja como uma coisa palpável e descritível. Para ser 'sem igreja' precisaria crer que posso possuir uma, ou pertencer a uma. O discípulo de Jesus (e como eu quero ser um!) quando se encontra com mais um ou dois, é igreja. O verbo adequado é ser, não ter ou estar.

Assim, aos amigos cristãos membros de uma igreja formal, talvez até aquela da qual fui membro até mês passado, que porventura estejam preocupados comigo, relaxem. Continuo buscando proximidade com o Pai e sendo igreja dEle, galhinho verde vibrando viçoso no ramo da videira. Continuo na trilha que só Deus sabe onde vai dar.

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O curioso é que um mês depois de não mais ter meu nome inscrito no rol de membros de uma instituição evangélica, li o curioso livrinho "Porque você não quer mais ir à igreja". Foi um consolo e um incentivo. Se você leu esse post enorme até aqui e ainda não se convenceu ou não entendeu nada que eu disse, mas continua curioso e com uma pulga atrás da orelha, leia o livro.

27 de agosto de 2009

Jornada

Os cinco amigos iniciaram a jornada pouco antes do nascer do sol.

Seguiam mais por responsabilidade do que por convicção, mais por algum estranho sentimento de dever do que por vontade. Na verdade, as inúmeras e impensáveis possibilidade de fracasso fariam qualquer um abandonar a idéia, virar para o lado e continuar dormindo. A não ser que latejasse dentro de si o impulso insano da necessidade.

Era isso que lhes havia feito sair da cama naquela manhã gelada. Enquanto caminhavam em silêncio reverente diante do assombro das possibilidades, viam ao longe os dragões empoleirados no alto dos pináculos de pedra que ladeavam a trilha sinuosa que os levaria, quase que certamente, à morte.

Não podiam, no entanto, recuar. Eram agora já atraídos para o alto das montanhas como que por improvável ímã que lhes sugava a alma de bronze, alma de nobres que sabem que seu destino é o martírio.

Nutriam, ainda assim, esperança de seguir com vida e de que sua jornada chegasse como notícia alvissareira à toda vila. Esperança de que as profecias se referissem a eles e estivessem certas. Esperança louca e improvável de que os dragões seriam vencidos a golpes de faca e que a trilha coberta de cinzas e ossos tornaria-se viçoso abrigo de pássaros e esquilos. E que a vila toda poderia enfim cruzar as montanhas, abandonando a fome e o frio do vale úmido e conhecer os campos verdes do outro lado.

24 de agosto de 2009

Desapego [5]

Esterco

Quando tudo parece estar finalmente andando, quando o povo de Israel está zonzo com a espiral vertiginosa de sucesso, o birrento criador aparece para destruir o templo e o reino. E não se contenta em fazê-lo apenas uma vez. O templo e o reino de Israel são lançados à poeira 2 vezes. Antes da segunda ruína o Filho do Homem ainda dá o recado: "disso não vai restar pedra sobre pedra". E vai o templo para o chão de novo e, com ele, a esperança do reino.

Deus não tem compromisso com o templo, nem com a permanência, ou com a construção de algo que dure para sempre, que possa ser visto pelas próximas gerações como 'algo que nós construímos'. Essas coisas nos seguram e prendem. Atam nossas mãos.

Então Paulo aparece e, com sua já conhecida falta de cuidado e polimento político (afinal de contas na carta ao gálatas, que já circulava por aí quando escreveu aos filipenses, já havia expressado sua intenção de capar os judaizantes), decreta, referindo-se a todo seu passado de dedicação carola à religiosidade: 'considero tudo esterco'.

Eu já fiz. Já aconteci. Já construí. Já participei. Já servi. Mas tudo isso já não tem mais valor nenhum. Precisa ser jogado fora na esperança de que pelo menos sirva de adubo. O meu negócio, sustenta Paulo, é com o alvo. Com os próximos passos. Não há rancor, nem mágoa, nem desprezo, nem altivez, nem prepotência com o que ficou pra trás. Simplesmente passou. Simplesmente há novos passos a dar. O que importa é Cristo e ser encontrado nele. E quem sabe até, de alguma forma misteriosa, inexplicável e graciosa, alcançar a redenção.

"Esquecendo-me das coisas que ficaram pra trás e avançando para as que estão adiante..."
Filipenses 3 (leia o capítulo inteiro).


Desapego:
1. Liberdade e cruz
2. Rastros
3. Nuvem
4. Teimosia
5. Esterco




Encontros e despedidas
M. Nascimento e F. Brant

Mande notícias do mundo de lá
Diz quem fica
Me dê um abraço, venha me apertar
Tô chegando
Coisa que gosto é poder partir
Sem ter planos
Melhor ainda é poder voltar
Quando quero

Todos os dias é um vai-e-vem
A vida se repete na estação
Tem gente que chega pra ficar
Tem gente que vai pra nunca mais
Tem gente que vem e quer voltar
Tem gente que vai e quer ficar
Tem gente que veio só olhar
Tem gente a sorrir e a chorar
E assim, chegar e partir

São só dois lados
Da mesma viagem
O trem que chega
É o mesmo trem da partida
A hora do encontro
É também de despedida
A plataforma dessa estação
É a vida desse meu lugar
É a vida desse meu lugar
É a vida

20 de agosto de 2009

A força do vento

“Nenhum homem sabe quão mau ele é, até que ele tenha tentado de toda maneira ser bom. Uma idéia tola, mas muito atual é que as pessoas boas não conhecem o significado ou não passam por tentações. Isto é uma mentira óbvia. Só aqueles que tentam resistir a tentação, sabem quão forte ela é. Afinal de contas, você descobre a força do exército inimigo lutando contra ele, não cedendo a ele. Você descobre a força de um vento, tentando caminhar contra ele, não se deitando ao chão. Um homem que cede ante a tentação depois de cinco minutos, simplesmente não sabe o que teria acontecido se tivesse esperado uma hora. Esta é a razão pela qual as pessoas ruins, de certa forma, sabem muito pouco sobre sua maldade. Elas viveram uma vida abrigada por estarem sempre cedendo. Nós nunca descobrimos a força do impulso mal dentro de nós, até que nós tentamos lutar contra ele: e Cristo, porque Ele foi o único homem que nunca se rendeu a tentação, também é o único homem que conhece completamente o que tentação significa – o único realista no total sentido da palavra”.

C. S. Lewis
Surrupiado da Pedra de Ajuda do Ebenézer.

17 de agosto de 2009

Desapego [4]

Teimosia

Mas a narrativa prossegue. A metáfora do interlúdio se encerra e voltamos à história. O povo finalmente entra na terra santa mas Deus, novamente, como um menino teimoso, insiste em não constuir nada, Nada de templo, nada de fortaleza, nada de 'castelo real', ou de rei. Rei e templo são a materialização do desejo de controle e segurança. Deus, no entanto, oferece juízes espalhados por aí, errantes, surgindo espontaneamente entre o povo.

Os israelitas, porém, conseguem vencer a insistência de Jeová. A criatura se mostra ainda mais teimosa que o criador. A visão de mundo do Eterno não é admissível ao povo. Liberdade pressupõe cruz e é fardo pesado demais para ser carregado. A opção é por segurança e esta pressupõe controle. Elegem um rei e constroem um templo.

Desapego:
1. Liberdade e cruz
2. Rastros
3. Nuvem
4. Teimosia
5. Esterco

13 de agosto de 2009

Psiquiatras e profetas

Jamais teremos entre nós profetas de verdade. Se existiu algum no último século, foi parar a força num sanatório ou voluntariamente no divã de algum psiquiatra. Os poucos que talvez restem por aí, são os que não tem família para interná-los, nem dinheiro para o psiquiatra e, portanto, encontram-se nas ruas, maltrapilhos e malcheirosos, segurando uma garrafa de cachaça barata na mão.



"[...] Na maior parte do tempo, na história da civilização, os loucos andaram à solta, nas ruas e nas casas, promovendo a idéia subversiva de que a loucura pode ser uma forma de lucidez ou uma estranha alternativa à ela. O que a psicoterapia fez? Por um lado, confinou os loucos em recintos isolados, onde não podem encenar a sua subversão. Por outro, o que acontece àqueles dentro da massa coletiva que sentem-se hoje mais sutilmente desviados da norma? Esses buscam voluntariamente a intervenção de terapeutas, de modo a serem capazes de se conformar. Ou seja: os loucos são mantidos fora de cena e os candidatos a loucos estão sendo constantemente monitorados. Os desvios à norma permanecem onde a multidão, que abomina a dissensão e anseia apenas por conformidade, pode controlá-los e anulá-los por completo."
Da Bacia das Almas



Veja também:
Foi-se um profeta
Jesus. O peripatético

10 de agosto de 2009

Desapego [3]

Nuvem

Então entra na história uma estranha espécie de interlúdio. Uma pausa no roteiro. Descreve-se, no enredo do Velho Testamento, logo depois da saída do Egito, uma pequena metáfora da humanidade. Um arquétipo da história toda, da estranha proposta de Deus para o ser humano.

O destino final do povo escolhido prossegue sendo a 'terra prometida' mas, por causa da dureza de seu coração (portanto, do pecado), toda essa gente passa a ter que viver vagando pelo deserto. Vivem errantes, em cabanas, tendas e a presença de Deus é representada pelo engenhoso templo também errante conhecido como Tabernáculo. Nada permaneçe. Tudo é provisório. Peripatético. É fogo de noite, nuvem de dia.

"Sempre que a nuvem se levantava de cima da Tenda, os israelitas partiam; no lugar em que a nuvem descia, ali acampavam. Conforme a ordem do Senhor os israelitas partiam, e conforme a ordem do Senhor, acampavam. Enquanto a nuvem estivesse por cima do tabernáculo, eles permaneciam acampados. Quando a nuvem ficava sobre o tabernáculo por muito tempo, os israelitas cumpriam suas responsabilidades para com o Senhor, e não partiam. Às vezes a nuvem ficava sobre o tabernáculo poucos dias; conforme a ordem do Senhor eles acampavam, e também conforme a ordem do Senhor, partiam. Outras vezes a nuvem permanecia somente desde o entardecer até o amanhecer, e quando se levantava pela manhã, eles partiam. De dia ou de noite, sempre que a nuvem se levantava, eles partiam. Quer a nuvem ficasse sobre o tabernáculo dois dias, quer um mês, quer mais tempo, os israelitas permaneciam no acampamento e não partiam; mas, quando ela se levantava, partiam. Conforme a ordem do Senhor acampavam, e conforme a ordem do Senhor partiam. Nesse meio tempo, cumpriam suas responsabilidades para com o Senhor, de acordo com as suas ordens, anunciadas por Moisés."
Números 9.15-23

Esse é o modelo de Deus para nós. O modelo da igreja. Não vivemos nós igualmente no deserto e pela dureza de nossos corações? E aqui, nesse penoso deserto, não caminhamos na esperança de alcançarmos a tão falada terra prometida (seja lá o que isso for)? As paradas, quando a nuvem estanca, quando o povo se senta, quando o tabernáculo é rapidamente armado, nada mais são do que um 'meio tempo'. Não são jamais o destino final de quem quer que queira seguir a nuvem. Porque a nuvem é errante, levada pelo vento. Deus, assim como seu Filho, prossegue a jornada ininterrupta e ninguém sabe o caminho nem quando (ou se) vai chegar lá.


Desapego:
1. Liberdade e cruz
2. Rastros
3. Nuvem
4. Teimosia
5. Esterco

6 de agosto de 2009

Exumação bíblica

No entanto, ainda mais decisivo na leitura evangélica da Bíblia não é a pretensão de encaixar nela nossas vidas, mas de tratá-la com o mesmo rigor cientificista dos tratados acadêmicos. Desejando para os argumentos da nossa fé a mesma reverência dada às ciências naturais, tratamos de conferir a tudo o que dizemos a correspondência rigorosa e fiel com uma pretensa verdade. Sendo assim fomos treinados a ler tudo literalmente. Ficamos sem a ginga poética. Um crente fundamentalista lendo a poesia tão presente na Bíblia é como um lutador de Sumô tentando jogar capoeira.

Dar ao texto bíblico este estatuto de supertexto inibe qualquer relação mais espontânea e descontraída. Como devem ser a oração e a meditação. Uma Bíblia assim é uma castração existencial para os devotos. Mas nem creio que Deus compartilhe esta crença nem entendo que a Bíblia deva ser lida assim.

A Bíblia dos exegetas e seus métodos com pretensão científica é um corpo morto e inerte e sua exegese, uma exumação. A Bíblia dos que a lêem literalmente é semelhante à comida sem cheiro e cor e sua leitura é uma desleitura.

Surrupiado de Elienai Jr.


Veja também:
- Reticências

Mundos

Seu Adílio mora numa grande casa de madeira, azul, com dois pavimentos e telhado formando um ângulo agudo, construída pelo seu avô.

Na primeira vez que fui em sua casa, já me tratou como velho conhecido. E depois de muita prosa, terminou dizendo que naquela casa as trancas ficam do lado de fora - sua maneira de dizer que eu seria bem-vindo na hora em que quisesse retornar.

É difícil acreditar que aquele senhor, forte e bem disposto, seja bisavô. Algumas vezes em que fui procurá-lo, soube que estava fora por alguns dias, numa cavalgada por alguma antiga trilha de tropeiros. Ouço suas histórias com atenção. Sobre cavalgadas, ataque de porco, cobras, feitos de seus antepassados, coincidências e acidentes. Nelas, ele pode ser um espectador, a vítima, ou um perfeito trapalhão. Ainda não ouvi uma em que seja o herói. Conta sobre um novo pedaço de mato que conheceu na última cavalgada como um professor de história da arte falaria sobre uma visita ao museu de Louvre.


O Edi tem seus vinte e poucos anos. Baixo e magro, com cara de moleque. Mistura o sotaque de polaco típico da região com um caipirês interessante, temperado com uma dificuldade particular com alguns fonemas, o que faz com que quem não esteja habituado não consiga entender metade do que diz. Com uma enchada na mão é um pequeno furacão. Constrói cercas, revolve a terra, roça, carrega pedras, faz aterros, trata animais, sempre como se recebesse por tarefa executada e não por dia trabalhado. O irmão mais velho já o convidou algumas vezes para trabalhar com ele no mercado, mas ele sempre declina. Imagine só, diz ele, trabalhar o dia todo dentro de um prédio, sem liberdade, sem ver o sol. Aos domingos se arruma com botas lustradas, chapéu, monta sua bela égua cuidadosamente escovada logo cedo e vai atrás das festas da região. Se bebe um pouco além da conta, não há com que se preocupar. A égua sabe o caminho de volta.


Seu Faustão é daqueles que ri à toa. As conversas com ele são sempre temperadas com gostosas gargalhadas, que fazem balançar seu barrigão! Ganhou um bom dinheiro com alguns investimentos certeiros, mas anda por aí de fusquinha branco e chinelos havaiana. Outro dia veio com seu trator enterrar a Morena, nossa querida égua que morreu repentinamente. Viu a choradeira das crianças e a tristeza no olhar da Sil e no meu. Mas não resistiu em comentar: "É, é triste perder um animal. Mas pra vocês, era só um bicho de estimação. Triste mesmo é quando tenho que enterrar a única vaquinha da família, aquela que dá o leite de todo dia".



É estranho como dois mundos existam tão próximos. Transito entre os dois diariamente. E constantemente me sinto perdido entre eles. Parece que não faço parte nem de um, nem de outro. No competitivo ambiente empresarial, sou o cara esquisito que mora no mato, dirige uma Rural velha e enlameada e cria coelhos. Entre os vizinhos, sou o moço que "trabalha na TV", cria bichos mas não os come, tem terra mas não planta.


Nada é perfeito em nenhum dos dois. Em ambos há alegrias e tristezas, trabalho e suor (seja esse suor real ou apenas figura de linguagem). Mas a simplicidade do mundo do Seu Adílio, do Edi, do Seu Faustão e tantos outros me comove. Gostaria muito de passar mais tempo nele.

Ali a vida me parece mais real. Suor é suor mesmo. Calos nas mãos também. O sol queima, o vento refresca, a chuva molha. As rugas são resultado da pele ressecada e não de eternas preocupações.

As pessoas morrem de coice, não de stress.



Sinceramente? Acho que preferia morrer de coice.

3 de agosto de 2009

Desapego [2]

Rastros

Desde o início dos relatos bíblicos a narrativa nos mostra um Deus pronto a desfazer, desmontar, derrubar e começar de novo. Ele constrói um jardim e em seguida o abandona. Cria o mundo e o destrói no dilúvio. Vai até Abraão e o manda abandonar sua história e família em busca de algo novo. Depois retira o neto de Abraão do local onde Ele mesmo colocou seu avô e o leva ao Egito para em seguida, como que numa brincadeira sem graça, retirar o povo todo que cresceu no Egito para levá-lo de volta à terra do patriarca.

Como numa jogada sem pé nem cabeça, o Criador desfaz o que fez para depois refazer tudo - como a criança que desmonta o brinquedo todo só para poder montá-lo novamente. Nesse jogo de humor pouquíssimo sensato, Deus revela seu Espírito desapegado. O que importa, é a sensação que tenho, nunca é o que já foi feito, mas o que se poderá fazer em seguida.

Não é, como pode parecer superficialmente, um desapego irresponsável. Pelo contrário, é um desapego que demonstra que a única coisa realmente responsável a fazer é seguir sem deixar rastros. Olhar para trás é potencialmente um risco de nos cristalizarmos em estátuas de sal.

Desapego:
1. Liberdade e cruz
2. Rastros
3. Nuvem
4. Teimosia
5. Esterco