31 de março de 2011

Lágrimas

Gosto de riso solto, gargalhada e risinho discreto. Mas não sei se poderia viver sem lágrimas. Rir ilumina a alma, é certo, mas luz demais resseca. O choro umidece, amolece, cria o solo fértil de onde há de brotar o riso.

O que quero é ter a coragem de não fugir de choro nenhum. Nem meu, nem do meu irmão, nem do desconhecido que se avizinha.

Quero submeter-me ao batismo salgado das lágrimas que trazem consigo a semente do consolo.

28 de março de 2011

O vencedor

CÁNTICO Nº 43 DO HINÁRIO DA TRILHA

Olha lá, quem sempre quer vitória
E perde a glória de chorar
Eu que já não quero mais ser um vencedor
Levo a vida devagar pra não faltar amor




O Vencedor
Marcelo Camelo (Los Hermanos)

Olha lá, quem vem do lado oposto
Vem sem gosto de viver
Olha lá, que os bravos são
Escravos sãos e salvos de sofrer
Olha lá, quem acha que perder
É ser menor na vida
Olha lá, quem sempre quer vitória
E perde a glória de chorar
Eu que já não quero mais ser um vencedor
Levo a vida devagar pra não faltar amor

Olha você e diz que não
Vive a esconder o coração

Não faz isso, amigo
Já se sabe que você
Só procura abrigo
Mas não deixa ninguém ver
Por que será?

Eu que já não sou assim
Muito de ganhar
Junto às mãos ao meu redor
Faço o melhor que sou capaz
Só pra viver em paz

24 de março de 2011

A insensatez de seguir adiante

    Não terá sido pouco, e você sabe disso melhor do que ninguém, o esforço empreendido. Vale lembrar que desde o início houve forte oposição de quase todos, o que, num apanhado geral retroativo, pode ter cooperado para o bem. No entanto, mesmo na condição atual, tendo alcançado o ponto mais distante da caminhada prevista e sabendo que nada mais há de se fazer adiante (parecendo óbvio, portanto, que o retorno é o próximo passo), creio ter deixado evidente pelo conteúdo das últimas cartas, que optei pela insensatez de seguir adiante.

    É claro que daqui para frente o acesso à internet será absolutamente impossível, como já tem sido nos últimos meses, e lamento muito dizer que já não terei condições de enviar-lhe carta, nem recado de qualquer tipo. A civilização encerra-se completamente e dela não haverá vestigios a partir do próximo passo. Espero sinceramente trazê-la comigo em lembranças, mas tamanho é o vazio do horizonte que se apresenta que já não sei nem se memórias serão possíveis amanhã. Por isso procuro por todas elas agora, e me dói um bocado perceber que quase já não as encontro, pelo menos não na superfície investigável da consciência.

    Recordações são tímidas e tentam sempre esconder-se quando vamos atrás delas. Preferem surgir espontaneamente quando já nos dedicamos a pensamentos diversos, e é nisso que deposito minhas esperanças.

    Olhando para trás, afirmo sem dúvida nenhuma que o pior que me aconteceu no trajeto todo até aqui foi terem me roubado a mochila pequena, onde trazia uma foto sua. Apavora-me perder para sempre seu rosto, ainda mais aquele, com os olhos distraídos, a boca num quase riso e a mão delicada apoiando o queixo.

    Temo agora que, escrevendo mais, vacile na decisão de ir. A mochila está pronta. O menino que vai levar a carta está impaciente. Me despeço abaixo, e sigo adiante.

Beijos. L.

14 de março de 2011

Paciênca

CÁNTICO Nº 42 DO HINÁRIO DA TRILHA

Eu me recuso faço hora
Vou na valsa
A vida é tão rara...



Paciência
Lenine e Dudu Falcão
Mesmo quando tudo pede
Um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede
Um pouco mais de alma
A vida não para...

Enquanto o tempo
Acelera e pede pressa
Eu me recuso faço hora
Vou na valsa
A vida é tão rara...

Enquanto todo mundo
Espera a cura do mal
E a loucura finge
Que isso tudo é normal
Eu finjo ter paciência...

O mundo vai girando
Cada vez mais veloz
A gente espera do mundo
E o mundo espera de nós
Um pouco mais de paciência...

Será que é tempo
Que lhe falta para perceber?
Será que temos esse tempo
Para perder?
E quem quer saber?
A vida é tão rara
Tão rara...

10 de março de 2011

Miguel

50

Era comecinho de tarde quando Miguel chegou caminhando lentamente e sentou-se no banco da praça central da praia de Lagos, em Algarve. Chegou sozinho, sentou sozinho e ficou ali sozinho até o sol se pôr. Olhava pra cá e pra lá. Ora pra uma copa de árvore, ora pras pernas de uma mulher, olha pros olhos de algum outro solitário, ora pra um passarinho, ora pra um vira-lata. Arrumou os óculos delicadamente várias vezes. O boné permaneceu intacto. A bengala dançava uma valsa lenta, de mão pra outra, até repousar carinhosamente sobre sua coxa, para depois voltar à baila.

Quando o sol foi se deitar, Miguel levantou-se no mesmo ritmo lento com que se sentara, e caminhou em passinhos curtos e sincopados até sua casa e deitou-se no seu lado da cama, acompanhado do enorme vazio, que o seguia para todos os cantos e deitava agora ao seu lado.

Nas quase 5 horas que passou no banco da praça, ninguém, ninguém soube nem sequer imaginou que ali naquele mesmo banco, Miguel declarou seu amor humilde a Sara. Ninguém percebeu que o velho que estava ali sozinho, ali esteve acompanhado por 45 anos. Ali Miguel e Sara tocaram as mãos a primeira vez. Ali se beijaram inúmeras vezes. Ali brigaram, ali romperam, ali voltaram, ali perdoaram. Foi naquele banco que comeram amêndoas quentes em invernos frios. Naquele banco de praça de Lagos, Sara deitou a cabeça no colo de Miguel, e a alça de seu vestido caiu e deixou à mostra seu ombro e uma parte generosa de seu seio.

Mas ninguém dos que viram Miguel no seu último dia de vida soube de nada disso. Viram apenas um velho sozinho. Não puderam rir nem chorar com Miguel porque para eles Miguel era simplesmente uma paisagem. Nem ao menos perceberam que naquela tarde, discretamente, Miguel riu e chorou mais de uma vez.

À noite, acompanhado pelo buraco enorme que o seguia e o engolia aos poucos no último ano, Miguel foi finalmente devorado.

7 de março de 2011

Mais um carnaval

 Uma homenagem à maior festa popular do país.

Abraão, o patriarca da fé
Samba enredo 2011 da Pérola Negra de Vila Madalena.



Levanto as mãos pro céu
E agradeço ao criador
Eu vou... abençoado rumo a canaã
Esperança, um novo dia
No egito meu afã
Oh, deus pai!
Nossa aliança se renova a cada manhã
Ao forjar o fato, um ato de amor
Enfrentei barreiras, luxúria e ambição
Na busca da tua verdade
Em prova toda a minha devoção

Oh, meu senhor, que conduz meu caminhar
Sou do povo de javé, tenho o dom de acreditar
Em minhas mãos adoração e sacrifício
O meu destino sob a luz do seu olhar

Fé na palavra sagrada
Que me dá força nessa jornada
Fonte de sabedoria
A paz que brilha dessa jóia rara
Glória no caminho da vitória
Fiéis seguidores em comunhão
O seu legado ficará perpetuado
Num mundo de amor, num só coração
A vila madalena canta em oração

Pela fé de abraão
Pérola negra vem cumprir sua missão
Divina luz que ilumina
O meu samba em procissão

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Veja também:
O carnaval do crente

3 de março de 2011

A coletividade do absurdo

É assim. Você está no seu canto, na boa, feliz, satisfeito, barriga cheia, realizado, pronto pra alugar um filme e comer pipoca. Aí chega a notícia, enviada pelo site de compras coletivas onde você fez seu cadastro, de que está aberta para compra a promoção 'tal', por um preço pra lá de ótimo. Imediatemente paz, felicidade, satisfação e realização escoam pelo ralo do consumo. Ansiedade, desejo, cobiça e aflição (mesmo que moderadas) assumem seu posto, disfarçados de oportunidade.

E 'vambora' comprar o que não compraria e não teria feito falta.

Da minha parte, resisto o quanto puder e opto por nem saber das oportunidades imperdíveis perdi.