27 de julho de 2010

Vocabulário do dragão

No vocabulário do dragão chamado mercado, promoção é o termo usado para descrever a forma como o monstro rouba do surrado cavaleiro um pouco mais de sua liberdade, entregando a ele o sabor e orgulho de vencer uma luta antes de devorá-lo encerrando a batalha.

Na fábula do caldeirão chamado mercado, promoção equivale a um pouco mais de fogo acelerando o aquecimento da água morna na qual o sapo se banha garboso antes de virar jantar.

12 de julho de 2010

O morro

Era um fim de tarde gelado de sol forte e Fernando suava aos baldes enquanto subia a ladeira íngreme com a garganta seca pelo ar frio e a respiração ofegante condensando branca diante dele, fazendo-o lembrar de seu tempo de fumante. O cheiro de café vindo inclemente de uma das casas apinhadas no morro fazia o gosto do cigarro brotar na saliva fina e quente. Fazia 15 anos que Fernando havia largado o fumo, mas o sabor da nicotina parecia não desgrudar do cheiro de café.

O morro era quase vertical e as casas que ladeavam a ruela pareciam um brinquedo de blocos de empilhar prestes a ruir. Fernando caminhava convicto, passos firmes, resolvido a dar um fim nos atritos que haviam tirado seu sono nas últimas semanas. Rostos desconfiados espiavam dos cantos das janelas, quase sem piscar. Indiferente aos olhos, Fernando saiu da rua e começou a subir a escadaria estreita e irregular que contornava uma porção de casas impossíveis, que poderiam servir de cenário para filmes alemães do início do século passado. Os vértices das parede projetavam-se verticalmente em direções distintas, raramente paralelos e frequentemente estendendo-se oblíquos por sobre as escadas tortas. Casebres que nasciam separados por dois metros de solo inconstante, encontravam-se timidamente 4 metros acima num beijo discreto.

Fernando trazia consigo o silêncio que varria as casas diante de sua passagem, e deixava atrás de si cochichos e apostas. Tirou a camisa encharcada e seguiu de peito nu no gelado do crepúsculo que já surgia pelos cantos dos casebres. Era noite de lua cheia e o corpo negro molhado fez-se prata ao luar quando finalmente chegou ao topo do morro, ofegante mas ainda determinado. Na laje que circulava a casa maior, a única de paredes paralelas, uma luz amarela vazava da janela entreaberta e deitava-se no chão gelado e úmido do sereno da noite. Dois homens encasacados encostados na mureta da laje acendiam seus cigarros com os olhos fixos em Fernando. A umidade da laje dançava na luz projetada da janela e dois cachorros vira-lata começaram a latir em algum lugar no canto escuro da casa.

Fernando postou-se diante da porta fechada e espremeu os olhos para tentar ver algo pelo canto da janela. Percebeu os cochichos e movimentos dos curiosos que vinham chegando atrás de si e se encostavam nos cantos escuros da laje esperando para ver o desenlace da confusão que iniciara dois anos antes. A verdade é que o morro todo torcia por Fernando e ele sentia o peso da esperança da multidão nas costas.

Quando a porta se abriu, o silêncio que abraçou a laje foi absoluto. Até os cães pararam de latir. Do lado de dentro da casa, Rinaldo, de pijama, gorro de lã e uma caneca de café quente na mão, encarou Fernando nos olhos por segundos que pareceram eternos. Então desviou os olhos por sobre os ombros suados de seu oponente e balançou a cabeça afirmativamente. Os dois homens encasacados sacaram suas pistolas e descarregaram as armas nas costas nuas de Fernando que caiu como árvore seca sobre o cimento úmido e gelado. A porta se fechou e enquanto a multidão dispersava solene, um homem riscou na parede de um casebre, com um caco de gesso, uma quinta curta linha vertical. Depois esmagou o gesso lentamente, com força e raiva, numa linha transversal que cortou as cinco marcas. “Isso não vai ficar assim” pensou o homem com a ponta do dedo sangrando, esfolada na parede áspera do casebre. "Isso não vai ficar assim".

8 de julho de 2010

Me gusta la gente simple



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Facundo Cabral

Me gusta la gente simple
aunque yo soy complicado,
la gente de casa pobre
y corazón millonario.

La que todavía suda
la que se rompe las manos,
la que se juega la vida
por el pan de sus hermanos.

Me gusta la gente simple
que al vino le llama vino,
la que al pan le llama pan
y enemigo al enemigo.

La que se da por entero
y no tiene intermediarios
la que comparte conmigo
el respeto a los milagros.

Me gusta la gente simple
que se levanta temprano,
porque hay que limpiar la calle
pintar el frente al mercado,
bajar del camión la fruta
repartir los telegramas
servir el café, la sopa, pescar,
embolsar la papa,
cortar el árbol preciso
para hacer una guitarra
con la que un día el cantor
caminará por la patria
contando a la gente simple
que sin ella no hay nada
ni siquiera la milonga
que en el mundo me declara.

Me gusta la gente simple
que hace la silla y la mesa,
los zapatos de mi madre
el vestido de Teresa.

La que ríe fácilmente
la que fácilmente llora,
la que inocente confía
que un día cambien las cosas...

Me gusta la gente simple
aunque yo soy complicado.

5 de julho de 2010

O problema da religião

O problema da religião é que ela elege a confissão verbal como marca da relação com Deus e, por causa do que confessa, reivindica o direito a essa relação. Esquece o Cristo dizendo que os seus seriam reconhecidos não pela fala, mas pelo amor de uns pelos outros; que o chamado seria para salgar a terra e não para reproduzir uma confissão de boca; que os falsos profetas seriam reconhecidos pelos seus frutos e não por suas confissões; que a confissão deles diria justamente "Senhor, Senhor..." mas que ouviriam "Afastem-se de mim", não por terem uma confissão errada, mas por praticarem o mal.

Esquece que o Samaritano não foi exaltado por sua confissão de fé; que a fé do centurião romano foi elogiada apesar da estranheza da declaração; que a Verdade que liberta não é um conceito, uma doutrina ou uma regra de fé e prática a ser aceita e declarada, e sim uma Pessoa a ser seguida ("Eu sou a verdade")

O problema da religião é que ela trabalha para reproduzir confissões. Esquece que a confissão é algo entre Deus e o homem; que ninguém consegue levar Pedro a declarar "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo!" Esquece que uma declaração de fé não socorre o necessitado; que o sacerdote e o levita eram os da confissão e eles passaram pelo outro lado. (Lucas 10.25-37)

O problema da religião é ela achar que o mundo vai louvar a Deus quando confessar que "Jesus Cristo é o Senhor". Esquece que essa frase está na parede dos maiores abatedouros de almas, e na boca dos maiores desdenhadores de seres humanos. Acha que o mundo vai louvar a Deus quando confessar o Cristo, mas esquece que esse mundo precisa ver boas obras para que isso aconteça: "Assim brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai que está nos céus" (Mateus 5.13-16).

O problema da religião é não admitir que a confessionalidade virou estratégia para encher lugares, promover adesões e fazer prosélitos.

O problema da religião é não admitir que só a evangelização que salga a terra pode dizer: "Não, filho, não precisa vim comigo, vai para a tua casa."

O problema da religião é ler isso aqui e achar que abrir mão da confessionalidade, é abrir mão da fé no Cristo.

O problema da religião é ela orgulhar-se de sua confissão, quando deveria sentir dores de parto por causa dela. O homem que se orgulha de sua confissão de fé perdeu (se é que já teve) a consciência de sua condição.

Pedro só ouve o "vem e segue-me" final, depois de responder à pergunta da confissão até o constragimento e, já magoado, ficar sabendo da inutilidade dessa confissão que não se traduz em amor e serviço ao próximo: "Simão, filho João, tu me amas? Apascenta as minhas ovelhas."

Devemos abrir mão da nossa confessionalidade, em nome de Jesus.

Em louvor dos porcos

Ouvi sábado, durante um "módulo de capacitação":

"Sabem qual a diferença entre envolvimento e comprometimento?
Imaginem um café da manhã com ovos e bacon.
A galinha está envolvida no processo.
O porco está comprometido."

A sequência óbvia foi a afirmação de que as empresas contam com muitos funcionários envolvidos e muito poucos comprometidos. Uma das funções de coordenadores e gerentes, então, seria levar as pessoas a se comprometerem (obviamente depois de eles próprios pularem pra dentro da frigideira).

Não basta entregar os ovos, meu amigo. É preciso dar o couro. E, ao contrário do porco que lutou como pode para escapar do destino, espera-se que as pessoas o façam voluntariamente, sorridentes, e acreditando que isso seja a coisa certa.

Ah, porquinho... Pensei muito em você.
O que é pior, porco amigo?
Ter virado café da manhã de norte-americano, ou ser citado como exemplo de bunda-mole, de alguém que abre mão da própria vida, da companhia de família e amigos, do próprio instinto de autopreservação, tudo em favor de uma causa irrelevante?
Sei que não foi assim, irmão-porco. Sei que houve luta. Porco que é porco não se entrega, esperneia e grita o mais que pode, mantem a dignidade de dar valor à propria vida até a hora da morte.

Ao contrário daqueles de nós, seres racionais, que se deixam convencer de que o melhor da vida é virar bacon no prato de gente importante.

1 de julho de 2010

Revolução dos Loucos

Uma suave revolução acontecerá pela humilde organização dos cristãos loucos que estão dispostos a subverter a ordem estabelecida ao reorganizar sua vida em torno da mente de Cristo.

Sua questão é a transparência por meio da veracidade, e seu estilo de vida será moldado pleo Evangelho de Jesus Cristo.

Os loucos por Cristo são violentos, como o Evangelho ordena que sejam (Mt 11.12), mas a violência se aplica a eles próprios(Gl 5.24). Sua bondade é o belo fruto da reverência a Deus, da compaixão pelo mundo e pelo respeito a si mesmos. Suas prioridade são pessoais, determinadas não pela religião popular do momento, por políticas de poder ou pela cultura de consumo, mas pelo Sermão do Monte e pelo mistério Pascal.

Para o louco, Jesus Cristo não é um sábio ou um admirável reformador; é o segundo Adão, autor de uma nova criação. “Estou fazendo novas todas as coisas!”(Ap 21.5). Jesus redirecionou a realidade e deu-lhe a orientação revolucionária. Jesus não arrumou o mundo, ele o levou a uma freada barulhenta. O que ele refez a partir de materiais humanos da velha ordem não foram pessoas mais agradáveis, com moralidades melhores, mas coisas novas.

As categorias de tais revolucionários, transcendem todas as distinções classistas. Homem versus mulher, clérigo versus leigo, progressista versus conservador, carismático versus tradicional, moderno versus pós-moderno – todos estão dissolvidos no amor unificador do Espírito (Gl 3.28). As únicas exigências para ser membro é a consciência empírica de Jesus como Senhor Redentor e de Deus como Aba, a rendição incondicional ao domínio do Espírito Santo e o comprometimento constante com a missão de construir um novo céu e uma nova terra.

O sentido da missão entre os loucos causará destruição na vizinhança. Medos serão despertados e rumores circularão de que tais pessoas estão ficando estranhas. Os amigos os aconselharão a se restabelecer e a fazer algo construtivo com suas vidas (como procurar segurança, prazer e poder). Os familiares darão demonstrações ostensivas de suas realizações duvidosas. Estratagemas serão planejados para levá-los a ver e sentir como são de fato: loucos. Catheryne de Hueck Doherty diz: “É como se o mundo precisasse de loucos – loucos por Cristo! Loucos pelo amor de Deus! Pois são tais loucos que mudam a face da terra”.

Conforme será de esperar (João 15.18) estes loucos serão ofendidos. O cristianismo hoje é basicamente inofensivo, um tipo de religião que jamais transformará coisa alguma. Jesus Cristo, o mestre revolucionário transgrediu a ordem religiosa e política da palestina. Os cristãos também são compelidos a transgredir e, se não o fizerem, isto é mau sinal: não estarão sendo revolucionários de fato.

Quando os loucos que buscam viver com a mente de Cristo, perguntam a si mesmos: “Por que existo?”, eles respodem: “Por causa de Jesus Cristo”. Se os anjos se perguntarem, a resposta será a mesma: “Por causa de Jesus Cristo”. Se o universo inteiro de repente pudesse falar, de norte a sul e de leste a oeste, ele clamaria em coro: “Nós existimos por causa de Cristo”.

Brennan Manning (em sua obra Convite à Loucura)
Do site do Caio Fábio.