30 de novembro de 2009

Letrista

Sempre quis escrever poemas. Se eles pudessem transformar-se em letras de música, tanto melhor. Escrevi uns tantos na adolescência, mas ninguém nunca soube. Mais uns tantos na época do namoro (sim, 'o', no singular mesmo - único, suficiente e definitivo). Mas ninguém além da minha namorada soube.

Mas chegou o grande dia. Uma parceria minha com o Jorge Camargo. É irrelevante citar que pelo menos outras vinte pessoas participaram da criação coletiva. Mais irrelevante ainda dizer que nem uma das minhas sugestões foi aceita na composição do texto. O importante mesmo é que eu estava lá e, portanto, a música é do Jorge, a letra é minha (e de mais alguns...).

Já estou preparando alguns poemas para enviar para o Milton Nascimento. Vou dar uma chance para o Bituca musicar um texto meu.



Somos de muitos lugares
Cores de tantas matizes
Com diferentes falares
Nutrindo nossas raízes

Jongo, maxixe, ciranda
Jambo, cajá e açaí
Rede viola e varanda
'Bóra com que já tá aí

Vamos juntar o que há de bom
Sentar à mesa pra combinar
A melodia, a voz, o vinho e o pão
Com o desejo de partilhar

Vamos colher o que se plantou
Bendito o fruto desse suor
Poetizar a paz em tom maior
A esperança, a fé e o amor


Resultado da oficina de composição do Jorge Camargo, com participação especial do Gladir Cabral, no Nossa Música Brasileira 2009.

26 de novembro de 2009

Segunda onda

Uma segunda onda está surgindo.

A primeira trouxe em sua corrente o abandono do enfastiado sistema religioso (seja ele qual for). Alguns ramos emergentes, as igrejas nas casas de Frank Viola, o Caminho da Graça de Caio Fábio, todos, cada um de sua forma peculiar, apontavam para a deserção do sistema religioso mais do que viciado (obviamente, não somente para isso, mas para uma ampla proposta de vivência do evengelho). Algo novo precisava (e ainda precisa) surgir das cinzas e do pó (e está surgindo) resultantes do desmoronamento das instituições de pedra, cimento e cal que caminham para a ruína. As propostas estão na mesa.

A segunda onda, porém, traz consigo o desejo de juntar os destroços, de salvar o barco antes que afunde. O carro chefe são os seminários "Lutando pela Igreja - Porque Deus não tem um plano B", apoiados por muita gente boa de verdade, preocupada em não jogar o bebê fora junto com a água do banho. Gente que admiro e que cito volta e meia aqui na Trilha. Gente fera como Gondim, Kivitz e Ariovaldo.

O argumento da primeira onda baseia-se na provocativa lógica de Jesus - vinho novo precisa de odres novos. O argumento da segunda tenta inverter a lógica botando a culpa no vinho e não no odre.

"Muita gente acha que é isso que está acontecendo: a estrutura está atrapalhando o evangelho. Daí, há quem esteja propondo o fim da instituiçáo, para liberar o evangelho, o vinho, para que este se expanda saudavelmente. Entretanto o problema, hoje, é que o vinho está se tornando vinagre! Quando o vinho se torna vinagre, que mudança de estrutura, que desinstitucionalização dá jeito?" Ariovaldo Ramos, no seu blog.

O argumento é interessante, o esforço é louvável, mas a lógica não convence. Se o odre está cheio de vinagre, está contaminado. Ninguém colocaria vinho bom num odre que esteve cheio de vinagre, mesmo que tenha sido esvaziado e lavado, porque o vinagre continua nas suas entranhas - e continuará para sempre. Já era. A lógica de Jesus permanece. Se há vinho novo, que surjam novos odres.

O medo de perder é o que nos imobiliza. Nos falta, definitivamente, o mesmo desapego que vemos no criador.

Se há o que salvar na igreja historica formalmente instituida, certamente há. Sempre há. Há o que salvar por todos os cantos - no ateismo, no budismo, no cristianismo, na igreja, na sinagoga, na mesquita, até em mim. Nos preocupemos então com tudo que há de bom em cada canto, ou em cada plano. Porque Deus é muito criativo e pode sim ter plano B, C, D... como bem demonstrou o Roger.

Mas ainda penso que o melhor que temos a fazer é permitir que o barco da formalidade afunde com todos aqueles que amam o barco e não o vento, nem o mar. Esses afundarão agarrados aos mastros. Os demais terão tempo e energia e fé para o salto que os levará aos botes ou destroços e lá poderão recomeçar.


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Veja também:
Um próximo passo
Avivamento
A noiva e o jardim

23 de novembro de 2009

Um ano depois

Enquanto a chuva despenca insistente sobre o teto de zinco, Dinho não consegue pregar os olhos. O som da água é como uma metralhada no paredão. Acuado, encolhido num canto da cama, tem medo de fechar os olhos e ser de novo violentado com a imagem do barranco, da madeira destroçada, dos cacos de vidro, dos clarões, da correria, dos gritos. Os olhos permanecem fixos nos brinquedos no canto do quarto. Temendo perdê-los de novo, traz, silenciosamente, todos para a cama. Deita no meio de ursos, bonecos e carrinhos. Sente falta do choro da irmã e chora baixinho por ela. Entre os brinquedos novos, que alguém de longe mandou de presente em um caminhão, está a boneca retirada dos escombros e que ele insistiu em guardar.

No meio da metralhada cruel ainda ouve o som abafado do rádio e a discussão dos pais que ficam sempre muito brabos em dia de chuva.

Fecha os olhos espremendo-os bem para pedir, com todas as suas forças, que Deus pare com esse aguaceiro, mas não consegue mantê-los fechados até o fim da oração - e a água não pára.

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Esse mês faz um ano que o céu e os montes desabaram sobre Blumenau. Há quem já tenha esquecido. Há quem jamais irá esquecer.

Ainda hoje mais de 350 famílias* estão alojadas em galpões alugados pela prefeitura, acomodando-se como podem em módulos de 25 a 37m2, entre divisórias de madeira e banheiros coletivos. Além disso, um número considerável está ainda vivendo de favor em casas de amigos e parentes. E um terceiro grupo está vivendo em casas alugadas com o 'auxílio moradia' que deve ter sua última parcela entregue às familias cadastradas agora em dezembro. Daí pra frente ninguém sabe o que será.


*alguns locais falam em 2,5 mil pessoas nos abrigos. Mas é difícil conseguir os números oficiais. A prefeitura luta com todas as forças para manter escondida sua incompetência e deixou isso mais do que claro no cancelamento do desfile de encerramento da Oktoberfest, com a nefasta intenção de abafar um protesto.


Veja também:
O monstro
Em todos os cantos

20 de novembro de 2009

Sexta-feira

Fim de expediente.
Sabe o que eu penso disso?


Clique no play e lave a alma.


Roubado de email que me enviou meu mano Tato e deve estar circulando por aí.
Uma hora ou outra você vai receber também.

16 de novembro de 2009

Como o Gaya fazia um arranjo

Por andreegg, sempre dando Um drible nas certezas.

Quem me contou essa história foi o Lydio Roberto.

Aconteceu pelos idos de 1983 quando Gaya, o “maestro da MPB”, já estava morando em Curitiba - onde terminaria seus dias às voltas com a parentada de sua esposa Stelinha Egg. O maestro trabalhava no estúdio SIR, acho que o principal centro de produção pulbicitária da região na época.

O Lydio era um jovem músico trabalhando no estúdio, e ganhou a oportunidade de compor um jingle. Já tinham outro na manga para o caso de o dele não ficar bom. Compôs um samba, mostrou para algumas pessoas do estúdio, que gostaram.

- Falta mostrar para o Gaya.

- O maestro?

- Sim.

Segue o Lydio para mostrar a música. Canta o samba e toca ao violão. Terminando a música, Gaya puxa assunto sobre futebol. Lydio atleticano, Gaya fluminense. O Fluminense tinha Washington e Assis, fabulosa dupla de ataque que também já tinha feito sucesso no Atlético, quando o time chegou pela primeira vez a uma semifinal de brasileirão.

Enquanto conversavam, Gaya fumava muito, e rabiscava uns papéis.

Lydio esperando quando o maestro iria para o piano, para experimentar a música. Ou quando iria, talvez, conferir a harmonia, para ver se era isso mesmo.

Que nada. Depois de meia hora de conversa sobre futebol, Gaya diz: “vamos trabalhar?”

Chamaram os músicos (trompete, trombone, sax, contrabaixo - o próprio Gaya fazia o piano). Aqueles papéis rabiscados no meio das conversas futebolísticas eram o arranjo pronto. Até a hora do almoço o jingle já estava gravado - para surpresa do jovem compositor.

12 de novembro de 2009

Apagão

Não sei se alguém já percebeu isso mas A Trilha é uma confusão muito bem organizada. Tem post novo toda segunda e quinta, desde 2007, obviamente com algumas falhas, aqui e ali, por motivos honrados como falta de assunto, imaginação e criatividade ou mesmo por deliciosa preguiça. Mas a mania de postagem metódica prevalece - a carne é fraca.

Nas últimas semanas, no entanto, está difícil manter o ritmo. Especialmente por culpa do cabra da peste e sua insistência em me encher miseravelmente de trabalho, esse demônio do mal.

Pois bem. Suspeito que essa dificuldade permaneça por mais algum tempo durante o qual permanecerei em obsequioso silêncio. Retornarei, é claro, mas o dia e a hora ninguém sabe, nem os anjos dos céus, nem o Filho senão somente o Pai.

Por hora, me calar é a saída.

9 de novembro de 2009

Entre o alvo e a seta

"Um ano depois do início da crise financeira global, já tem gente comemorando a retomada do crescimento econômico, como se não estivesse justamente aí o germe da insustentabilidade do planeta."
Entre a arca de Noé e a torre de Babel - Geraldo Hasse - 1/10/2009

E não é que eu, que pateticamente me considero bonzinho e preocupado com o planeta, estou feliz da vida com a retomada do crescimento que me garante o emprego e os canapés? Farsante miserável é o que sou. Quem me livrará do corpo dessa morte?

Para tentar desviar sua atenção da minha total falta de escrúpulos e recuperar a aura de boa gente preocupada com a humanidade, deixo cair discretamente em seu monitor a canção de Pedro Abrunhosa, sem que a mão esquerda saiba o que fez a direita.

"De costas voltadas não se vê o futuro
Nem o rumo da bala, nem a falha no muro
E alguém me gritava, com voz de profeta
Que o caminho se faz entre o alvo e a seta"



Para Quintani, a voz do profeta.

2 de novembro de 2009

Cabra da peste

Esses dias me disseram, a respeito de um projeto que estava desenvolvendo, que Deus levaria as pessoas certas a participar. Compreendo. O problema é que Deus não costuma levar em consideração o fato de que, se as pessoas certas, naquele caso, fossem poucas, eu teria que arcar com um pequeno rombo financeiro. Ele é meio desligado nessas miudezas monetárias. Afinal de contas é dono de todo ouro e prata. Não tem com que se preocupar. Nós é que precisamos desse demônio de papel para sobreviver.

Pensando nisso é que percebi o caminho sutil que está levando o tinhoso a assumir sua forma definitiva nesse mundinho cão.

Aquele espírito de luz, não muito tempo depois de nos aparecer como serpente, abandonou a pobrezinha rastejante e assumiu a forma de metal pesado. Ouro, prata, bronze. Era preciso centenas de escravos para carregar, em carruagens reforçadas, um bom pagamento para casa. Com o passar dos séculos, transformou-se em níquel, mais leve e sutil. Uma boa quantia poderia ser carregada em uma maleta. Lentamente, como o inseto de Kafka, foi afinando até a leveza e versatilidade do papel, e coube em bolsos e cuecas (ou dentro de bíblias). E vem seguindo seu inacreditável processo de desmaterialização, na intenção maldosa de tomar de novo a forma original da virtualidade, do espírito. Estará, logo, logo, instalado definitivamente dentro de nós.

Não é a toa que o Filho do Homem aconselhou-nos ao desapego total. Não é a toa que chamou o dinheiro pelo seu verdadeiro nome. Mamom. Não é a toa que nos deu como modelo os passarinhos e lírios.

Mas essa insuportável passagem dos evangelhos, talvez uma das mais desprezadas no cristianismo contemporâneo, é quase sempre vista de uma perspectiva, na melhor das hipóteses, parcial. Na esmagadora maioria das vezes, aqueles que não fogem desse texto intragável costumam usá-lo como exemplo do inescapável cuidado de Deus - aquele cuidado que vai fazer a adesão àquele projeto ser certamente suficiente e o rombo no orçamento ser evitado.

Evidentemente não é isso que o texto diz.

O surpreendente com os lírios é que mesmo que muitos floresçam, enfeitem e perfumem o campo, uma enorme quantidade deles morre seca e esturricada na estiagem ou afogada na enchente. Isso quando alguma cabra maldita não pisoteia ou, pior, mata o lírio sufocado em seu esterco. E pássaros, além de serem devorados por uma porção de predadores, são absolutamente incapazes de enxergar a parede de vidro que lhes partirá o pescoço. Ainda assim, por mais absurdo que nos pareça, todos estão sob o cuidado de Deus, segundo o primogênito de Maria.

O negócio é tocar a vida e torcer para nenhuma cabra passar por perto e para que todas as janelas permaneçam abertas.