29 de abril de 2010

Demitiram meu pastor, e agora?

Na realidade, nem sabemos bem como explicar todo esse processo. Ao mesmo tempo em que nos sentimos frustrados com o desenrolar dos acontecimentos, por ser ele uma pessoa que aparenta não ter sequer um defeito, temos a sensação do dever cumprido por observarmos que ele nunca iria preencher o perfil exigido para a função de pastor da nossa igreja. [...]

Seu ministério conosco teve início de uma forma surpreendente. Estávamos sem pastor e a simples convivência com ele nos cativou de maneira tal que o seu reconhecimento à função tornou-se irresistível para nós. Foi quando descobrimos a nossa primeira divergência: enquanto achávamos de fundamental importância a sua confirmação nas funções eclesiásticas, de acordo com os nossos normativos, ele afirmava não ser necessário e até agia com certo desprezo. Mesmo assim, o seu pastoreio parecia ser indiscutível e unânime no seio da comunidade, o que entendemos como direcionamento de Deus. [...]

Ao invés do púlpito, ele preferia estar à mesa. Desejávamos ter um grande pregador para os nossos cultos públicos, e ele era - na realidade - imbatível. No entanto, por várias vezes delegou a sua atribuição a outros, preferindo estar nas casas dos irmãos ou nos bares e restaurantes da vida, comendo e bebendo em meio a uma boa conversa. Segundo ele próprio, esse era o seu principal ministério: “a oportunidade de ensinar, aconselhar, encorajar, ouvir, chorar com os que choram...” [...]

Aliás, nessa coisa de viver comendo e bebendo com as pessoas, chegou a sentar-se com muita gente que não devia. O pior é que várias dessas pessoas se converteram e não vieram para a nossa igreja. Ele só pregava o arrependimento e não uma adesão comprometida conosco e com a nossa visão. É verdade que, desses, todos mudaram radicalmente seus comportamentos, alguns abriram trabalhos sociais, passaram a promover reuniões caseiras ou, em seus ambientes de trabalho, tornaram-se intensos evangelistas. Muitos se reconciliaram com pessoas a quem tinham ofendido, pediram perdão, pagaram dívidas; mas só isso, apenas isso.

Aos invés de solenidades, ele preferia o informal. Facilmente abria mão de reuniões, cultos e até rituais fundamentais, como por exemplo, o batismo. Nunca batizou ninguém. Enquanto achávamos ser sua responsabilidade tal ordenança, ele delegava sempre aos outros, ensinando que todos, como sacerdotes, podiam fazê-lo em nome do Pai, do Filho e do Espírito. O mesmo acontecia com muitas outras atividades que julgamos pertencerem apenas àqueles investidos da autoridade pastoral. Na ministração da ceia, nunca se opôs à participação das crianças, nem exigiu o pré-requisito de ser membro da nossa igreja. Na verdade, nunca estabeleceu critérios tanto para a participação quanto para a ministração. Apenas encorajava uma busca por comunhão entre os irmãos e reconciliação com Deus, mediante o arrependimento, e o conseqüente comer do pão e beber do cálice. Há quem diga que ele instruía a celebração da ceia, independente do dia e do local, e não apenas no templo. [...]

Depois que ele saiu, confesso que fiquei inicialmente um pouco preocupado com o seu sustento, mas logo lembrei que ele possui outra profissão: é marceneiro. Certamente se dará bem. [...]

Trechos do texto de Augusto Guedes em Cristianismo Criativo,
citado (na íntegra) pelo inquieto Roger no seu blog Teologia Livre.

26 de abril de 2010

Calor da batalha



Ah maldita flecha amarga que venceu as trincheiras e barricadas
De que me serviu a cota de malha?
E o escudo pesado de chumbo?
Se a flecha era certeira, se tinha destino certo, se vinha como um raio
Se o arqueiro era preciso, e preciso o arco
Se tangida a linha, seria exato o traçado da seta inflamada
Teria sido preciso o esforço?

Tivesse eu desde o início me lançado nu ao campo de batalha
De peito aberto enfrentaria os dardos
Escudo ao chão e na mão um anel
Transporia o cenário de morte a passos largos e olhar convicto
Se soubesse que meu peito vazaria em sangue
Teria me exposto fraco e débil como sei agora que sou
Sem a fantasia de guerreiro

Resta-me agora a tênue esperança de que da morte brote a vida
Sem o desconforto dos trajes pesados
Sem a ilusão da bravura cruel
Ah bendita flecha doce que venceu meu escudo e livrou-me de mim
Teria Deus conduzido a mão do arqueiro?
Que ressurja dos campos alguém melhor que o que dorme
E que durma em paz o homem que fui

22 de abril de 2010

O terceiro Sarau

Lembra daquele Sarau? Foi mais ou menos assim.



Se você não tem paciência ou tempo para 10 minutos de vídeo, tente ver as fotos clicando aqui.
Agora, se você tem paciência e tempo de sobra, encare os 30 minutos de vídeo aqui.

Mais infos sobre esse e os outros Saraus, no blog saraufacamolada.blogspot.com.

19 de abril de 2010

Que fique bem claro

A idéia de “amor ao trabalho” é filha da sociedade pós-industrial e capitalista. É antídoto fantasioso para um sistema de trabalho baseado na ideologia do consumo e, portanto, em um eficiente, inclemente e incansável sistema de produção. Se tudo fica melhor quanto maior o consumo, tudo fica melhor quanto maior a produção ou, em outras palavras, quanto mais tempo e dedicação sejam gastos no trabalho. Segundo essa ideologia, para alcançar o sucesso será preciso passar muito mais que as já cruéis 8h por dia trabalhando, enfrentar muitas horas de trânsito, sempre calçando um sapato sofisticado, duro e apertado, além de marcar reuniões motivacionais no sábado e atender ao chamado urgente daquele cliente poderoso no domingo. A única alternativa que resta para tentar manter um mínimo de sanidade nesse delírio, é enganar a si mesmo fazendo-se crer que ama essa loucura toda. Daí que nascem os bordões, os mantras dos livros de auto-ajuda, das convenções de fim de ano, das reuniões de planejamento e vendas. É crer nisso ou cortar os pulsos. Amar o trabalho é a última esperança do homem urbano.

[ CLIQUE NA IMAGEM PARA AMPLIAR ]


Resta, como sempre, uma outra alternativa. Será obviamente preciso uma boa dose de coragem e disposição para remar contra a maré e arcar com as conseqüências. Abrir mão do sucesso precisará ser o primeiro passo do bravo homem que decidir arrancar a venda dos olhos. E será fundamental manter-se forte o suficiente para viver com menos, talvez muito menos. Os demais passos serão todos profundamente circunstanciais. Só será preciso manter em mente a frase – eu não amo meu trabalho, portanto posso e devo trabalhar menos, muito menos... o mínimo indispensável.

A esperança é que, com isso bem claro na mente, ainda seja possível desfrutar alegremente de longas horas com coisinhas banais como esposa e filhos. Quem sabe até com o vizinho, aquela tia doente que você não vê há anos, seu amigo depressivo ou aquele outro eufórico demais. Talvez seja possível visitar algumas pessoas e, levando um pacote de pão, compartilhar café e um bom papo.

Quem sabe até seja possível amar alguém e não algo.


-----
Veja também:
De uns tempos pra cá
A vaquinha e a mansão

15 de abril de 2010

Chuva de Ouro

A música é do Cézar do Acordeon, acompanhado do Gilson Bizerra no violão. Foi composta na varanda lá de casa, com a dupla olhando as flores douradas da Chuva de Ouro, arvorezinha desavergonhada que não poupa ninguém de sua enebriante beleza. Floresce no início do outono, fazendo a primavera corar de inveja, e pinta generosamente meu mato de amarelo vivo. A letra é minha, mas não está cantada. Pegue a melodia no vídeo, gravado na Fundação Cultural de Rio do Sul, com o Roberto Diamanso no Cajón, e cante você mesmo.




Chuva de Ouro
Música: Cezar do Acordeon
Letra: Tuco Egg

Olha
A tristeza bate forte
Sem pena de maltratar, fazer chorar
Aquele que anda sem ninguém
Quem sabe só de si
Não pode repartir

Sabe
O valor da amizade
Nos encontros casuais, banais até
É como chuva de ouro eu sei
Quando dois ou três
Se juntam pra cantar

Um dia
Chegarão de todo canto
Vindo para festejar, dançar ao Rei
Aquele que os salvou de si
E os fez darem as mãos
Viverem como irmãos

Hoje
A sombra de uma Senna*
Repartindo uma canção, e o coração
Vidas tão distantes são
Como um prenúncio
Daquilo que será


*Senna macranthera: nome científico da árvore
denominada popularmente de “Chuva de ouro”,
que com suas flores de amarelo vivo pinta o
chão de dourado no início do outono.

5 de abril de 2010

Artrite

Diante da possibilidade do erro, Fernandes petrificava. Não do erro próprio, é claro. Era o erro do outro que lhe endurecia as articulações. Sofria de uma espécia de artite moral.

Mas nem sempre foi assim.

Houve tempo em que Fernandes não se preocupava com falhas alheias tanto quanto não se preocupava com as próprias. Vivia errando e cercado de erradores, tudo isso parecendo-lhe absolutamente natural. Mas veio o dia da reviravolta. O dia em que Fernandes conheceu Deus.

É evidente que antes desse dia esse sujeito displicente já ouvira falar do criador. Tinha até alguma espécie de respeito por ele, mesmo não tendo convicção de que havia de fato um criador. Caso houvesse, no entanto, certamente o respeitaria. Tanto que, quando soube, por alguma forma de contato místico, que realmente havia, tratou de respeitá-lo da melhor maneira que pode. Estava ciente de que, havendo um criador, seria essencial ter uma boa imagem aos olhos do todo-poderoso. Fuçou no livro sagrado todas as regras que pôde encontrar. Leu, estudou, decorou, introjetou, respirou, arfejou, cada letra de cada lei que era possível encontrar.

Foi quando Fernandes se deu conta de algo terrível. A lista de regras que conseguiu era enorme, impraticável. Achou aquilo tudo um exagero e tratou de selecionar alguns ítens e excluir outros. Selecionou cuidadosamente, seguindo critérios extraídos de dentro do próprio livro santo. Emendou textos de todos os cantos de tal forma que podesse justificar-se quanto a maioria das exclusões. Para muitas não encontrou justificativa nenhuma, mas excluiu-as mesmo assim. Se alguém lhe perguntasse sobre essas, citaria as outras e ponto final.

A lista que sobrou, cumpriu-a literalmente, com algumas exceções, é claro, que cuidava para manter bem escondidas de forma que ninguém nunca soubesse. E escondia tão bem que nem ele mesmo conseguia encontrar as próprias falhas, convencendo-se cada vez mais de que cumpria mesmo à risca sua lista de regras escolhidas.

Foi a partir desse ponto, lista definida e cumprida, que Fernandes começou a transformar-se em pedra. Começou pelo dedo indicador, que permanecia inalteradamente rijo. Primeiro tímido e discreto. Com o tempo adquiriu confiança suficiente para fazer o braço acompanhar o dedo, fazendo questão de ser visto apontando os erros de qualquer um. A expressão do rosto de Fernandes, antes leve e descontraída, passou também pelo macabro processo de congelamento. Olhos sempre semicerrados, à busca de algo, a testa franzida e os cantos da boca sutilmente voltados para baixo.

Todos já notavam a pele pálida de Fernandez e os passos duros e pesados que o levavam de um lado a outro, dedo em riste, apontando para todos os cantos. A dureza do braço e do punho há muito tempo não permitia mais que ele apontasse para si.

Foi quando os poucos amigos que restaram sentiram falta do homem que já não aparecia mais em público há vários dias. Preocupados, foram até sua casa e arrombaram a porta da frente, dando de cara com uma estátua de mármore de Fernandes apontando pela janela para o bar onde, anos antes, ele constumava sentar com os amigos para beber e jogar cartas, ou assistir uma partida de futebol.

Fernandes foi levado pelos amigos para a praça da cidade, bem na frente de vários bares e dos pontos de prostituição e tráfico que surgem com o cair da noite, onde permanece cheio de orgulho até hoje, agora já coberto de cocô de pombo, apontando para todos os que passam por ali.

----------
ARTRITE:
[1]
[2]
[3]

1 de abril de 2010

Gafanhotos

A classe média cresce exponencialmente no nosso planeta. Uma primeira passada de olho poderia nos levar a festejar. Aumento da classe média é diminuição da pobreza. Um ponto para humanidade. É assombroso, no entanto, a euforia econômica que segue a onda de crescimento dos médios e seu potencial de consumo.

Uma forma de classificar quem faz parte dessa faixa da sociedade, segundo matéria da Veja, "é a capacidade de gastar um terço da renda em qualquer coisa que não seja comida e moradia". A empolgação, meus amigos, não é com o fim da pobreza, mas com o aumento do consumo. Esse é o barco que construímos. A nau que nos levará ao naufrágio.

A revista, em matéria publicada no link - perceba a ironia - "Planeta Sustentável", da editora Abril, afirma que a primeira, a primordial, a essencial das missões da nova classe média, "consiste em pôr o seu poder de compra a serviço da recuperação do crescimento do PIB mundial". Depois, se sobrar tempo, ainda dá para tentar alguma coisa em favor de banalidades como democracia e justiça.

"Ao deixar para trás a pobreza - o que significa parar de se preocupar apenas com a sobrevivência diária -, o cidadão passa a pensar no futuro e a desejar melhorias constantes em seu padrão de vida." Revista Veja.

A classe média cresce, o consumo cresce, o PIB cresce. Três vivas para a humanidade.

A naturalidade com que baseamos toda nossa esperança em um futuro melhor no aumento do consumo e, portanto, da exploração dos escassos e fragilizados recursos naturais dessa bolinha azul, é apavorante.

Veja ainda tenta apelar para um fiapo de bom senso citando as mobilizações de massa no Irã pedindo o fim do regime enlouquecido de Ahmadinejad, que, segundo a matéria, só foram possíveis graças aos telefones celulares da classe média (alguém tente explicar isso ao Gandhi). Mas o altruísmo não vai longe e em seguida o texto retorna ao que realmente interessa, disparando, cheio de alegria e excitação, a notícia de que, segundo pesquisas, "mais da metade dos cidadãos de classe média nos países emergentes pretende comprar um smartphone". Uau! Se com celulares comuns já houve o que houve no Irã, imagine só com smartphones! O sensato texto ainda afirma que nossa salvação encontra-se na "preocupação pessoal com o futuro e a ambição social" dessa nova poderosa classe média que surge como um messias coletivo para o povo enebriado pela ganância e a preocupação com seu próprio umbigo.

"É a classe média no cumprimento de sua missão."
Revista Veja.