31 de janeiro de 2013

Pelo menos duas



A Igreja, instituição que afirma possuir a verdade indiscutível, não surgiu senão no momento em que não mais estava só, em que já existiam pelo menos duas.

Enquanto os fiéis concordavam não foi necessário que sua sociedade única se constituisse em Igreja; somente quando esses homens se dividiram em partidos opostos, negando-se mutuamente, cada qual sentiu a necessidade de afirmar sua ortodoxia, atribuindo-se a posse exclusiva da verdade. O conceito de uma Igreja única foi consequência do fato de que cada um de seus participantes, em desacordo, declarando ser o outro cismático, reconheceu como infalível apenas sua própria Igreja.

Se conhecemos a existência de uma Igreja que no ano de 51 deciciu admitir os não circundidados, é porque havia outra, de judaizantes, que havia decidido não admití-los. (...) Assim, essa Igreja única não é senão uma palavra ilusória, sem qualquer realidade.

(...)

Assim, a definição exata e absoluta do que é a Igreja só pode ser uma: a Igreja é uma reunião de homens que afirmam serem os únicos de posse da verdade. Essas sociedades, transformadas em sequência com a contribuição do poder civil em potentes instituições, foram o obstáculo principal à propagação da verdadeira inteligência da doutrina de Cristo.

Por mais que nos possa parecer estranho, a nós que fomos educados (...) no desprezo pela heresia, o fato é que apenas nos que foi chamado de heresia houve o verdadeiro movimento, isto é, o verdadeiro cristianismo, que só deixou de ser assim quando essas heresias interromperam seu movimento e tornaram-se imóveis na forma fixa de uma Igreja.

Igrejas, enquanto Igrejas, como sociedades afirmadoras de sua infalibilidade, são instituições anti-cristãs. Não só nada existe em comum entre as Igrejas e o cristianismo, exceto o nome, como seus princípios são absolutamente opostos e hostis. As primeiras representam o orgulho, a violência, a sanção arbitrária, a imobilidade e a morte; o segundo representa a humildade, a penitência, a submissão, o movimento e a vida.

Não se pode servir ao mesmo tempo a estes dois senhores: é preciso escolher um ou outro.


Tolstoi, no seu livro "O Reino de Deus Está em Nós"
surrupiado de um email do Hugo Lucena Theophilo

24 de janeiro de 2013

Os mais batutas - 2012

Já não se pode confiar nos Maias.

Só nos resta encher de água o cantil, botar de novo a mochila nas costas e seguir por essa trilha estreita, ziguezagueada, incerta, tão assustadora quanto bela. Caso alguém passe caminhando por aqui, deixo cuidadosamente nesse chão algumas das anotações mais relevantes do décimo segundo ano desse século.

Tá na mão
Em algum lugar
Tuitadas de leão
Chuvarada
Teologia do limão azedo
Cicatrizes
Rotina
Qué isso mermão?
Um vídeo entre aspas
Igreja. CBF ou pelada?
Vacas magras
Que dizer
Natal é de Noel


Veja as seleções duvidosas e arbitrárias de cada ano, desde 2007.

17 de janeiro de 2013

Almas à venda

Buda, ao enumerar suas verdades nobres, afirmou que a vida é sofrimento. O carpinteiro, filho de Maria, não se furtou a afirmar que nossa existência seria inegavelmente recheada de aflições. Essas afirmações, que são uma só verdade inevitável, já foram absorvidas com mais facilidade pela humanidade. Houve um tempo em que fugir da aflição, da dor, do sofrimento era tarefa muito mais complexa do que hoje, a ponto de não valera à pena o esforço. Salvo por um bom tonel de vinho, não havia como acobertar o sofrimento debaixo de analgésicos, drogas pesadas ou baladas movidas a músicas irritantes e repetitivas. Nem esconder a causa da dor em asilos ou leitos de hospital. Ela era vivida na carne, encarada face a face, amargamente chorada, dolorosamente superada. As pessoas morriam em nosso colo à noite e de manhã cedo nós mesmos cavávamos a cova onde lançaríamos o corpo inerte de um pai ou um filho. O alimento que produzíamos para o consumo era queimado em uma geada forte e passávamos fome e frio ao mesmo tempo. Mas tudo era real. Era verdade. Era parte essencial e inevitável da vida. Obstáculos naturais a serem enfrentados e superados. Sabíamos que viver é superar problemas.

Viver é superar problemas

Conhecereis a verdade e a verdade vos livertará é muito mais que um conceito religioso. Que a verdade é Cristo (o autor da frase em itálico, caso alguém não saiba) e ele é quem liberta, é o que se ouve sempre em púlpitos de igrejas cristãs. Mas o fato é que toda verdade é libertadora, assim como toda ilusão aprisiona. O rabi judeu não falava de ser ele mesmo uma encarnação mágica da verdade a ser aceita e adorada, mas escancarava que sua proposta para uma vida abundante só seria possível quando nossa própria vida fosse corajosamente desprovida de ilusões, sejam elas sociais, políticas ou religiosas. Conhecer a verdade é olhar para a vida do mestre, perceber o quão radicalmente desiludida ela foi, e igualmente desiludir-se por completo.

A humanidade, no entando, mergulha cada vez mais profundamente em um oceano de fantasia. Refestela-se na mais doce ilusão. Do carnaval aos albuns de fotos no facebook, tudo é alegria, festa, extravagância. Não há mais dor visível porque toda ela está varrida para baixo do tapete, armazenada no quarto escuro da alma de cada um. E quando ela insiste em aparecer, é tão vergonhosa e inconveniente que pode levar alguém como Paul Giamatti, no filme "Almas à Venda", a extrair a própria alma para livrar-se desse constrangimento.

O mundo do capital e do consumo, movido pela devastadora engrenagem da propaganda, é especialista em ilusão. Vivemos submersos nela sem absoultamente nos darmos conta, hipnotizados, desalmados, robotizados. Não como zumbis, mas como aquele coelhinho da duracell, batucando frenética, automática e eternamente. Nem nos momentos de lazer abrimos espaço para a verdade brotar. É o que mostram as raves, baladas noturnas, resorts e cruzeiros maritmos.

A verdade vos libertará

É evidente que o combustível dessa bagaça é o dinheiro, mas aquilo que chamamos de economia, a ciência que move o mundo do capital, é quase toda ela uma profunda e desoladora ilusão. Que o dinheiro não existe é fácil demonstrar. No entanto ele permanece sendo o centro da vida de qualquer um na sociedade capitalista que criamos.

Jackson reserva 10 mesas em um restaurante bacana para um jantar com amigos. Vai pessoalmente ao estabelecimento um dia antes e deixa tudo pago com um cheque. Mas Krueger, dono do restaurante, precisava pagar o representante de bebidas que estava fazendo a entrega. Paga-o com o cheque de Jackson, que é, no mesmo dia, repassado para o dono do apartamento onde mora representante. O dono do apartamento repassa o cheque ao pintor, que segue sorridente até a loja da Eleonor e compra a TV de led que havia prometido à esposa. Eleonor decide convidar os funcionários para um happy-hour no restaurante do Krueger e paga o consumo com o cheque que recebeu pela TV. No dia seguinte, de manhã cedo, Jackson passa no restaurante, desculpando-se com seu Krueger porque houve um imprevisto e precisa cancelar a reserva. Calmamente, Krueger puxa do caixa o cheque de Jackson, devolve ao rapaz e cancela a reserva.

Quando Paul Giamatti finalmente olha para dentro de sua alma já no final do filme (desculpe, mas vou contar), descobre que a verdade que restou, ali em algum canto, encontra-se nos silêncios, nas solitudes, nos toques sutis, nos olhares tênues. A dor que lhe fustigava a alma foi finalmente superada pelo encontro com a verdade. E a verdade era discreta.

10 de janeiro de 2013

Assombrosamente singular

Deuses das religiões de mistério já haviam encarnado. Deuses antigos já haviam morrido por seu povo e alguns ressurgiram da morte como fênix, antes de Jesus entrar na história (e os sites apologéticos dessa nova potência religiosa, o ateismo, tem informações curiosíssimas sobre o assunto).

Mas há algo de assombrosamente singular em uma cena da vida do homem-Deus judeu do primeiro século. Algo que por pouco não passa despercebido, tendo sido registrado somente no último dos quatro evangelhos. A celebração da última ceia ganhou fama e correu o mundo, mas quem grita e clama por atenção nas páginas esquecidas do volume literário mais vendido do planeta é a absurda história que a precede. O Deus encarnado, o criador, aquele que era, é e há de vir, o alfa e o ômega, o santo, o ungido, o cristo, o cara!, de joelhos, lavando os pés de Judas. O cristianismo histórico, de forma emblemática, parece muito mais interessado em malhar Judas que lavar-lhe os pés.

Suspeito que uma reviravolta incrível espera ansiosa pelo dia em que os seguidores do rabi judeu abandonarem paus e pedras e ajoelharem-se diante de seus detratores.