É preciso admitir, antes de qualquer outra coisa, que sou um falsário até naquilo de mim que aparenta a mais pura virtude. Vivo a tensão absurda entre o que anseio ser e o que sou. Melhor dizendo, vivo a angústia de não conseguir, diante do próximo, ser aquilo que realmente sou. Porque o que sou, a essência mais profunda, o fiapo de humanidade sufocado debaixo do tempo e dos traumas e das convenções sociais e dos hábitos religiosos e das doutrinas e da segurança e das submissões e dos medos e dos enganos acerca de mim e acerca de todo o resto; esse fiapo maltrapilho amarrotado soterrado em escombros pesados é que é quem sou realmente, e a luta que imponho a mim mesmo é o labor do bombeiro que cavoca destroços na esperança de encontrar uma vida em farrapos, coberta de caliça e deitá-la ao sol.
Já havia ventilado essa idéia de inúmeras formas em variadas situções, mas jamais dramatizado-a de maneira tão clara como tenho feito recentemente. E o estalo que me fez perceber retroativamente o drama que venho representando deu-se em plena Alameda Rio Branco, pouco depois do meio dia. E desde lá, esbofeteia-me diariamente a ponto de me fazer chorar e molhar as almofadas do capacete enquanto rumo para casa para aproveitar as 2 horas de almoço que me são concedidas.
Não é, certamente, por acaso que o ponto central que desenrolou o drama todo que tento miseravelmente descrever aqui seja o encontro entre duas pessoas. E, ainda mais significativamente, um encontro casual. Diariamente, no intervalo do almoço, caminho em direção ao estacionamento onde minha moto descansa. E no sentido contrário, diariamente vem seguindo uma mocinha loira, pouco mais de 20 anos, com algum problema no sistema nervoso central que mantém suas perninhas duras, os braços pouco articulados, as mãos curvadas para dentro e uma leve, muito sutil tensão no rosto. Seus olhos são verdes como o mar e, por trás das lentes do óculos que insiste em escorregar pelo nariz e que precisa ser contido com um estranho movimento muscular facial, o olhar parece verter esperança. Tem dificuldade para descer o meio fio e os passos são sincopados, martelados, e fazem os cabelos loiros balançarem de um lado para outro em um ritmo bem cadenciado. E ela vem na minha direção e meu coração dispara. Não a conheço. Não sei de onde vem nem pra onde vai. Mas imagino um pouco do que ela já passou e passa. É possível que tenha uma bela família e seja amada e bem cuidada e protegida, e seu olhar sereno me faz crer que é assim. Mas sei que já ficou de lado, sei que já foi preterida, sei que já conheceu a solidão (e talvez a conheça diariamente), sei que já quis que tudo fosse diferente, sei que já pensou que tudo poderia ser melhor. E meu coração grita eufórico e me pede que a abrace calorosamente no meio da rua. Que lhe diga que a amo, que seus olhos são lindos, que o balanço de seu cabelo é uma canção, que seu olhar me cativou e me arrancou os pés do chão e me aproximou de Deus e Deus é amor, é abraço, é alegria e é lágrimas.
O que venho encenando há tempos sem me dar conta, é o drama de ter de me disfarçar para ser quem sou. O que a doce menina da alameda me fez ver, é que não consigo ser eu mesmo a não ser atrás de uma máscara que me proteja de mim e da incrível exigência que seria para a estabilidade social que me protege eu ser quem realmente sou. Explico: uma miserável vez por semana coloco um nariz vermelho na cara, um sapato enorme, um jaleco branco cheio de apetrechos coloridos, e caminho pelos corredores de hospitais visitando crianças, jovens, velhos, adultos nos mais variados estados físicos e psicológicos que um interno de hospital pode apresentar. E lá, e somente lá, abraço a todos, afago todos os cabelos, massageio todos os pés. Lá, e somente lá, rio displicentemente para qualquer um, aceno, danço, rebolo, canto, conto histórias. Lá, e somente lá, deito minha mão sobre mãos fracas e trêmulas, silencio diante da dor sem deixar de me fazer presente por um toque sutil, misturo minhas lágrimas com lágrimas de desconhecidos, deito minha cabeça em peitos arfantes e beijo testas e acaricio rostos quase sem esperança. Somente lá, atrás da segurança de um nariz vermelho - é o que todos os dias me sussurram os olhinhos verdes da moça da alameda - é que sou eu mesmo. E já na moto, a caminho de casa, choro todos os dias porque, sem o nariz vermelho, não consigo ser quem sou.
Porque não faço o bem que quero,
mas o mal que não quero, esse faço.
Romanos 7.19
Se quer se esconder atrás de um nariz para tentar, como eu,
descobrir quem é, visite o site do Pojeto Sorriso (Blumenau e região).