28 de novembro de 2011

Andarilho do cerrado

Um andarilho vinha roçando o pé nas pedrinhas brancas e cristais dos caminhos do cerrado.

Embevecido pelas muitas águas e os desenhos impossíveis que elas traçam carinhosamente em rochas duras, vencidas por suave e paciente insistência. Iluminado pelo sol que se deixa, humilde, encobir por densas nuvens ligeiras, que derramam angústias sobre os ombros calejados do homem e sua mochila carregada tão somente do necessário.

E seguia o andador renovado pelo vento que sopra livre, penteia a mata, bagunça cabelos e dança com galhos torcidos e negros de pequis, ingás e bacuparis.

Clareado de lua cheia, salpicado de estrelas, encardido de chão.

Caminhava pela chapada, pelo planalto, pelo sertão, braços dados com seus amores, entre banhos de sol, rios e chuvas, entre risos e abraços, cachoeiras e remansos. E ao seu redor, e por sobre, e por dentro, pulsava a presença indisfarçável do criador e sua graça extravagante, revelada nas visagens, cheiros e sabores do cerrado.

E via o andarilho que tudo isso era muito bom.

24 de novembro de 2011

O abraço de 'Cione

Foi o dia maldito em que Nanico instalou na sua própria boca um instrumento de tortura, um expansor de pálato, um monstro de metal que o deixou parecido com o Willie Wonka quando adolescente. Saiu do dentista apavorado com aquele emaranhado de ferro no céu-da-boca, decidido a ligar pro Bilico desertando da sua função. Mas a coisa era tão grotesca e prejudicava tanto a fala que imaginou que ele não ia entender nada ao telefone. Foi até o hospital pra cancelar pessoalmente mas, chegando lá, acabou criando coragem e meteu a cara. Foi até o quarto/camarim e, junto com seu parceiro Bilico, se arrumou, se coloriu, se 'narizou', se paramentou e foram os dois pra labuta.

Primeiro quarto, ninguém entendia nada que ele falava, a língua já toda machucada, babando que nem nenêm. Ficou o mais de canto que pôde, deixando o Bilico tocar o barco enquanto ele enchia balões. Saiu do quarto cansado e desanimado, quando aconteceu o milagre.

Era ainda o segundo quarto e um homem grandão, na casa dos 30 anos, mas com cabeça de criança pequena, o viu enquanto ainda estava no corredor. Sua expressão saltou rapidamente do susto à uma explosão de alegria. Boca escancarada, olhos brilhando. A moça que o acompanhava lhe disse: "- Olha quem veio te ver, 'Cione!". E ele lá, boca aberta, olho esbugalhado, congelado, olhando fixo pro rosto do Nanico, como que esperando um sinal, e bastou o desanimado Nanico dizer simplesmente: "- 'Cione! Meu amigo! Que bom te ver..." que o homem enorme, com coração de menino, abriu os braços, libertou o riso e respondeu, oferecendo seu mais caloroso abraço: "- Meu paiaço, meu paiaço, meu paiaço..."

Nanico foi lá esperando um apertão, mas não como aquele. Tente imaginar uma criança recebendo de presente, numa surpresa daquelas, o mais esperado e maravilhoso e felpudo e fofinho bicho de pelúcia do mundo. Agora imagine a criança esmagando o presente contra o peito, completamente descuidada, absolutamente apaixonada. Pois Nanico, sua boca torta, sua baba, seu falar enrolado, sua língua machucada e seu monstro de metal eram o bicho de pelúcia do 'Cione. E ele os esmagava descontroladamente feliz, borrando a pintura do rosto do ´paiaço´ com suas lágrimas sorridentes enquanto repetia baixinho no seu ouvido: "- Meu paiaço, meu paiaço..."

Depois de alguns minutos do abraço mais empolgado que recebeu na minha vida, quando 'Cione enfim soltou Nanico, o 'paiaço' percebeu emocionado que estava curado. Não na carne mas no espírito, na alma, nos sentimentos, na empolgação, no ânimo, na esperança. Nanico e Bilico cantaram, tocaram, contaram histórias e riram um bocado, mas foram interrompidos seguidas vezes pelo 'Cione abrindo os braços num sorriso frouxo e esmagando de novo seu palhaço Nanico, que a cada abraço ouvia, baixinho e suave, uma misturança de sons. No ouvido era "meu paiaço, meu paiaço, meu paiaço...", no coração "meu filho querido, por quem vivi, por quem morri, meu amado, meu amado...".


(...) Pois estive enfermo, e vocês cuidaram de mim.
Mateus 25:36

21 de novembro de 2011

Frô dos cativeiro

Dá pra acreditar que isso já conteceu um dia? Literalmente. E dá pra acreditar que ainda acontece hoje?


CLIQUE E OUÇA A MÚSICA LEILÃO

Leilão
Por Ana Salvagni
De Hekel Tavares / Joracy Camargo
De manhã cedo, num lugar todo enfeitado
Nóis ficava amontoado pra esperá os compradô
Depois passava pela frente do palanque
Afincado ao pé de um tanque que chamavam bebedô.

E nesse dia minha véia foi comprada
Numa leva separada de um sinhô mocinho ainda
Minha veínha era frô dos cativeiro
Foi inté mãe de terreiro da famía dos Cambinda.

No mesmo dia em que levaram minha preta
Me botaram nas grieta que é pro mó de eu não fugir
E desde então, preto véio percurô
Ficou véio como eu tô, mas como é grande esse Brasil.

E quando veio de Isabel as alforria
Percurei mais quinze dia, mas a vista me faltô
Só peço agora que me leve Sá Isabel
Quero vê se está no céu minha véia, meu amô.


Do desconcertante CD Alma Cabocla, de Ana Salvagni.
Em homenagem ao dia da consciência negra.

17 de novembro de 2011

Paradigmas da publicidade

Acabo de me dar conta de mais um dos paradigmas abestalhados da publicidade. Eu, me aproximando dos quarenta anos de idade, tendo que ler sobre o comportamento da agora chamada "geração Z", a gurizada de 12 a 19 anos, pra descobrir maneiras de oferecer a eles tudo que eles querem (e muito mais) da forma que mais lhes agrada.

Assim caminha a humanidade.


Respingado do Facebook.

14 de novembro de 2011

Sistema

Todo dia, às 18h30, quando desligo meu micro, aparece na tela uma mensagem:
"Deseja realmente sair do sistema?"
E o que mais quero é gritar a plenos pulmões: "Sim!"


Respingado do twitter.

10 de novembro de 2011

Todo mundo tem

Um pensamento passou a me incomodar recentemente. Não sei exatamente como nem quando começou. Veio sorrateiro, entre refeições e conversas, leituras e vendavais, enchentes e pôr do sol, canções e tardes preguiçosas rede. A angústia que ultimamente me atormenta é andar pela rua e saber que todo mundo tem uma bela história, e que uma bela história merece ser contada e cantada, poetizada, recitada, escrita, repetida, sussurada, ouvida. Me incomoda perceber que passamos uns pelos outros nas ruas das cidades como se fôssemos postes errantes.

Aquele homem grisalho, beirando os 60 anos, de barba cheia, olhos cor de céu de verão ao meio-dia, com brilho intenso mais triste e cansado, roupas gastas e sujas, que caminhava pela Sete de Setembro empurrando um carrinho de mão com dois ou três sacos enormes de sabe-se lá o quê, indo na direção do Garcia numa tarde de garoa, tem uma história sensacional para contar. Sei disso porque vi a intensidade dela nos sulcos fundos que marcavam seu rosto. Quiz aproximar-me, quis cobri-lo com meu guarda-chuva, acompanhá-lo até seu destino e ouvi-lo. Mas eu tinha horário pra cumprir, anúncios pra fazer, campanhas pra criar, pra vender mais futilidades, e já estava atrasado, por isso passei andando ligeiro pelo homem e sua história formidável que jamais ouvirei.

7 de novembro de 2011

A viabilidade da instituição

“Todo grupo controlado por algums não pode ser chamado de igreja. Se é IGREJA, não pode ser controlada por ninguém. O Evangelho deixa livre”. (Carlos Bregantim)

Gosto da frase acima. Eventualmente cito ela aqui e ali. Há quem ouça e se ofenda. Há quem fique pensando, um pouco magoado, um pouco irritado: "Pô, agora que o cara deixou de lado a igreja formal, a instituição com CNPJ, sai por aí dizendo que os que não a abandonaram definitivamente não fazem parte daquilo que Jesus chama de igreja! Porque aqui, na instituição formal, sempre há controle, sempre há hierarquia. É uma denominação, tem conselho, tem presidência, tem presbitério...".

Que não é isso que a frase diz, a mim parece bastante claro. Se há quem se ofenda, a mim parece uma demonstração evidente da incapacidade de muitos, talvez a maioria, de dissociar o coletivo do pessoal, o exterior do interior, a estrutura do informal (sem forma), a instituição da igreja.

A teoria de que igreja é feita de gente é fácil de ensinar e repetir, dificílima de assimilar, raríssima de ser praticada.

Formalidade nenhuma é proibida. A hierarquia não é inviabilizadora. A formação de conselhos e diretorias não é pecado capital. O importante, o essencial, o necessário, é deixar mais do que claro de que isso tudo refere-se única e exclusivamente à instrumentalização de um projeto humano e jamais será essa a única e sagrada forma de implantação do reino de Deus na terra, ou de continuidade do caminho de Jesus entre nós. Nem a única, nem uma delas.

Se isso ficar claro, se for exposto à luz diante de todos os membros da instituição que a papelada toda, a hierarquia toda, o controle necessário nada mais é do que uma construção humana, um empreendimento terreno, uma necessidade de adequação à leis, para fins de contratação de pessoal, de carteira assinada, de SUS, PIS e essa coisa toda, então haverá espaço para que lá dentro desse bolo burocrático possa pulsar algo livre e espontâneo entre irmãos de fé que se poderá chamar igreja. E simultaneamente há de agiganter-se o horizonte e brilhar diante dos membros da instituição a maravilhosa visão de que há igreja também do lado de fora, espalhada por todos os cantos, tão sem controle quanto essa que brota também do lado de dentro.

Li um relato do Leonardo Boff recentemente, descrevendo a um entrevistador como prossegue seu relacionamento com a igreja católica, já que foi impedido de atuar como padre. Ele respondeu que reúne semanalmente, debaixo do teto da mais hierárquica instituição cristã, um grupo de irmãos de fé que juntos lêem a bíblia, oram e participam da ceia. O fazem do lado de dentro da burocracia, mas de forma absolutamente livre e independente dela. São igreja, dentro do sistema de poder da maior instituição cristã do planeta.

Da minha parte, creio que as igrejas formais e seus CNPJs ganhariam muito se fossem aos poucos alterando seus estatutos e transformando-se em organizações de difusão de bem, de apoio social, psico-social, educacional, cultural, com as portas abertas às comunidades que as cercam, trabalhando pelo bem comum da humanidade de forma graciosa, ou seja, sem esperar receber nada em troca. Aos poucos, abandonariam o nome "igreja", e permitiriam que a igreja de verdade ganhasse asas por aí.

Talvez então, pessoas reunidas debaixo de ipês floridos, nas ruas, praças ou varandas, debaixo do nome de um mesmo Cristo errante, nômade, sem lenço nem documento, passariam a ser chamadas de igrejas, enquanto as hierarquias, conselhos e diretorias seriam simplesmente chamadas de ONGs, associações, clubes, comunidades terapêuticas, fundações... sem ofensa.