25 de fevereiro de 2010

Reflexo

Dallmarco não queria ver o sol. Suspeitava que a luz lhe arrancaria a pele, deixando-o em carne viva, liquifazendo-o como a uma lesma aspergida por sal. Preferia permanecer trancado em casa, jogado no sofá ou na cama, onde luz nenhuma entrava. As janelas estavam todas ornadas com pesadas cortinas, 3 ou 4 camadas delas. Há pelo menos 4 anos não eram abertas. Passava a maior parte do dia comendo compulsivamente ou dormindo profundamente, quase desmaiado.

Num dia claro de sol, Dallmarco permanecia com o corpo balofo e pálido inerte, estirado sobre a cama, em sono profundo, cercado de farelos e baratas. Na rua em frente a sua casa, um pequeno grupo de meninos, o maior com 12 anos, reunira-se conforme há muito haviam planejado. Temiam o fantasma gordo mais do que tudo, mas desejavam ardentemente expor sua pele branca à luz do dia, com a mesma curiosidade de quem caça lesmas com um saleiro. Curiosamente foi Caco quem atirou a pedra que espatifou o vidro e balançou as pesadas cortinas. Como não houve nenhuma resposta do lado de dentro da casa, uma chuva de pedras tratou de seguir a primeira, fustigando as cortinas que moveram-se sobre os trilhos abrindo uma generosa fresta. A luz do sol entrou displicente pelo vão e deitou-se suave sobre a pele branca de Dallmarco que acordou confuso. Há muito tempo as pupilas reclusas do homem não se comprimiam tanto. Cegado pela luz, disperso pelo despertar tumultuado, atordoado pelas pedras que safaram-se das cortinas e o encontraram na cama, Dallmarco correu na direção do clarão na vertigem de tentar impedi-lo de entrar. Correndo atabalhoado, feriu os pés nos estilhaços de vidro, alternando-se em pulos de um pé só e, levando a mão aos cortes, ainda em pulos descoordenados, desequilibrou-se despencando pelo vão da janela, levando consigo as cortinas e chocando-se violentamente contra o chão de pedra do jardim.

Quase fiquei cego diante do ofuscante reflexo do sol sobre a pele branca daquele corpo enorme estirado na calçada, antes de deixar cair a última pedra que tinha na mão e correr apavorado.

22 de fevereiro de 2010

Um pescador [2]

2. VOU PESCAR

No quarto escuro, sonhava com a terrível noite que tornara-se, para ele, uma assombração. Lembrava-se angustiado de ter se negado a permitir-lhe lavar seus pés. E envergonhava-se pela tentativa de remediar a gafe, exagerada como sempre, pedindo para lavar-lhe o corpo todo. Mas o que cortava sua alma como as lâminas que rasgaram a pele do rabi era a lembrança absurda da traição. Sua máscara caira por terra. Não era Pedro! Não era pedra! Era vento, era nada. Medroso, fraco e fujão. E fora avisado! - Hoje mesmo você me negará - era a frase que retinia como sino em badalos constantes e ensurdecedores em sua mente.

Não tinha como prosseguir. Havia largado as redes cheio de coragem e esperança, mas não podia mais viver assim. Sua única alternativa era voltar à elas. Seus últimos três anos foram um sonho, devaneios de uma alma infantil. Lembrou-se de quando foi chamado de diabo, de quando quis fazer uma tola tenda para abrigar fantasmas, das tantas vezes em que foi repreendido por não entender nada, pelas perguntas absurdas que por pouco não levavam o mestre a loucura (até quando terei que suportá-los?), da onda que o fez afundar. Lembrou da noite em que dormiu tranquilamente no jardim enquanto o mestre sofria a angústia de saber seu destino, pouco antes da traição e do cantar do galo. Teve pena de si mesmo por ter crido que poderia ser peça importante em uma revolução sem precedentes. Via agora claramente o quanto foi tolo.

- Vou pescar!

As palavras saíram com convicção, mas o corpo moveu-se a contragosto. Ainda tinha o barco, ainda sabia o que fazer com ele. Desfigurado e pálido, juntou forças para mover-se até a praia carregando as redes, velas, cordas e remos. Checou cada detalhe com nostalgia profunda. Já não sabia mais se algum dia havia largado o barco e deixado mesmo tudo para trás. As lembranças se embaçavam nas lágrimas. Percebia que seu destino inevitável era o mar, a rede, os peixes. Voltaria no tempo por três anos e viveria como se nada tivesse acontecido.

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Um pescador:
1. Flash Back
2. Vou pescar

18 de fevereiro de 2010

Um pescador [1]

1. FLASH BACK

Nas últimas semanas, desde que o mestre morreu, irresistíveis flash backs dos últimos 3 anos pipocavam na mente do pescador. Lembrava dos rumores que surgiam sobre um novo e desconcertante rabi que andava às margens do mar de Tiberíades, de onde ele tirava seu sustento. Lembrava do relato de seu irmão narrando-lhe num misto de euforia e apreensão as palavras de João, o batista, quando lhe dissera que esse rabi era o cristo, o profeta esperado, o libertador. André parecia fora de si. Dizia ter visto uma pomba descer sobre ele. Jurava ter ouvido uma voz do céu chamando o enigmático homem de filho amado no momento em que João o batizava.

O quarto mal iluminado onde Pedro passara as últimas semanas já cheirava mal, pelos longos dias com portas e janelas fechadas, e tinha o ar carregado, quente e humido, que o fazia arfar ofegante. Três anos de espectativa intensa pareciam ter desmoronado sobre seus ombros cansados. E pesavam muito, pressionando-o sobre a palha no chão, impedindo-o de levantar.

O mais estranho foram as aparições do rabi depois de ter morrido. Quando as mulheres disseram tê-lo visto vivo, correu como louco na esperança de encontrá-lo, mas viu apenas um túmulo vazio. Quando enfim apareceu na casa onde estava todo o grupo que por três anos o tinha acompanhado, o coração de Pedro disparou, fazendo-o sentir tremores de ansiedade e medo, com as pernas falseando. Olhou fixo nos olhos do mestre, ansioso, esperando palavras suas, esperando trocar olhares, esperando um mínimo de reciprocidade. Mas suas palavras lhe pareceram geladas e distantes, dirijidas a todos indistintamente.

Lembrou dos tantos momentos juntos. Lembrou que entre todos foi o que esteve mais perto. Lembrou-se de ter caminhado sobre as águas, de tê-lo corajosamente chamado de Cristo, da primeira vez em que Jesus o chamou de Pedro, mudando para sempre seu nome. Lembrou-se das muitas vezes em que foi chamado de amigo. Mas sua alma enchia-se de horror e trevas! Sentia um buraco profundo no estômago. Três vezes ele apareceu e em nenhuma delas lhe dirigiu a palavra.

A intimidade havia desaparecido com o terceiro canto do galo.

[...]

15 de fevereiro de 2010

Tamotsu Takazaki



Akira Takazaki (na frente, à esquerda)
e seus filhos. O mais alto, atrás, é
Tamotsu Takazaki (ou Paulo Takazaki)





Hoje faz um ano desde que Seu Paulo faleceu.

Nas primeiras vezes em que o vi, sentado em sua poltrona e assistindo TV, eu estava muito interessado em causar boa impressão. Cumprimentei-o com um sorriso e um ansioso "boa noite, Seu Paulo". Ele nem ao menos me olhou.

Como o namoro com a Sil foi se alongando, minha presença naquela casa foi ficando mais comum. Depois de algum tempo, meu futuro sogro já olhava para mim, com expressão muito séria e respondia "hummmm!", para em seguida voltar à televisão. Já era alguma coisa...

Até que um dia comprei um jipe! E descobri que aquele japonês mal-encarado havia sido mecânico no exército e não só amava jipes como sabia tudo o que se pode saber sobre eles.
E descobri muito mais. Ouvi suas muitas histórias sobre o tempo no exército, operando uma usina elétrica e consertando jipes e caminhões em pleno Pantanal. Ouvi a respeito de sua infância trabalhando na oficina de seu pai no interior de São Paulo. Das dificuldades no aprendizado do português, dos absurdos do tempo da II Guerra, de como fugiu de casa e se tornou caminhoneiro. Dos milhões de quilômetros rodados pelas estradas do Brasil. Das máquinas que projetava e construía na Barranco Ferro e Aço. Histórias, muitas, muitas histórias...

Um dia, me convidou para uma viajem. Fomos de Toyota Bandeirantes até São Paulo, visitar parentes dele. Ele, Dona Maria, a Sil e eu. Foram para mim dias muito especiais. Pela primeira vez me senti incluído naquela família de jeitão tão diferente.

Com os anos, fui aprendendo a admirar aquele velho japonês. A cara fechada era só fachada. Era sim um homem que teve que lutar duro a vida toda sem nunca achar que o mundo lhe devia algo. Perfeccionista ao extremo, forte como um touro, metódico em tudo.

Acompanhei a evolução da diabete, os problemas cardíacos... Carreguei-o para o hospital em meio a um infarto, aparei-o em alguns desmaios e fiquei totalmente impressionado em ver dia após dia seu corpo enfraquecendo, a visão faltando, a força diminuindo e o homem simplesmente se adaptando às novas situações. Trocou de carro para poder levar os equipamentos de diálise nas viagens, mandou construir uma mesa portátil para acondicionar o equipamento nos hotéis e pousadas, arrumava algum amigo para ir dirigindo e pé na estrada. Sem suspiros, sem reclamações. Nunca.

Quando finalmente teve que se render à realidade de que não mais poderia viajar, trocou a confortável poltrona da sala por um banco de automóvel no qual mandou adaptar rodinhas. Assistia TV ali, como se estivesse na boléia do seu caminhão.

...

Nos últimos anos, um tom de carinho e amizade começou a aparecer em sua voz como nunca antes. E em um certo momento, passou a me chamar de... filho.

Hoje me bateu uma saudade especial do velho japonês com quem espero ter aprendido algumas coisas importantes sobre como enfrentar a vida e a morte, como encarar dificuldades sem auto piedade, como reconhecer erros sem apresentar justificativas, como se ocupar com o que se pode fazer e não com o que deveria ter sido feito.

E descanso na certeza de que seu Paulo, meu pai japonês, está incluído entre aqueles que através de Jesus foram reconciliados com Deus, que decidiu unilateralmente não imputar a nós as nossas culpas.

Logo nos veremos.

11 de fevereiro de 2010

Rufo [3]

3. MORTE E VIDA

Não sei dizer se o que trouxe Rufo de volta a si foi o barulho do martelo, o grito do milagreiro ou a mão do pai sobre seu ombro.

- Vamos menino.
- Pai, é ele. É o homem que pegou o lanche que mamãe preparou para mim e alimentou uma multidão. Vão matá-lo!
- Eu sei filho. Eu sei - lágrimas corriam dos olhos do pai - vamos embora.

Estavam a caminho de casa, em silêncio absoluto, com o rosto contrito e um buraco na alma, quando o céu escureceu.

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Faz 20 anos que isso aconteceu, Paulo. Os rumores sobre o túmulo vazio e o alvorosso entre os que conheciam de perto o rabi chegaram logo à nossa casa. Rufo não havia mais sido o mesmo desde o primeiro encontro com Jesus, quando um lanchinho que fiz para meu filho alimentou uma multidão. Mas algo realmente assombroso aconteceu com meu menino nas semanas seguintes à morte do mestre. Acompanhei emocionada sua nova vida repleta de amor e cuidado à todos. Alguns anos depois tivemos que sair de Jerusalém por causa da grande perseguição que se instalou por lá. Hoje estamos bem, aqui em Roma.

É uma grande alegria pra nós recebê-lo aqui, Paulo. Você sabe que sempre que precisar de algo em Roma pode contar conosco. Não é, Rufo, meu filho?

- Eu sei. Você tem sido uma mãe pra mim, e Rufo um irmão querido. É sempre muito bom ouvir suas histórias. Vamos agora à casa de Áquila. Ele e Priscila estão nos esperando.

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Rufo 1
Rufo 2
Rufo 3

8 de fevereiro de 2010

A terra é plana

Na solidão da ilha de Patmos, o velho João viu a terra ficando plana. Literalistas como Tim LaHaye acreditam do fundo do coração que isso acontecerá como descrito, com a mão de Deus, no fim dos tempos, aplainando o maravilhoso relevo do nosso planetinha. E o cara ganha um bom dinheiro escrevendo livros sobre isso. Eu, como um velho montanhês apaixonado por escarpas rochosas, espero sinceramente que isso jamais aconteça, apesar da amostra prévia que tivemos aqui em Blumenau em novembro de 2008.

É preciso lembrar, no entanto, que nos tempos de João a principal consequência nefasta de um relevo acidentado era o isolamento dos povos. Locais e pessoas tornavam-se inacessíveis, senão a duríssimas penas, por conta das ondulações vertiginosas da superfície do planeta. Para visitar a tia doente, um homem deveria cruzar vales e montanhas, desafiar colinas e desfiladeiros, em dias e dias de caminhada fatigante e perigosa. Evidentemente, de um outro ponto de vista, esse mesmo problema poderia tornar-se uma proteção contra ataques de exércitos pouco amistosos. Mas essa questão não vem ao caso agora. Quero me concentrar no problema da comunicação, da acessibilidade.

Há poucos dias uma austríaca que vive na China fez contato comigo. Ela escreveu um livro em inglês, que foi ilustrado por um filipino e será traduzido para o chinês. Procurava então alguém para fazer o projeto gráfico do livro e achou que este brasileiro aqui do sul cairia bem. Para facilitar meu trabalho, uma amiga de Manaus traduziu o original para o português.

Pense bem meu amigo. Em duas parcas semanas, Áustria, Estados Unidas, China, Filipinas e os dois extremos do continental Brasil se envolveram de alguma forma em um mesmo projeto, quase como quem senta numa mesa para conversar. A terra é plana! E o melhor de tudo, não foi preciso destruir as serras e cordilheiras.

4 de fevereiro de 2010

Rufo [2]

2. UM LANCHE

Rufo acompanhava curioso e apreensivo a multidão esbaforida atrás dos passos rápidos e seguros do mestre. Ouvia todo tipo de afirmações e perguntas entre aquela gente repleta de dúvidas e convicções.

- É um profeta!
- Cura todos que se aproximam dele.
- Está cercado por um bando de perdedores.

O homem parou no pé de uma colina, à beira do grande lago, e fez sinal para que todos se sentassem. Seus seguidores, que pareciam tão perdidos quanto toda multidão, passaram a gritar e sinalizar para que todos parassem para descansar.

- Já não era sem tempo – gritou alguém ao lado de Rufo – o homem não cansa!

Quando estavam todos relativamente calmos, alguns ainda recobrando o fôlego, outros já inquietos, ansiosos pelo que ele iria fazer, o mestre levantou-se e subiu a colina em direção a uma laje de pedra que se destacava projetando-se poucos metros acima do solo. Subiu na laje, agachou-se, acocorado sobre os calcanhares, e fitou a multidão por longos minutos, passeando os olhos de um lado a outro do grande grupo que o seguira. A esta altura, todos já olhavam para ele, cochichando, perguntando, apontando, esperando sua reação.

Seu rosto estava contrito e os olhos pareciam encher-se de lágrimas. Conversou com alguns dos seus companheiros sem tirar o olho da multidão. Um deles caminhou na direção de Rufo.

- Menino, vi o cesto que você carrega, e vi que nele estão alguns pães e peixes. Jesus está com fome, assim como todos aqui. Entregue seu cesto ao mestre pra que ele veja o que temos pra toda essa gente.

Enquanto o homem falava - vim a saber bem depois que se tratava de André, irmão de Pedro - Rufo percebeu que Jesus olhava para ele fixamente. O olhar era profundo e marcante. Parecia transbordar compaixão dos seus olhos. Era impossível recusar entregar-lhe algo. O mestre devia ter fome. Pareceu mais sensato ao menino ficar sem comer e alimentar um homem muito mais importante que ele. Os segundos de exitação logo pareceram loucura para o rapaz.

- É claro. Entregue a ele. - e enquanto André levava sua comida, o profeta de Nazaré, de longe, lhe sorriu largamente.

Quando o alimento começou a ser distribuído, Rufo mal podia conter-se dentro de si. Queria explodir, queria gritar - meus pães e meus peixes! Vejam o que ele fez!  - Suas mãos tremiam quando o mesmo André, com um sorriso abobalhado, lhe trouxe um cesto cheio:

- Sirva-se menino. Sirva-se à vontade. Veja no que seu lanchinho se transformou nas mãos de Jesus. Agradeça a sua mãe.

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Rufo 1
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3 de fevereiro de 2010

O Monstro

Depois de meses de hesitação, um dia criou coragem. Num misto de excitação e medo, olhou a face do monstro pela primeira vez.

Achava que satisfeita a curiosidade, se afastaria e tudo ficaria como sempre foi.

Ao tocar no ser misterioso, porém, foi tragado para seu interior. Mastigado, dominado, estuprado, provou o êxtase e a loucura.

Trêmulo pela fantástica e assustadora experiência, voltou para sua vida, disposto a não mais repeti-la.

O que ele ainda não sabia era que o monstro silenciosamente se instalara dentro dele. Algumas vezes adormecia, fazendo-o festejar sua libertação. E então, quando tudo parecia calmo, ele acordava. E acordava com fúria. Apossava-se de sua mente e seus membros, o levando a agir de maneira completamente insensata e absurda.

No início, os períodos de dormência eram longos, e os de insanidade curtos. Com o passar do tempo, a situação foi se invertendo. Agora ele e o monstro eram um e parecia impossível separá-los novamente. Sentia a fome da criatura. Forte, doída, desesperadora, insaciável. Existia para alimentá-la e nada mais parecia ter importância.

Meses se passaram. E então, anos. Na loucura e confusão de sua mente sem identidade, fizera coisas terríveis, inimagináveis em outros tempos. Tudo o que queria era voltar atrás. Voltar naquele dia e ignorar sua curiosidade inicial, tarefa que agora parecia tão simples. Matar o monstro era impossível, todos diziam. Mas alguns haviam conseguido dominá-lo. Seria uma luta feroz que certamente cobraria seu preço. Sem saber se teria forças para levá-la até o fim, reuniu o que tinha, gritou por socorro na esperança de que alguém viesse em sua ajuda e se lançou na direção da besta.

Dia após dia a luta prosseguiu. Parecia impossível sair vivo dela, mas aquilo a que fora reduzido não tinha muito de vida também. Quando já estava exausto e vendo o próprio sangue escorrer por inúmeros ferimentos, teve a impressão de ver a criatura ceder um passo. Foi então que percebeu que havia outros com ele. Ouviu os gritos de incentivo, compreendeu que a luta era sua, mas que muitos o apoiavam. Procurou não pensar na dor e endureceu o ataque em meio a dentes cerrados, gritos de dor e desespero, lágrimas no rosto. E lentamente, a criatura cedeu. Pela recusa dele em alimentá-la, ela enfraquecera. A dor da fome era terrível e ele a sentia como se fosse sua, mas estava funcionando.

A criatura, porém, tem uma assustadora capacidade de se manter viva. Por mais que pareça definhar, acabada e quase morta, uma única pequena porção de alimento pode fazê-la levantar-se mais forte do que era antes, como ele logo percebeu para seu desespero e vergonha.


Agora ele não mais comemora vitória. Aprendeu a duras penas que mesmo que tudo pareça calmo e resolvido, a luta não termina. Seguirá dia após dia, ao longo dos meses e anos.

Não lutar porém, não é uma opção. Não há caminho fácil. A besta se levantará outras vezes, com fúria. Tudo o que ele pode fazer é prometer-lhe que em todas as vezes, encontrará um adversário pronto para a batalha.

Mesmo que ele próprio não esteja certo disso.

1 de fevereiro de 2010

Rufo [1]

1. BRISA E TEMPESTADE

Vou tentar contar mais ou menos como as coisas aconteceram. Muitos anos já passaram, mas essa história é daquelas que nunca se apagam.

Rufo não conseguia entender o que estava acontecendo. A cena toda lhe era completamente estranha. Um contraste absurdo com o que lhe tinha marcado profundamente a alma 3 anos antes. Jamais teria sonhado que a mudança da família para Betel, ao lado da grande cidade de Jerusalém, possibilitaria presenciar, junto com seu pai, visão tão degradante e dolorosa. Ainda tinha viva na memória a imagem da mais deliciosa e fantástica refeição de sua vida, em uma colina às margens do grande lago de Tiberíades.

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- Rufo. Volte já aqui.
- Eu tenho que correr mamãe, senão perco o Rabi de vista.

Era difícil explicar o tipo de magnetismo que o arrastou àquele homem. Rumores de todos os cantos referiam-se a ele como profeta, mágico, louco, curandeiro, revolucionário, enganador. Mas, quando soube que ele estava por ali, quando viu seus vizinhos saindo à procura do homem, não exitou. Sua mãe estava desconfiada, mas sabia que não teria como segurar o menino. Por precaução, preparou-lhe um lanche.

- Vá com cuidado filho. E volte logo.

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A situação em Jerusalém era completamente diferente. Desde o pequinique mágico à beira do lago, muita coisa se falou sobre o desafiador e indomável rabi. Rufo acompanhava cada notícia, cada história contada nos fins de tarde, com intensa e ansiosa antenção. Há poucos dias soube que um homem de Betel, que ele já havia visto algumas vezes, fora retirado da sepultura pelo rabi misterioso. Um bom homem que, junto com suas irmãs, havia ajudado a família de Rufo quando precisaram mudar-se para perto da cidade santa.

No dia sombrio e confuso em que voltou a ver o profeta, subira à Jerusalém com seu pai para negociar o fruto da pequena lavoura quando uma multidão descontrolada os engoliu. Enquanto tentava entender o que se passava no meio do tumulto, Rufo ouviu assustado o grito de um soldado romano que olhava fixo na sua direção.

- Você! Venha ajudar o homem a carregar a tora!

O soldado apontava convicto para seu pai, que não teve outra alternativa senão cumprir a ordem. Viu, assustado e confuso, seu pai arrancar das costas de um pobre infeliz um grande e pesado tronco de madeira e colocá-lo sobre os ombros.

- Filho! - gritou Simão, pai de Rufo - Venha junto, não me perca de vista. Logo voltaremos pra casa.

Só quando seu pai deu os primeiros passos é que pode perceber, apavorado, quem estava no chão, quase irreconhecível. Rufo observava atento e aflito o sofrimento do pai carregando a tora acompanhado pelo mesmo rabi que, três anos atrás, inundara-lhe o coração de fé na redenção de seu povo. A multidão gritava, como que obcecada por alguma espécie estranha de vingança. Os anos de opressão, o peso do cetro de César, a humilhação do jugo e a esperança, mais uma vez, escorrendo fluídas pelos dedos, levavam o povo à loucura. Viam o condenado como traidor e explodiam de ódio desmensurado contra o pobre homem.

O que teria havido? Que sentido fazia aquela cena? Não era o rabi Jesus um milagreiro? Não era amado pelo povo? Não era um profeta como há séculos não se via em Israel? A refeição à beira do lago misturava-se confusa com o sangue e o pó na face do profeta. Acompanhando o pai no meio do empurra-empurra da multidão, Rufo ouvia num canto da mente as palavras de Jesus ecoando nas colinas da Galiléia e, quanto mais ouvia, mais sentia-se de novo naquele lugar. Apesar de toda confusão que o cercava, podia sentir a brisa soprando do mar.

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