28 de abril de 2011

Feito furacão

Depois do almoço refestelou-se no sofá e sorveu os goles de sol quente que atravessavam as folhas de acerola no jardim e invadiram a janela da sala. Livro aberto, descalço, calças arregaçadas, vento suave acariciando macio os pêlos da perna. Mas o relógio girou e teve que arrumar a barra da calça, calçar o tênis e voltar ao trabalho percorrendo a Alameda Rio Branco sob céu azul até o estacionamento onde a moto descansa à sombra todos os dias. E ligou o micro e lidou com fontes, cores, formas e fotos até sentir nas costas, sem muito espanto, um vento forte que assobiava nas frestas da antiga janela de madeira. Tratou o vento sul com desdém e seguiu trabalhando, sem perceber que o horizonte entrava em luto trazendo a noite de arrasto para o meio da tarde.

Foi só quando ouviu os primeiros estampidos de raios violentos e muito próximos que se dignou a parar o que fazia e olhar pela janela. E o vento veio metido a furacão. E as nuvens raivosas arremessavam pedras de gelo em quem quer que ousasse sair às ruas. E as telhas se erguiam dos telhados e jogavam-se suicidas para todo lado, e os galhos dobravam-se temerosos e partiam e se estatelavam sobre carros e telhados e ruas e calçadas. E num rompante de terror o vento perdeu o rumo e virou-se de um lado pro outro violento, como que querendo libertar-se de amarras, debatendo-se e derrubando placas e arrancando os enfeites de páscoa da rua XV. Relâmpagos estalavam feito loucos sem parar, e um deles, mais raivoso, estampiu certeiro sobre algum ponto de crucial importância para o fornecimento de energia da cidade. E tudo se apagou enquanto o céu desabava.

Meia hora depois restavam somente os pingos sarcásticos largando-se de mansinho dos beirais. E no fim da tarde o sol apareceu sorrindo e ainda brincou de colorir toda aquela bagunça de amarelo intenso e sussurrou nos ouvidos de todos: "Nada te turbe, pois tudo passa*".  E encerrou o dia com uma beleza de fazer chorar.

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*Nada te turbe, pois tudo passa: referência à Teresa D´Avila,
surrupiada da belíssima canção do Jorge Camargo.

25 de abril de 2011

Tanta coisa

Há quem diga, peito estufado, cheio de orgulho: – Tô numa correria. Trabalhando demais. Terminei meu relatório 1h da manhã!

Me dei conta desse horror quando li o tuíte (sim, eu tenho uma conta no twitter) de um amigo, todo garboso, piando no meio da madrugada pro mundo inteiro saber: “Terminei por hoje. Vou descansar um pouco porque amanhã cedo tem mais”.

Eu confesso que cada hora-extra me invade a alma como um punhal. Me desnuda o corpo e expõe minha vergonha. Horas-extras, relatórios noturnos, reuniões de final de semana, almoços e jantares de negócio, enviados diretamente do inferno, são a mais frequente e miserável causa  dos desencontros que fazem do homem moderno essa ilha maldita de solidão e morte.

- Desculpe – falei dia desses pra um grande amigo – mas não consegui fazer aquela visita que já venho prometendo a tempos. Não deu tempo cara. Tô numa correria.

E assim vamos levando.

Foi mal vó, não deu pra ir no seu aniversário. Desculpe maninho, mas não consegui parar pra te dar aquele abraço quando nos cruzamos por acaso na rua. Perdão colega, mas não deu pra atender o telefone, nem pra responder seus emails. Foi mal gente, não deu pra ir no jantar que vocês organizaram. Desculpem todos. Tô com tanta coisa pra fazer.

21 de abril de 2011

Contravenção é a lei

A quantidade de leis potencializa a possibilidade de contravenção. E é esse o paradigma legislativo da sociedade urbana. A aglomeração absurda de gente em espaço tão reduzido que o consumo impõe ao homem contemporâneo (pois quanto mais gente junta, maior a possibilidade de consumo), gera a aglomeração de fatos inusitados que acarretam em desordem e, portanto, exigem leis que restabeleçam a ordem perdida. As leis surgem, e assim que existem, elevam a desordem anterior à categoria de contravenção penal, de crime.

Mas a raça humana tem incrível criatividade e improvisa novas formas de desordem, que exigem novas regras que, como se sabe desde sempre, estão aí para serem quebradas.

Chegamos então ao ponto onde estamos. Nosso país possui hoje o volume total de 181 mil leis. O número exorbitante de regras certamente nos coloca entre os maiores contraventores do planeta. O surreal é que, se não fôssemos, não sobreviveríamos. Quem permaneceria em pé debaixo de 181 mil regras? Que titã resistiria ileso a tão insuportável carga?

Com nossas leis instituímos a contravenção como norma. A regra de conduta nacional é a transgressão.

Quem não pecou, que atire a primeira pedra.


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PS1: Senti-me profundamente tentado a conduzir o assunto para os lados funestos da teologia, mas resisti bravamente. Já está tudo dito. Quem tem ouvidos, ouça.

PS2: O assunto desse texto surgiu da aproximação iminente dos meus filhos da idade da transgressão - a adolescência. Enquanto me torturava buscando em mim mesmo resposta para o questionamento básico - proíbo ou não meus filhos de fazer isso ou aquilo? - me dei conta da primeira frase do texto. Concordo irrestritamente com a frase, mas ainda não sei o que fazer com meus filhos.

20 de abril de 2011

Pessach

Domingo de ramos passou.
E era só alegria pela chegada do mestre.

Está chegando a sexta-feira da cruz.
Corações e mentes transtornados.
Sangue inocente derramado.

E vem o sábado negro que parece não ter fim.

Mas o domingo é de vida.
Sol nascendo, flores se abrindo, pássaros cantando.


Feliz Páscoa!

18 de abril de 2011

A menina da Alameda

É preciso admitir, antes de qualquer outra coisa, que sou um falsário até naquilo de mim que aparenta a mais pura virtude. Vivo a tensão absurda entre o que anseio ser e o que sou. Melhor dizendo, vivo a angústia de não conseguir, diante do próximo, ser aquilo que realmente sou. Porque o que sou, a essência mais profunda, o fiapo de humanidade sufocado debaixo do tempo e dos traumas e das convenções sociais e dos hábitos religiosos e das doutrinas e da segurança e das submissões e dos medos e dos enganos acerca de mim e acerca de todo o resto; esse fiapo maltrapilho amarrotado soterrado em escombros pesados é que é quem sou realmente, e a luta que imponho a mim mesmo é o labor do bombeiro que cavoca destroços na esperança de encontrar uma vida em farrapos, coberta de caliça e deitá-la ao sol.

Já havia ventilado essa idéia de inúmeras formas em variadas situções, mas jamais dramatizado-a de maneira tão clara como tenho feito recentemente. E o estalo que me fez perceber retroativamente o drama que venho representando deu-se em plena Alameda Rio Branco, pouco depois do meio dia. E desde lá, esbofeteia-me diariamente a ponto de me fazer chorar e molhar as almofadas do capacete enquanto rumo para casa para aproveitar as 2 horas de almoço que me são concedidas.

Não é, certamente, por acaso que o ponto central que desenrolou o drama todo que tento miseravelmente descrever aqui seja o encontro entre duas pessoas. E, ainda mais significativamente, um encontro casual. Diariamente, no intervalo do almoço, caminho em direção ao estacionamento onde minha moto descansa. E no sentido contrário, diariamente vem seguindo uma mocinha loira, pouco mais de 20 anos, com algum problema no sistema nervoso central que mantém suas perninhas duras, os braços pouco articulados, as mãos curvadas para dentro e uma leve, muito sutil tensão no rosto. Seus olhos são verdes como o mar e, por trás das lentes do óculos que insiste em escorregar pelo nariz e que precisa ser contido com um estranho movimento muscular facial, o olhar parece verter esperança. Tem dificuldade para descer o meio fio e os passos são sincopados, martelados, e fazem os cabelos loiros balançarem de um lado para outro em um ritmo bem cadenciado. E ela vem na minha direção e meu coração dispara. Não a conheço. Não sei de onde vem nem pra onde vai. Mas imagino um pouco do que ela já passou e passa. É possível que tenha uma bela família e seja amada e bem cuidada e protegida, e seu olhar sereno me faz crer que é assim. Mas sei que já ficou de lado, sei que já foi preterida, sei que já conheceu a solidão (e talvez a conheça diariamente), sei que já quis que tudo fosse diferente, sei que já pensou que tudo poderia ser melhor. E meu coração grita eufórico e me pede que a abrace calorosamente no meio da rua. Que lhe diga que a amo, que seus olhos são lindos, que o balanço de seu cabelo é uma canção, que seu olhar me cativou e me arrancou os pés do chão e me aproximou de Deus e Deus é amor, é abraço, é alegria e é lágrimas.

O que venho encenando há tempos sem me dar conta, é o drama de ter de me disfarçar para ser quem sou. O que a doce menina da alameda me fez ver, é que não consigo ser eu mesmo a não ser atrás de uma máscara que me proteja de mim e da incrível exigência que seria para a estabilidade social que me protege eu ser quem realmente sou. Explico: uma miserável vez por semana coloco um nariz vermelho na cara, um sapato enorme, um jaleco branco cheio de apetrechos coloridos, e caminho pelos corredores de hospitais visitando crianças, jovens, velhos, adultos nos mais variados estados físicos e psicológicos que um interno de hospital pode apresentar. E lá, e somente lá, abraço a todos, afago todos os cabelos, massageio todos os pés. Lá, e somente lá, rio displicentemente para qualquer um, aceno, danço, rebolo, canto, conto histórias. Lá, e somente lá, deito minha mão sobre mãos fracas e trêmulas, silencio diante da dor sem deixar de me fazer presente por um toque sutil, misturo minhas lágrimas com lágrimas de desconhecidos, deito minha cabeça em peitos arfantes e beijo testas e acaricio rostos quase sem esperança. Somente lá, atrás da segurança de um nariz vermelho - é o que todos os dias me sussurram os olhinhos verdes da moça da alameda - é que sou eu mesmo. E já na moto, a caminho de casa, choro todos os dias porque, sem o nariz vermelho, não consigo ser quem sou.

Porque não faço o bem que quero,
mas o mal que não quero, esse faço.

Romanos 7.19


 Se quer se esconder atrás de um nariz para tentar, como eu,
descobrir quem é, visite o site do Pojeto Sorriso (Blumenau e região).

14 de abril de 2011

Tribunal de bar

Fui declarado culpado pelo júri do bar do crime inafiançável de posse e tráfico de fé. Concederam-me amplo direito à defesa, mas não pude fazer nada além de confessar-me culpado. Mãos erguidas, enchi o peito e bradei diante de bêbados, poetas, filósofos, estudantes, vagabundos, publicitários e professores: – Eu creio!

Seguiu-se silêncio angustiado quebrado por buburinhos que logo viraram fuzuê. Exigiram mais. Uma confissão não bastava. Queriam detalhes, um credo, uma profissão de fé. Católico, carismático ou tradicional, evangélico, pentecostal, histórico, reformado, reformulado, néo, desigrejado, enlouquecido, budista, espírita. Queriam nomes, queriam rótulos, algo em quê se agarrar, um motivo a mais de crítica, elogio, desdém ou deboche.

Tentei me esquivar, mas fui pressionado por todos os lados, entre gritos, risadas e dedos na cara, até o dono do bar bater firme uma garrafa vazia no balcão e sentenciar: – Ordem no bar! Silêncio no meu balcão! – E me encarou sisudo, olhos nos olhos, testa frisada: – Fala logo homem, antes que ponham o bar abaixo. QUe raio de fé é essa? Crê no quê?

Encurralado, pensei em citar o “credo apostólico” e sair logo dali. Mas desviei o olho pro chão quando percebi que o que quer que eu falasse soaria naquela situação como piegas e meloso, ou como uma martelada seca de araponga ressoando na imensidão da serra do mar. Lembrei do cego que em situação semelhante argumentou simplesmente: – Sei lá quem era o cara. Sei lá que fé é essa que me tomou de assalto. Só sei que não via nada, agora vejo! – Mas não tinha argumento assim tão forte que fosse meu. Lamentei profundamente continuar cego. Cego e mudo.

Mas consegui reunir força suficiente para levantar os olhos e responder ao dono do bar com uma estrofe de Aldir Blanc:

”[Creio] na existência dourada do sol
Mesmo que em plena boca
Nos bata o açoite continuo da noite”

11 de abril de 2011

Volver a los 17

CÁNTICO Nº 45 DO HINÁRIO DA TRILHA

O amor é um turbilhão de pureza original
Até o mais feroz aminal sussura seu doce som



Volver a los 17
Mercedes Sosa (Mercedes Sosa e Milton Nascimento)

O que pode o sentimento, o saber não tem conseguido
Nem o mais claro proceder, nem o maior pensamento
Tudo o muda no momento, qual mago condescendente
Nos afasta docemente de rancores e violências
Só o amor com sua ciência nos torna tão inocentes

Vai se envolvendo, envolvendo
Como no muro a hera
E vai brotando, brotando
Como o musgo na pedra
Como o musgo na pedra, sim...

O amor é um turbilhão de pureza original
Até o mais feroz aminal sussura seu doce som
Detém os pergerinos, liberta os prisioneiros
O amor com seus esforços ao velho torna criança
E ao mau só o carinho o torna puro e sincero

7 de abril de 2011

Queijo cremoso e o fim da humanindade

queijo-cremoso
No meio do café da manhã o copo de queijo cremoso falou comigo. E foi grosseiro, o bandido.

- Já era cara! Teu tempo passou. Foi bonito de ver, mas a contagem agora é regressiva. Perdeu playboy!

E o miserável estava certo. Ele percebeu, é claro, que eu estava lendo seu rótulo, e deve ter sacado meu desgosto quando notei a frase destacada que chamava a atenção do consumidor:

“Produto ultrafiltrado. Sem contato manual”.

O assombroso, que me deixou sinceramente confuso e assustado, é que esse argumento de venda era dirigido a indivíduos possuidores de mãos! - A que ponto chegamos – pensei apavorado.

Ausência de contato humano tornou-se definitivamente uma qualidade, uma característica a ser exaltada! A questão, meus amigos, não é que quem quer que tenha feito o queijo cremoso tenha lavado bem as mãos antes de prepará-lo, mas que ninguém, absolutamente nenhum ser humano nojento e asqueroso tenha sequer tocado nesse produto asséptico, fruto de uma linha de produção mecânica, computadorizada, robótica, perfeita!

A matéria prima continua brotando das tetas de uma vaca, mas isso não importa, nem onde vive essa vaca, nem o que comeu, nem como anda a limpeza e manutenção da máquina chupadora de tetas e fazedora de queijos cremosos, desde que humano algum se aproxime do produto para contaminá-lo com sua imundície inevitável, até que ele chegue à minha mesa e, sozinho, eu possa degustá-lo sem o receio da contaminação de um outro alguém. Só eu. E as máquinas.

4 de abril de 2011

Dias melhores

CÁNTICO Nº 44 DO HINÁRIO DA TRILHA

Vivemos esperando
Dias melhores



E não é o que queremos todos?
E não é o que fomos chamados a promover?
E não é o que a mensagem daquele galileu poderia realizar caso fosse praticada?
Caso fosse...

Dias Melhores
Rogério Flausino (Jota Quest)

Vivemos esperando
Dias melhores
Dias de paz, dias a mais
Dias que não deixaremos
Para trás

Vivemos esperando
O dia em que
Seremos melhores
Melhores no amor
Melhores na dor
Melhores em tudo

Vivemos esperando
O dia em que seremos
Para sempre
Vivemos esperando

Dias melhores pra sempre