31 de março de 2013

Pelo menos o universo



No dia em que se recorda a ressurreição de um homem como a matriz da ressurreição de todos, não é demais lembrar, como Mayakovsky, que se fomos arrancados das garras da morte e lançados na eternidade pelos braços estendidos do Deus encarnado, o fomos para lutarmos contra as misérias do cotidiano, para que não mais existam amores servis, para que ninguém mais tenha de sacrificar-se por uma casa ou um buraco. Para que, a partir de hoje, a família se transforme e nossos olhos enxerguem o mundo com olhar de reconciliação, amor, perdão, misericóridia, graça e paz. E nos irmanemos todos em um glorioso abraço universal.

O AMOR
Poema de Mayakovsky adaptado e musicado por Caetano Veloso
Interpretado por Rentao Braz


Talvez, quem sabe, um dia
Por uma alameda do zoológico
Ela também chegará
Ela que também amava os animais
Entrará sorridente assim como está
Na foto sobre a mesa
Ela é tão bonita
Ela é tão bonita que na certa
eles a ressuscitarão
O século 30 vencerá
O coração destroçado já
Pelas mesquinharias
Agora vamos alcançar
Tudo que não podemos amar na vida
Com o estrelar das noites inumeráveis
Ressuscita-me
Ainda que mais não seja
Porque sou poeta e ansiava o futuro
Ressuscita-me
Lutando contra as misérias do cotidiano
Ressuscita-me por isso
Ressuscita-me
Quero acabar de viver o que me cabe
Minha vida
Para que não mais exista amores servis
Ressuscita-me
Para que ninguém mais tenha
De sacrificar-se por uma casa ou um buraco
Ressuscita-me
Para que a partir de hoje
A partir de hoje
A família se transforme
E o pai
Seja, pelo menos, o universo
E a mãe
Seja, no mínimo, a terra
A terra, a terra

Veja também: Ressucita-me

28 de março de 2013

A páscoa

É fato que a mais celebrada data do calendário cristão é o Natal. Mais por conta do dinheiro rolando solto no comércio e das bochechinhas rosadas do Papai Noel do que pelo nascimento de Jesus, é verdade, mas o fato persiste.

Curioso é que por mais de trezentos anos cristão nenhum comemorou o nascimento de seu mestre. Ninguém fazia a menor idéia do dia em que ele nasceu e, aparentemente, não havia nenhum esforço para descobrir. Foi só no ano 336 que o imperador romano, esperto que só ele, fixou o nascimento de Cristo na mesma data da festança pagã que comemorava o solstício de inverno (no hemisfério norte, é claro). Assim conseguiu a façanha de converter o povo e manter a festividade. Eu teria feito o mesmo.

O curioso nessa história é que apesar de ninguém saber o dia em que de fato nasceu o messias de Nazaré, todos sabem desde sempre a data de sua morte. A páscoa é a festa em que os judeus comemoram a libertação de seu povo das garras do faraó 3,5 mil anos atrás, e a subsequente passagem (pessach = páscoa) sensacional da multidão à seco pelo mar aberto ao meio. O Cristo acabou morrendo na semana da páscoa judaica e, por tanto, todo mundo conhece a data de seu falecimento e ressurreição. A manjedoura tem seu papel na história, e é em si mesmo uma belíssima mensagem que se perdeu nos festejos de Natal (além de ser muito bonitinha nos presépios), mas não é a toa que o símbolo cristão é a cruz. Não fosse Constantino e a cristianisação compulsória do império romano, até hoje não haveria nascimento a comemorar, mas tão somente morte e renascimento.

Nessas horas lembro de Pedro e a sacada que teve em revelar que a morte do Cristo de Nazaré precedeu sua vida. Que seu sacrifício precedeu seu nascimento. Que a encarnação de Deus é consequência de sua morte na cruz e não o contrário. Na lógica da eternidade o tempo vira do avesso e a salvação precede a condenação. É belíssima e certeira a frase que afirma que antes de dizer "haja luz", Deus disse "haja cruz".

A páscoa deveria nos lembrar que Deus foi morto antes de nascer. E isso faz toda diferença.

27 de março de 2013

Nada

A gente nada, nada, nada... e não chega nunca.
Gif animado surrupiado do tumblr de Thoka Maer

18 de março de 2013

A mais mesquinha das infâmias

Desapegar-se dos bens materiais pode parecer virtude louvável. É frase que saiu da boca de muitos santos e profetas que rasgaram o manto negro que costuma cobrir a humanidade e deixaram entrar um pouco de luz. Mas isso era em um tempo muito distante. É imperativo, agora, lembrar a todos e a mim mesmo que eles viveram em época venalmente distinta da nossa.

Desapegar-se dos bem materiais, hoje, parece ser a atitude mais banal do mais desligado dos homo-consumistas que infestam a superfície desse planeta. Chegamos (ou estamos bem próximos de chegar) à situação definitiva em que não há mais ninguém apegado a coisa alguma, a não ser a próxima. O desapego consumista nos faz abandonar o que temos em favor daquilo que ansiamos ter e assim sucessivamente, ad infinutum. É o desapego como a mais mesquinha das infâmias. 

Aos santos resta agora bradar a plenos pulmões, de cima dos telhados, que cada objeto tem inestimável valor e é preciso apegar-se a eles como a menina a seu ursinho de pelúcia. Sua caneta Bic e os copinhos de plástico que você usou naquela festinha semana passada valem a vida de um operário que trabalha embarcado em alguma plataforma de petróleo em alto-mar, distante de sua esposa e filhos por duas longas e solitárias semanas. Sua bola de basquete vale as asas de uma borboleta lilás, verde neon e púrpura, que foi extinta e nunca mais será vista. Seu lápis (se é que você ainda tem um), vale o pinus que tirou a vida de uma imbuia e os pulmões de um minerador de grafite. Seu celular e sua tablet valem a vida de uma ou duas crianças trabalhando em condições absolutamente insalubres em algum buraco lamacento no interior do Congo, e a dor insuportável nas costas de algum taiwanês. Seu tênis bacana, com amortecedores e impulsionadores, custa as 14 horas de trabalho de uma menina nos subúrbios da China.

Isso não é pouco, suponho. Mas há muito mais. Cada objeto de consumo pelo qual pagamos uma bagatela (ou nem tanto) foi imerso em suor e sangue, em dor e lágrima, em saudade e lesão por esforço repetitivo.

Nenhuma promoção da Casas Bahia deveria ser capaz de calar esse grito.

6 de março de 2013

Ichtys da prosperidade

A vida de um cristão no primeiro e segundo séculos poderia ser bastante complicada, especialmente próximo dos centros urbanos, onde a hostilidade de uns só era equiparada a empatia de outros. Eles eram conhecidos pelo amor, é o que registra o livro dos Atos dos Apóstolos, escrito pelo médico Lucas para seu amigo Teophilo, para explicar-lhe o que vinha acontecendo com aquela turba de loucos que afirmavam crer na ressurreição de um homem. Mas o amor não é coisa que se queira a não ser em poemas. Amor na vida real é o caos. O único amor permitido é aquele devotado às estruturas, às hierarquias, às disputas pelo poder, à própria imagem. Se seu amor não for desse tipo, meu amigo, sinto lhe dizer mas você será invariavelmente, mais cedo ou mais tarde, lançado aos leões.

Conta-se que a partir de certo momento, os cristão passaram a tentar ser mais discretos em seus encontros, para evitar as confusões muitas vezes seguidas de morte. Um cristão em um local público, para encontrar um amigo de fé, riscava discretamente um semi-circulo no chão, com o pé. E ficava por ali, aguardando a chegada de alguém que completasse o desenho com outro semi-círculo enquanto assobiava olhando os passarinhos. O resultado traçado no chão era o de um singelo peixinho de dar inveja a muito designer gráfico ainda hoje. O termo grego para peixe era ichtys (ictus), que passou a ser também um acrônimo para Iesous Christos Theou Yios Soter (Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador).

Mas veio a reviravolta do terceiro século. O imperador converteu-se e a turma dos perseguidos passou a perseguir, numa inversão que faria arrepiar os pelos da barba de Cristo. Os que eram conhecidos por amar e, portanto, eram amadores (porque se armador é o que arma, que se dirá de quem ama?, diria Romerto Diamanso), profissionalizaram-se, hierarquizaram-se e desceram o sarrafo em quem não se dobrava voluntariamente e essa nova espécie bizarra de amor.

E passaram-se mil e setecentos anos de cristianismo repleto de escuridão e salpicado por alguns poucos lampejos de luz até que, lamento dizer, se foi por completo a esperança. Se ainda não foi para você, vamos conversar de novo daqui há uns anos mais. E o ichtys, outrora simbolo do amor que sofre mas não cala, cobre-se agora então, definitivamente, de novo e inexplicável significado. Já havia ouvido isso da boca de um vendedor de carros, mas agora estampa-se na página de renomado veículo de comunicação online, pela pena confusa de um jornalista desinformado, a nova e desoladora definição para o pobre peixinho. Eu o perdôo, UOL. A culpa não é sua. A culpa é do rumo torto e deprimente que tomou o cristianismo.

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