30 de junho de 2011

A fé de Herodes

O mundinho evangélico segue enfeitiçado por milagres. A fé é um show, portanto precisa de visibilidade. Estranhamente, no entanto, a fé da bíblia já foi atrelada à coisas que não se vêem. Era a fé que lançava o indivíduo na confiança inabalável de que um dia as coisas vão se ajeitar e, portanto, vale a pena lutar com todas as forças, contra tudo e todos, por um mundo melhor. Mas hoje, aqui, a coisa é complicada, doída, atribulada, sofrida.

Os crentes de hoje, no entento, seguem o Cristo milagreiro.

Herodes, o governador da galiléia, onde Jesus passou a maior parte dos seus três curtos e intensos anos de 'vida pública', já ouvira falar muito no estranho profeta vindo de Nazaré. As notícias que chegavam vinham carregadas de assombros místicos, mágicos e poderosos. O homem curava cegos, aleijados, leprosos, alimentava multidões com um punhadinho de pães e peixes, desafiava os figurões do templo e levantava menininhas mortas do seu leito. Era esse homem que vinha sendo trazido até ele naquela manhã. "Finalmente vou conhecê-lo", pensava o governador, ansioso e excitado. "O fazedor de milagres vem aí. De certo há de me agraciar com algum prodígio". E lhe foi entregue o milagreiro surrado. Não há nada no texto que indique falta de fé da parte de Herodes. Ele cria! Ele queria! Tinha fé! E ordenou o milagre, como ordenam os crentes de hoje. "Eu quero, eu posso, eu creio... em nome de Jesus eu ordeno..."; não são assim as orações cheias de fé da maioria dos evangélicos?

O Cristo milagreiro, no entanto, naquela mesma madrugada, algumas horas atrás, orava baixinho entre lágrimas, joelho no chão: "se for possível, afasta de mim esse cálice. Mas seja feita sua vontade."

Herodes não conseguiu o milagre que queria. Não rolou o show da fé. A cena que descortinou-se diante do governante abestalhado foi a cena mais repetida em toda a história da humanidade, em todos os momentos em que alguém buscou algo de Deus. Seja qual for a busca, a resposta mais comum é a que recebeu Herodes. O silêncio.

Somos diariamente brindados com o silêncio divino e, a não ser que aprendamos a reconhecê-lo em sua ausência, em sua aparente deserção, em seu abandono, jamais seguiremos com ele o caminho da cruz. Evidentemente, os crentes modernos dos milagres extravagantes nada querem com cruz alguma. A esses, resta agir como Herodes e encaminhar o profeta sozinho à morte.

27 de junho de 2011

Insustentável

Quem é que gosta de crise? Eu não, que não sou besta. Mas gosto do meu planetinha. Sou metido a ecologistazinho. Não jogo nada no chão. Consumo relativamente pouco. Reciclo. Meu lixo orgânico, ao invés de ir pro aterro, vira adubo. Coisas assim. Mas se falarem em crise, tremo na base. Ai meu emprego. Ai meu sossego.

Sou, como você, escravo do paradigma do capital, da máxima do consumo. Só sobreviveremos se crescermos. E crescimento é produção, é PIB, é consumo, é mercado girando, é comércio bombando. Bombando feito bomba relógio.

O máximo que consigo desejar é um "desenvolvimento sustentável". Mesmo sabendo que, como afirmou Viveiros de Castro, isso é conversa pra boi dormir:
“A noção tão louvada de “desenvolvimento sustentável” — não se pode negar as boas intenções de quase todos que a formularam e defendem — é, no fundo, apenas um modo de tornar sustentável a noção de desenvolvimento, a qual já deveria ter ido para a usina de reciclagem das idéias. Ela é uma contradição em termos. Não existe desenvolvimento capitalista sustentável; e, salvo engano, a imensa maioria dos defensores do desenvolvimento sustentável não imagina uma alternativa ao capitalismo.“
E cá estamos nós, à mercê do capitalismo, tentando sustentar a noção de desenvolvimento que nos consome, como um louva-deus compondo poemas à sua amada enquanto é devorado por ela durante o acasalamento. Sustentamos o absurdo argumento de que, para o mundo não implodir é preciso consumir.

“O desenvolvimento é sempre suposto ser uma necessidade antropológica, exatamente porque ele supõe uma antropologia da necessidade (idem).

A Europa e os EUA encolhem apavorados. O Brasil cresce à revelia da crise e cantarolando, cheio de si, na expectativa de ocupar em breve o merecido lugar entre os grandes. E, como sempre fizemos, vamos indo lentamente pro beleléu enquanto fazemos festa. O código florestal que se explôda, é o que nos diz confiante a bancada ruralista, e as matérias da Veja. É hora de crescer.

Quem é que vai ter coragem, diante de uma chance como essa, com os olhos brilhosos cobiçando o anel do poder, de abrir mão de tudo e abraçar uma outra lógica?
“[Precisamos da] improdução como meta, a involução intensiva como projeto coletivo de vida. Contra o mundo do “tudo é necessário, nada é suficiente”, e a favor de um mundo onde “muito pouco é necessário, quase tudo é suficiente”. Quem sabe assim tenhamos um mundo a deixar para nossos filhos (idem).”


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O Rondinelly tuitou a dica e fui conferir
o
texto preciso do Eduardo Viveiros de Castro.
Me vi forçado a escrever sobre o assunto,
e acabei lembrando de uns outros textos relacionados:
- Teologia de Balú
- Contexto
- Nossa única esperança de redenção
- Gafanhotos

20 de junho de 2011

Se o bem ou mal existem

CÁNTICO Nº 51 DO HINÁRIO DA TRILHA

Se o bem e o mal existem
Você pode escolher
É preciso saber viver



Se o bem ou mal existem
Roberto Carlos

Quem espera que a vida
Seja feita de ilusão
Pode até ficar maluco
Ou morrer na solidão
É preciso ter cuidado
Pra mais tarde não sofrer
É preciso saber viver

Toda pedra do caminho
Você pode retirar
Numa flor que tem espinhos
Você pode se arranhar
Se o bem e o mal existem
Você pode escolher
É preciso saber viver

É preciso saber viver
É preciso saber viver
É preciso saber viver
Saber viver, saber viver!



♫ Conheça as outras músicas do Hinário da Trilha.

16 de junho de 2011

Tragédia

Não teria sido outro senão o próprio autor das cartas quem desferira o golpe final. Teria sido difícil de imaginar lendo as primeiras missivas. As referências singelas à amizade, aos encontros casuais e suas indisfarsáveis alegrias, e aos primeiros encontros marcados regados a picolés, bancos de praça e roçar suave de mãos jamais apontariam para o desfecho trágico que se formou. O primeiro indício de que algo poderia estar escapando da normalidade foi o aumento do volume de escritos. As cartas iniciaram esporádicas. Tornaram-se mensais depois do primeiro e sutil toque de mãos. Mais ou menos quinzenais depois do primeiro afago nos cabelos. Semanais depois do pôr-do-sol abraçadinho. Enlouquecidamente diárias depois do primeiro beijo.

Já era suficientemente estranho a insistência no papel, já que as poucas respostas encontradas foram enviadas por email, e nenhum deles foi respondido pelo autor do golpe. Remeteu ao todo 256 cartas. Recebeu 6 emails fazendo referência à algumas delas. Nunca respondeu email nenhum. A 18ª carta foi acompanhada de um pequeno cisne de cristal. Todas as cartas seguintes referiram-se ao presente. Nenhuma das seis respostas por email falava no assunto.

A última carta foi entregue pessoalmente, encontrada perto da vítima que jazia ao lado do banco de praça que viu o primeiro toque das mãos, o primeiro afago, o primeiro beijo. Sentado no banco, impassível, olhos fixos no horizonte, o autor das cartas sorria por ter moído o cristal que se espalhava pelo chão enquanto a moça partia furiosa.

13 de junho de 2011

Tributo

stellinha egg

Num pais desmemoriado como o Brasil, mesmo quem cultiva a história acaba esquecido. Cantora especializada em música derivada do folclore, a paranaense Stella Maria Egg (1914-1991), a Stellinha Egg de uma familia de músicos de origem austríaca (a tia Heloisa tocava cítara; Ludovico Carlos Egg, parente paterno, trompa, piano e regia um coral de 120 vozes, no Tirol) dedicou-se a partir dos anos 30, ainda na PRB-2 (Radio Clube Paranaense) à MPB de raiz. Discípula do maestro Alceu Bocchino, seu primeiro professor de música, ela se casaria com outro maestro influente, o paulista de Itararé, Lindolpho Gaya (1921-1987), de linhagem polonesa, com quem formaria uma indissolúvel dupla, que atuaria por décadas com sucesso no rádio, TV, gravações e excursões. (...)

Estrela da canção

Artista precoce, que assomou ao palco pela primeira vez aos cinco anos, num espetáculo na Igreja Presbiteriana, Stellinha Egg gravou, de 1944 a 1973, 180 discos 78 rotações e 20 LPs com vasto repertório - de Heckel Tavares a Jorge Ben, de Luiz Gonzaga a Tom Jobim, de Dorival Caymmi a Catulo da Paixão Cearense. Ela que trocou o oficio de professora pelo canto, na década de 40, foi eleita três vezes a melhor intérprete do folclore brasileiro. Em 1956 lançou o clássico LP de 10 polegadas "Músicas do nosso Brasil com Stellinha Egg" (RCA Victor BPL 3022), uma coesa antologia de “singles” de 78 rotações editados entre 1951 e 1954 pela RCA, depois da fase inicial na Continental. Por suas interpretações intensas, dramatizadas, de “O vento" e “O mar' em 1953 (foi a cantora que mais gravou Dorival Caymmi nessa fase) ganhou mais de uma dezena de prêmios, incluindo medalha de ouro na rádio Tupi e Disco de Ouro do jornal O Globo e da rádio Globo. No texto de contracapa do LP acima citado, Claribalte Passos escreve:
“Laureou-se, em 1954, no julgamento unânime da critica fonográfioa carioca, num concurso promovido pela Revista do Disco, como a “Melhor intérprete de Música Brasileira”, pelas suas criações em disco RCA Victor, das belíssimas composições de Dorival Caymmi, “O Vento" e “O Mar", gravações consideradas as mais perfeitas já lançadas em nosso pais".
Stellinha e Gaya excursionaram por doze paises europeus. Gaya regeu a Filarmônica de Varsóvia, Polônia e, em Moscou, tocou choros de sua autoria no filme “Folclore de cinco paises”, em que a cantora representou um quadro macumba e cocos. Em Portugal, Stellinha registrou “Cantigas de roda" e "Vamos todos cirandar" e gravou também na Rússia e na Polônia. Na França, onde residiu por algum tempo, lançou “Chants folkloriques Brésiliens”, e atuou no filme "Bela aventura". Após mais uma turnê européia em 1973, reinstalados no Rio de Janeiro antes da partida para Curitiba dez anos depois, Stellinha e Gaya montaram os shows “Bras¡l, suas raizes musicais" e “Andanças”. Este (…) celebrou os 30 anos de carreira do casal, sumarizando uma cronologia musical brasileira, dos pregões e do lundu ao samba e bossa nova, com a última apresentação ocorrendo em 1985, em Curitiba.
koorax-tributo
Surrupiado e condensado do texto de Tárik de Souza
no encarte do CD de Ithamara Koorax,

Tributo à Stellinha Egg