29 de outubro de 2009

Imutável

Há 18 anos pisei pela primeira vez o solo santo do morro do diabo*. Lá vivi intensamente alegrias, tristezas, amizades, pavores, cansaço, fome, frio, calor, solidão profunda, epifanias enebriantes, histórias engraçadas e trágicas. É impossível contabilizar quantas vezes subi essa montanha. Depois que deixei Curitiba, a primeira via de escalada que abri em Blumenau foi batizada de Baitaca, em homenagem à serra que abraça carinhosamente o monte que aninhou-se macio em minhas lembranças.

Foi lá que criei coragem e venci o gigante da timidez e do estilo brucutu para iniciar meu primeiro (e único) namoro.

Foi lá que vi o colega caído, o sangue no chão, a vida esvaindo pelo corte profundo na cabeça.

Foi lá que meu irmão deixou definitivamente de ser o tutor do mais novo e tornou-se para sempre, de maneira irreparável e irrevogável, o melhor e mais querido amigo.

Foi lá que o sol se pôs de maneira mais caprichosa, beijando delicadamente a linha do horizonte, numa tarde perdida no passado mas marcada eternamente na retina.

Foi lá que as nuvens formaram as mais belas mantas de algodão cobrindo todo planalto araucano de prata umedecida pelo banho da lua cheia.

Foi lá que amizades se entrelaçaram entre risos, conversas e lágrimas, ao ponto de não mais se desfazerem mesmo distantes.

Foi lá que levei meus filhos ano passado. E passei um dia mágico de nostalgia, com a linha obstinada do tempo vacilando sinuosa, na companhia de amigos queridos, do irmão parceiro, dos sobrinhos e da única namorada. Comemos sanduiches e lembramos histórias nos pés da mesma imutável e impassível pedra que me viu menino e homem, e me verá, um dia, partir para não voltar mais.



*Em tupi, Anhangava.

26 de outubro de 2009

Compaixão tem nome

…Onde as botas e os fuzis impõem o medo, dão toque de recolher, fazem calar, ameaçam, perseguem e torturam, compaixão tem cara, cheiro e nome, pode chamar-se Dietrich Bonhoefer, Oscar Romero ou Helder Câmara, entre outros e outras.

…Onde os direitos humanos são violados, crianças são desrespeitadas, adolescentes abusados, idosos maltratados e pessoas sendo destratadas por causa da cor da sua pele, compaixão passa a ser ações concretas com cara, cheiro e nome, podendo chamar-se Nelson Mandela, Martin Luther King, entre outros e outras.

…Onde os pobres são mantidos por gerações como “intocáveis”, sem possibilidade de mudanças e quando a fome lhes impede de ter esperança e sonhos por melhores dias, compaixão tem cara, cheiro e nome, pode chamar-se William Booth, Madre Teresa de Calcutá ou Irmã Dulce, entre outros e outras.

…Onde uma nação é invadida, suas manifestações culturais proibidas, a violência normatizada e a incoerência entronizada, compaixão tem cara, cheiro e nome, pode chamar-se Mahatma Ghandi, entre outros e outras.

…Onde a natureza é explorada de forma gananciosa, sem nenhum compromisso com as gerações vindouras, compaixão tem cara, cheiro e nome, tem greve e discurso ainda que feito por um matuto como Chico Mendes, entre outros e outras.

…Onde a hipocrisia é quem manda, o fingimento é quem que reina e a falta do uso da razão é espiritualizada, compaixão tem cara, cheiro e nome, pode chamar-se Rubem Alves, entre outros e outras.

…Onde o analfabetismo é bem visto, o subemprego bem quisto e esse salário mínimo defendido, compaixão tem cara, cheiro e nome, pode chamar-se Darci Ribeiro ou Paulo Freire, entre outros e outras.

…Onde… compaixão é qualquer ação, feita especialmente em nome e por amor a Jesus, consciente ou inconsciente, espontânea ou não, que de alguma forma tira-nos do comodismo, do individualismo, do esquizofrenismo, das nossas dores, dos nossos desamores, dissabores e sofrimentos e leva-nos à identificação com o pobre, com o necessitado, com a dor alheia, impulsionando-nos a defender, a promover, a participar e a apoiar ações que visem o bem da coletividade.

Que o Eterno nos ajude a crescer em compaixão.

Compilação de texto de Maruilson Souza,
citado por Ebenezer na Pedra de Ajuda.
O texto completo está aqui.

22 de outubro de 2009

Facada

Puxou a faca. Sob ameaça de morte, percebendo que não lhe restava nenhuma saída que não fosse o motim, empunhou a lâmina delgada. O momento não lhe permitia reação que não fosse essa ou entregar-se à morte. Chegou a pensar em render-se, mas intuiu que a rendição significaria não sua derrota mas a falência de seu sonho. Naquele instante, abatido, acuado, poderia abrir mão da vida. Seu sonho, no entanto, parecia-lhe maior que ele mesmo. Parecia, ele sim, ser bom motivo para a luta.

Espadas, lanças e adagas apontavam com convicção para seu peito. A pequena faca não oferecia a menor possibilidade de vitória. A situação era tão absurda que a mente descolou-se da lógica e do bom senso. Flutuou acima do óbvio e lançou-se às pontas afiadas.

Deitado no chão duro, observou o grupo se distanciando vitorioso. Alguns limpavam o sangue das lâminas enquanto outros as arrastavam no solo, riscando a terra com ruído metálico, e caminhavam de ombros caídos rumo aos portões. Retornariam à segurança das altas muradas que os mantinham distantes do sol e do vento. Deixado aos abutres, no entanto, ainda viu os olhares fixos de espanto e confusão de alguns do povo na entrada da cidade. Não fitavam os vencedores, nem os recebiam com entusiasmo; esses simplesmente passaram esbarrando na multidão rumo ao castelo no centro da fortaleza. Ofegante, quase morto, percebeu que o pequeno grupo de aldeões permaneceu olhando estarrecido o breu de seus olhos semicerrados. E sorriu.

19 de outubro de 2009

Marionetes

As incríveis marionetes gigantes da companhia teatral francesa Royal de Luxe.












Muito mais aqui.

15 de outubro de 2009

Pânico

Perseguição implacável no sítio do tio Kurt, em Pomerode.




Não perca as outras aventuras das mesmas personagens:
- Momento
- Magnífica Expedição ao Quintal de Casa
- Criaturas da Noite

8 de outubro de 2009

O reino da delicadeza

Elienai Cabral Junior

Um desconforto vem me acompanhando há bastante tempo. A dificuldade com que muitos recebem a proposta de uma religião radicada no amor e não no medo, na liberdade e não no patrulhamento moral, na maioridade e não na infantilização.

Ouço de tudo. Aquele que acredita que para algumas pessoas uma espiritualidade baseada na consciência e responsabilidade, frutos livres de uma relação de amor e não de constrangimento, é perigosa, quando não, pouco producente para os engajamentos religiosos. Há pessoas, afirmam com um pragmatismo encabulado, que precisam de regras, coerção e cobrança. Precisam de uma religião legalista. Caso contrário, não conseguem vencer seus vícios e pecados.

Outros desconfiam da liberdade. Pregar um Deus que ama em completa independência do desempenho humano é muito arriscado. Deus também é justiça! A Graça de Deus tem que ter limite. Se a pessoa não tiver medo do inferno, vai fazer tudo o que der na cabeça. Se não souber que existe uma punição divina para os seus deslizes, vai se tornar alguém imoral.

[...]

A voz divina que aprendemos a ouvir é ou a voz ameaçadora frente à nossa vida moral, ou a voz de uma barganha com o Céu, que em troca de devoção e obediência, oferece a proteção que poucos tem. Propor uma espiritualidade movida por amor e, portanto, gratuidade não é um remendo possível ao que já tínhamos, mas um novo e levíssimo tecido religioso.

[...]

Enxergo a mesma dificuldade em seus discípulos quando Jesus sugere outra lógica para a nossa relação com Deus. No momento mais imponente de seus argumentos. Ressurreto contra toda a injustiça e humilhação de sua morte. Com uma prova material irrecusável, forte, violenta. Irresistível. Com visibilidade incontestável. Jesus afirma que nesta exata hora o melhor será sumir. Substituir a presença irresistível, visível e poderosa pela sutileza de uma brisa: o outro paráclito tem o nome de vento, o Espírito de Cristo ao invés do Cristo ressurreto. Ele diz que sumirá nesta hora para o bem de seus discípulos.

[...]

Somente um Deus com presença discreta, uma quase ausência, é capaz de lembrar-nos de que não somos escravos, mas filhos e não nos esmagar com sua absurda e insustentável grandeza. [...] A presença discreta de Deus é a nossa única chance de integridade.

Um Deus discreto é um Deus quase ausente. Uma religião que continua ao substituir seus processos de infantilização é uma religião com pouquíssima religião. A vida proposta por Jesus a Nicodemos, nascida do Espírito, como o vento que ninguém sabe de onde vem e nem para onde vai.

Uma religião com pouco pastoreio e muita tolerância. Com dogmas frágeis e ritos sutis. Que deixa morrer suas instituições para sobreviver sua gente. Que desiste da hierarquia e esconde-se nos santos anônimos. Que ri dos jogos de poder e reverencia os gestos de amor. Que abre os braços, em cruz, para os riscos para não deixar de abraçar os vivos. Acolhimento das angústias e inseguranças das liberdades. Fermentação de humanos.

Um lugar que é menos espaço e mais ajuntamento. Um culto que é menos tempo e mais encontro.

Só uma religião discretíssima sobrevive a um Deus que é Espírito.

Só uma religião discretíssima sobrevive à maioridade dos religiosos.


Leia o texto completo de Elienai Cabral Junior aqui.

5 de outubro de 2009

Das erste Wunder

Quando recebeu o convite para a grande festa de outubro, nem pensou duas vezes. Reuniu seus amigos e os levou consigo. Muito chope, música, dança. A festança rolava solta. Ele e os doze companheiros estavam trajados com roupas típicas. Degustaram com muito gosto as cervejas artesanais e acompanharam as apresentações folclóricas com entusiasmo.

Enquanto dançavam divertindo-se no meio do salão, receberam a notícia trágica. Os foliões da festa começaram a perceber o ocorrido. Corriam de barril em barril, enquanto os garçons e bares tentavem entender o que estava acontecendo. Ainda era cedo, a festa mal havia começado, mas os barris estavam secos. O chope acabara. Turistas incorformados caminhavam de estande em estande, de choperia em choperia, dentro dos galpões gigantescos que abrigavam a festa.

No meio da confusão o rapaz rumou convicto até o centro de informações e cochichou algo nos ouvidos dos responsáveis. Uma turma da organização da festa saiu em disparada, em várias direções, cada um rumando diretamente para uma das mangueiras de combate a incêndio embutidas nas paredes dos pavilhões. Quebraram os vidros de segurança e acionaram as mangueiras. Milagre! A água transformara-se em chope. Chope gelado. O mais puro malte. Alegria garantida para todo mundo. A música voltou, os corpos giravam eufóricos ao embalo das bandas alemãs. O riso corria solto. Jamais haveria uma oktoberfest como aquela.

No dia seguinte líderes religiosos de todo vale se reuniram para deliberar sobre o assunto. O fato era grave e pedia medidas drásticas. Um milagre desse porte não passaria despercebido. Certamente desviaria a atenção dos fiéis, arrastando-os para longe dos púlpitos e gasofiláceos. Algo precisava ser feito. Os dias daquele rapaz estavam contados...

*****

Pouco antes de postar esse texto, conheci dois projetos muito interessantes.

Beer and Hymns*
Amazing Grace.




Beer and Bible*




* Links dos projetos divulgados no Pavablog.
Das erste Wunder - Primeiro Milagre, em alemão.

1 de outubro de 2009

Sarau em Blumenau [2]


É AMANHÃ.

2º Sarau Facamolada
Sexta-feira | 2 de outubro | 20h | No Espaço Mariás
Rua Espanha, 94 - Velha - Blumenau
(Em frente ao Castelo Suiço)
[mapa]

Ingressos a R$15,00 - todo lucro pra Casa de Recuperação Novo Rumo.
Comes e bebes incluídos.


Dessa vez com:
- show de Stenio Marcius e Diego Venancio
- trabalhos artísticos de Rosinha Imthurm e convidados
- esculturas de Zonadir Patrício
- expo de orquídeas de Arno Muller
- fotos de Allyson Correia
- contos, poemas e bate papo