30 de setembro de 2013

No inferno [09]


09.

A luz foi menos intensa naquela manhã. Zé Augusto tinha a sua frente não um único banco e uma única muda de roupa, mas um quarto espaçoso e um guarda-roupas razoavelmente grande. Estava confuso e tonto. Sentia como se tivesse despertado de um longo sono, depois de uma noite de muita bebida. Uma ressaca daquelas. Saiu do quarto cambaleando. Encontrava-se no andar superior de uma ampla sala de estar. Desceu as escadas segurando firme no corrimão e foi à cozinha preparar um café. Sentia-se em casa. A geladeira estava cheia. Serviu-se de algumas frutas, duas fatias de pão e café instantâneo com leite. Com a barriga cheia já se sentia muito melhor. Tomou uma ducha fria, vestiu-se com a primeira roupa que encontrou no armário, pegou a pasta que estava sobre a mesa da cozinha e foi até a garagem. No para-brisa do carro descansava um bilhete adornado com três corações mal desenhados à caneta: "A noite foi ótima - me liga". Não conseguia lembrar de nada sobre aquela noite, nem imaginar quem teria deixado o bilhete, mas sorriu discretamente e entrou no carro. Sabia que tinha assuntos urgentes à resolver. Tentava lembrar-se do conteúdo dos contratos pendentes, das reuniões anteriores, dos acertos com os moradores, do acordo com o governo do estado que comprometeu-se a garantir a remoção das famílias. Sabia que precisava ter tudo pronto, engatilhado, para iniciar a demolição e as obras antes que houvesse tempo de um recurso por parte de algum dos desalojados. Quando a porta da garagem abriu e a luz do sol lhe feriu os olhos, foi imediatamente fulminado com flashes de memória confusa. Via um quarto cinza, um loteamento fantasma de casas iguais, garoa, frio e um homem gritando seu nome pelas ruas. As imagens iam e vinham enquanto Zé conduzia o carro para a saída do condomínio onde morava. Acenou para o guarda na recepção e seguiu na direção de seu escritório. Vivia em um bairro nobre de uma grande capital. Fazia esse caminho todos os dias, inclusive finais de semana. Lembrava-se dos detalhes do percurso, das curvas, das praças, dos viadutos, dos restaurantes que frequentava. Passou em frente ao L'Ambroisie e lembrou-se imediatamente da noite anterior com Isabela. Olhou furtivamente para o bilhete que jazia sobre o banco do passageiro, sorriu, mas era difícil concentrar-se no que quer que fosse por causa das imagens estranhas que lhe vinham à mente como fotografias velhas em preto-e-branco. Foi desperto do instante de confusão pelo susto do solavanco e do som seco e grave que resultaram do impacto em seu para-choques. Freou o carro a tempo de ver o corpo que rolava sobre seu capô esparramar-se no chão ao seu lado. A rua estava vazia. Desceu do carro e tentou cuidadosamente analisar a situação do homem. Sem que fosse preciso tocá-lo, ele virou-se lentamente, gemendo e sujo do sangue que escorria da testa e das mãos. Olhou nos olhos de Zé Augusto com o rosto franzido de dor, e riu.

"Eu esperava encontrar-lhe aqui Zé. Só não achei que fosse tão rápido nem tão dolorido", falou mostrando os dentes brancos machados de sangue.



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26 de setembro de 2013

No inferno [08]

08.

Já era noite e aquele lugar resfriava até os ossos. Os vapores condensados saíam quentes pela boca acompanhando as palavras e a respiração. Pelas paredes escorriam gotas de água que deixavam o quarto ainda mais gelado. Zé Augusto sentou-se na cama desarrumada, Abud puxou o banco para perto e sentou-se também.

"Se aquilo é o inferno, Abud, você estava fazendo o que lá? Eu via você sempre por ali, me olhando de rabo de olho. Como é que você estava lá? Como é que veio parar aqui?"

"Esse é o meu trabalho Zé. Entrar no inferno pra tentar tirar alguém de lá. Nós saímos procurando, vagando, olhando nos olhos da rapaziada, vendo se encontramos alguém variando, alguém que mesmo estando lá, mete de vez em quando o nariz para fora. Alguém que com os olhos pede socorro, mesmo que não saiba ainda de quê quer ser salvo. Quando encontramos alguém, a gente cola no cara, segue ele, vai tentando descobrir onde ele está quando sai fora, quando ainda tem algum momento de lucidez no meio daquela confusão toda."

"E o momento de lucidez é isso aqui? Eu tô nessa merda? Isso é melhor que aquilo?"

"O seu momento de lucidez é esse aqui. Mas não é o mesmo pra todo mundo. Mesmo o inferno, cada um tem o seu. Eu já tive o meu, Zé, e me tiraram de lá. E não tinha nada a ver com o seu. Meu inferno era um templo. Uma igreja enorme. Tinha cruz, bíblica, pregação, evangelismo, batismo, tudo que você pode imaginar."

"No inferno?"

"No meu sim. Eu vivia aquele negócio todo entusiasticamente. Fiz uma bela carreira lá dentro. Tornei-me bispo, liderava multidões, cativava todo mundo com um discurso poderoso. Consegui um programa de TV, publiquei montes de livros. Falava de Jesus o tempo todo, de Deus, de amor. Era um discurso belíssimo. Mas era tudo voltado para meu próprio umbigo. Uma corrida para o sucesso ministerial. Abria a bíblica seletivamente, montava minhas mensagens com recortes de textos salpicados de todo canto. O discurso estava pronto, era só pesquisar textos compatíveis com o discurso, que era sempre de poder, de sucesso, de glória, de vitória."

"Estranho isso."

"No fundo, Zé, os infernos são sempre os mesmos. A aparência exterior é que muda. O meu inferno não era tão diferente do seu. Só mudava o cenário. É sempre assim. O cenário muda, mas é a mesma essência. É uma correria para si mesmo. E é tão si mesmo que, via de regra, é um lugar de absoluta solidão. Você lembra de alguém lá? Pode citar alguém pelo nome?"

"Rapaz, é tanta gente. Já tentei lembrar de nomes, mas não consigo."

"Multidão e ninguém são a mesma coisa."

"Mas ninguém por ninguém, aqui também estou sozinho."

"Estava, Zé. Agora você tem Abud" e uma gargalhada ecoou no quarto escuro.

"É. Já é alguma coisa. Mas, sinceramente, não sei se posso trocar aquilo tudo por isso daqui. O negócio lá parecia ir muito bem. Acho que eu estava crescendo e mais cedo ou mais tarde alguém acaba aparecendo, se aproximando, tonando-se amigo."

"Será? Até agora, a única coisa que você tem são flashes confusos na memória."

"Flashes confusos mas empolgantes. Com grandes perspectivas. Com futuro promissor. Tenho certeza que se eu vivesse aqueles momentos de fato, se estivesse consciente quando o dia claro está acontecendo, conseguiria fazer contatos, amigos, sei lá. E não precisaria abrir mão daquele luxo todo."

"Você já fez isso, Zé. Já viveu aquilo tudo consciente. Foi justamente aquela consciência que o tirou de lá, que o trouxe ao quarto escuro do poente. Você parou aqui porque já não suportava aquilo, porque sua consciência o trouxe para fora." Essa frase pareceu fazer sentido para Zé Augusto. Num instante sentiu de fato já ter vivido aquilo e soube que estava cansado, que já não suportava. Mas no instante seguinte creu estar delirando e aferrou-se novamente à ideia de que precisava voltar e viver aquela vida intensamente. E que seria bom. Seria maravilhoso.

"Não posso fazer nada por você além de estar por aqui, Zé. Voltar lá é fácil. O problema é que acaba chegando um momento em que você será engolido por aquela euforia e não cairá mais em si no poente. O dia vai virar e você ficará por lá. E não sei se encontro você de novo. Você pode tomar novos rumos, novos caminhos e tornar-se inacessível. É um risco alto."

"Eu vou de novo, Abud. Preciso ir. Esse quarto cinza me dá arrepios" e, enquanto falava, bocejou, ajeitou-se na cama, e dormiu.



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23 de setembro de 2013

No inferno [07]


07.

Era uma manhã diferente. A cabeça de Zé Augusto estava a ponto de explodir. Sentou na cama, nu, e ficou olhado as roupas limpas sobre o banco. Sabia que algo diferente tinha ocorrido, mas não conseguia agora lembrar o quê. Ficou sentado com os braços esticados apoiando o peso do corpo na beira da cama, tronco levemente deslocado à frente, ombros na altura das orelhas, testa franzida e olhos fixos nas roupas ao lado da cama. "Abud", balbuciou a palavra, tentando entender como ela havia parado em sua boca. "Abud, Abud...", continuou repetindo enquanto procurava na memória de onde vinha esse nome, mas não encontrou nada. Vestiu-se caminhou para a luz.

Acordou zonzo no quarto cinza. Os flashes de memória eram especialmente festivos. Recostou-se na cama e fechou os olhos para desfrutar das lembranças. Não se incomodava nem um pouco com a umidade e o mal cheiro do quarto. Parecia feliz simplesmente por lembrar-se, ainda que de maneira confuso, das loucuras do dia que passou. Queria dormir logo e voltar para lá.

"Zé! José Augusto!" Abud caminhava pela rua monótona e fria berrando e tentando ouvir alguma resposta. Temia que Zé Augusto não respondesse e que não o encontrasse mais. Sabia estar perto de sua casa. Passou uma longa e solitária noite, e um dia monótono e depressivo, aguardando o entardecer. Quando o sol já estava suficientemente baixo, começou a gritava com força enquanto caminhava naquele lugar estranho. "Responde Zé! Vem pra fora. É Abud, lembra? Nossa conversa de ontem?"

Um último fiapo de luz invadia a casa embolorada pela fresta da porta entreaberta quando uma voz distante se fez ouvir. Zé espremeu os olhos tentando usa-los para desvendar os sons. Abud? Quando enfim ouviu seu nome e percebeu-o também escrito em garranchos nas paredes descascadas do quarto frio, sentiu novamente o cheiro desagradável e percebeu o mofo, o bolor e a decrepitude do quarto. Os flashes cessaram e lembrou da noite anterior. Correu para fora: "Abud? Cadê você rapaz? Abud! Abud!" "Zé?", Abud ouviu os gritos vindo de suas costas. Virou-se e viu um vulto no meio da rua, 500 metros a sua frente. "Tô aqui Zé", e correu na sua direção.

A empolgação do abraço pegou os dois de surpresa. Soltaram-se e se olharam, um esperando a reação do outro. O sorriso sutil na boca de ambos eliminou os receios e voltaram ao abraço. Um longo abraço.

"E agora Abud, vamos pra onde?" "Pra sua casa. Seu quarto fedorento. Era esse o lugar que eu estava procurando." "Fazer o que ali, velho? Eu quero é sair desse beco infinito e cinza. Desse fim de mundo onde o sol se esconde todo dia, mas nunca nasce." "Eu já te disse, Zé. Teu problema não é esse lugar. Teu problema é o outro. É o lugar claro, iluminado e festivo que você visita diariamente. Lá é o inferno, aqui não." "Mas lá é mil vezes melhor que aqui, cara. Você pirou." "Entra no quarto, Zé. Senta na cama e vamos conversar."



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19 de setembro de 2013

No inferno [06]


06

"Eu é que preciso de sua ajuda agora Zé. Você precisa me levar até sua casa. O lugar onde você acorda todas as manhãs. O quarto iluminado da alvorada, ou o quarto escuro do entardecer. Precisamos chegar lá, nem que isso leve mais alguns dias."

"Eu sei de onde vim Abud. É só correr em linha reta, sentido oposto ao poente. Acho que caminhei duas horas até a esquina onde nos encontramos. É só andar duas horas de volta." E saíram os dois em silêncio, na noite escura, pela rua monótona e cinza, procurando por uma casa entre as milhares de casas idênticas que ladeavam a avenida. Não havia relógio por ali e, portanto, seria preciso imaginar o tempo passando enquanto os passos ligeiros e decididos iam ecoando nas paredes das casas.

Zé Augusto caminhava apreensivo, olhando repetidas vezes para Abud, tentando entender quem era ele, como o havia encontrado, o que fazia nas suas memórias, mas o homem simplesmente seguia em frente, em silêncio. Tentou formular perguntas, mas começou a sentir-se tonto e confuso e os flashes estranhos da memórias do dia voltaram a estalar na sua mente. Abud percebeu algo, agarrou-o firme pelo braço e seguiu conduzindo-o. "Vamos Zé. Toca em frente. Não é hora de lembrar de nada." E apressaram o passo, enquanto uma garoa fina começava a cair no meio da noite escura e fria. "Zé, presta atenção. Você vai acabar apagando, vai acordar no mesmo quarto claro de sempre, vai sair do quarto e ser engolido pela luz. Quando a luz cegá-lo por completo você terá entrado no lugar onde nunca deveria ter entrado. E vai ser uma loucura, Zé. Você sabe. O trabalho, os contratos, as festas, a grana, as mulheres, aquele monte de gente em volta, puxando o saco, sorrindo sempre. Aquilo é o inferno Zé. Não aqui. Lá. É só não voltar mais cara." A voz de Abud ia se afastando enquanto os flashes de memória inundavam a mente de Zé Augusto. Ele tentava ouvi-lo, tentava concentrar-se na rua, nos passos rápidos, nas casas monótonas, na garoa, mas sentia frio e um frio cada vez mais intenso. As gotas finas da madrugada pareciam agora agulhas incandescentes, queimando e rasgando sua pela em linhas finas e profundas. E os flashes eram mais intensos e reais. E eram secos, e alegres, e festivos. E havia o sol, e as ruas eram claras e uma brisa refrescante soprava sempre. Zé sentia-se lá e as feridas causadas pela garoa eram curadas pela brisa morna da memória. E havia gente por todo lado, correndo em sua direção, festejando enquanto gritavam: "ele voltou, ele voltou."



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18 de setembro de 2013

Mais um Facamolada

Anote na agenda. Vai rolar o oitavo Sarau Facamolada, dia 28 de setembro, 20h, no Teatro Carlos Gomes de Blumenau.



16 de setembro de 2013

No inferno [05]


05.

Acordou no quarto iluminado e lembrou-se imediatamente da voz do dia anterior, e do rosto e do olhar perdidos na sua memória. Tinha que ser a mesma pessoa e haveria de estar ainda por perto. Vestiu-se, correu para luz e perdeu os sentidos. Acordou no crepúsculo e correu para fora eufórico para retomar a busca e a gritaria do dia anterior. A empolgação era tanta que nem chegou a perceber que não houve naquele fim de tarde nenhum flash de memória. Queria encontrar aquele ser e não importava absolutamente quem era o sujeito. Podia ser o diabo. Mas era preciso encontrá-lo, encará-lo, tocá-lo. Nada que ele fizesse poderia piorar a situação.

"Alô! Sou eu. Voltei. Tá por aí ainda?", Zé Augusto seguia berrando e pulando e gesticulando, correndo para o oeste. Correu e gritou até ouvir a mesma voz do dia anterior berrando de volta: "Zé? Calma velho. Tô aqui. Senta no meio da rua, numa esquina, fica berrando e não sai do lugar. Hoje eu te acho!" "Mas quem é você, porra? Tem nome? É o diabo? Gente? Demônio?" "Fica frio Zé. Você já me viu por aqui. Estou na sua cola há décadas. Se pensar bem vai me encontrar nas suas memórias." "Eu sei. Eu sei. Já te achei na minha cabeça, mas ainda não sei quem é, nem o que você quer de mim." "Negócio agora é te achar, Zé. Depois a gente conversa. Canta alguma coisa aí. Eu vou seguindo sua voz", e os gritos do sujeito estavam cada vez mais perto. Caminhou até a esquina mais próxima, sentou no chão no meio do cruzamento, lembrou do Tom Zé e começou a cantar. No início a voz saiu baixa e tímida, mas foi aos poucos ganhando força e confiança: ♪ "Menina amanhã de manhã quando a gente acordar quero te dizer que a felicidade vai desabar sobre os homens, vai desabar sobre os homens..."

Estava de olhos fechados e cantando a plenos pulmões quando sentiu a presença de alguém ao seu lado. Calou-se e permaneceu de olhos fechados por um breve momento, até sentir o toque suave de uma mão quente sobre seu ombro. Espremeu ainda mais os olhos e aguardou silente por mais um instante. "Abre os olhos, Zé." Abriu. E era ele, o homem que lhe seguiu na memória. Estranhou vê-lo agora pessoalmente, ou conscientemente. Não sabia exatamente se já haviam se falado, mas lhe parecia que não. Vasculhou a figura que ainda lhe tocava o ombro e permanecia olhando diretamente em seus olhos como quem quisesse encontrar algo do lado de dentro. Era um homem forte, mais baixo que ele, com uma barriga levemente acentuada, com pelos grossos e negros exageradamente cobrindo a pele morena. Usava uma barba ordinária, mal acabada, que descia desgovernadamente pelo pescoço até quase alcançar a clavícula. A roupa era surrada e simples. Carregava uma bolsa de lona à tiracolo. "Então... nos achamos", balbuciou Zé Augusto. "Enfim, quem é você?" "Me chame de Abud." "Certo, Abud, e você está aqui pra me ajudar ou pra me ferrar?" "Depende do que você espera de mim, Zé. Do que você tem em mente. Do que você consideraria 'ser ajudado.'" "Quero sair daqui, é óbvio. Sair do inferno. Afinal, estou no inferno, não estou?" Abud sorriu, fez uma longa pausa, deu de ombros e respondeu pausadamente: "Você está no inferno, sem dúvida. Mas o inferno não é aqui".



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12 de setembro de 2013

No inferno [04]


04.

Mais uma manhã brilhante no mesmo quarto de sempre. Vestiu-se e foi tragado pela luz. Acordou e correu para fora de casa, mas desta vez somente dois ou três flashes de memória muito rápidos fustigaram sua mente. Antes mesmo de sair da casa já estava plenamente consciente e assim que alcançou a rua, virou à direita e seguiu correndo no sentido do poente. Não chovia e sentia-se agora muito mais vivo e consciente que na noite anterior. Dessa vez virou em várias esquinas na esperança de encontrar algo diferente. Correu feito louco, olhando para todos os lados, buscando um movimento, uma cor, alguma coisa fora do padrão, mas só viu as mesmas casas de sempre. Sentou-se cansado em uma esquina qualquer.

"Que merda, Zé", falou consigo. "Vai fazer o quê nesse inferno lascado?". Estava sentado no meio fio, com os braços apoiados nos joelhos e as mãos soltas, caídas à frente. Olhava para o céu escuro e pensava no horror de uma eternidade assim. "Seria mesmo eterno o inferno?", pensou. "Deus queira que não", respondeu para si mesmo, baixinho. Vontade de chorar e ranger os dentes não faltava, mas não quis fazê-lo só de birra. "Isso não. Se depender de mim não vai ter nem um nem outro". Enquanto resmungava, as lembranças dos dias agitados lhe voltaram à mente, mas agora de forma controlada, como costumavam ser as lembranças antes do inferno. Tentou encontrar lá algo que lhe ajudasse a pensar em uma possibilidade de fuga ou coisa parecida. Fechou os olhos, levou a mão direita à testa e foi vasculhando a memória como podia. Via os ambientes, tentava procurar por algum detalhe, evocar aromas, tentar ouviras conversas, os assuntos. Lembrou de um escritório, viu contratos sendo assinados, apertos de mão confiantes e comemorações eufóricas. Havia mulheres. Detalhes de corpos, de decotes, de pernas e seios nus. Até que percebeu, enfim, um detalhe que até então lhe escapara. Nas maioria das lembranças de festas, viagens e ambientes públicos, no meio da multidão sem nome que lhe cercava sempre entre risos e piadas, havia um rosto que se repetia. Sempre nos cantos, nas beiradas, discreto, atento, observando em silencio. E não sorria. Parecia estar em vários dos locais dos quais Zé recordava. Sempre com um olhar diferente de todo resto e, em muitas situações, olhando diretamente nos seus olhos. Parecia estar armando algo, tramando alguma sacanagem, talvez para não lhe deixar mais nem lembranças coloridas. Para mergulhá-lo de uma vez por todas no quarto cinza e fedorento dos fins de tarde. "Quem é?", pensou Zé. "O miserável não tira os olhos de mim". E levantou-se indignado, inconformado, e começou a berrar o mais alto que podia: "Vem, seu filho de uma égua! Tô aqui. Porque não aparece agora? Vem que eu te arrebento seu merda!" E berrou e berrou e não pode controlar o choro. E quando chorou ficou puto porque não queria chorar. E resmungou baixo, praguejando entre lágrimas até ouvir de longe, muito longe um outro grito: "Zé? Tá aqui aonde?". "Caraca, será?" pensou, apavorado. Ergueu a cabeça e voltou a berrar. "Tô aqui porra! Sei lá. É tudo igual nesse inferno." E procurava em vão algum ponto de referência que pudesse indicar onde estava. E lá longe, muito baixo, "Continua berrando, Zé. Eu te acho!" E foi aquele berra de cá, berra de lá, mais perto e mais longe, feito brincadeira de criança, mas com o Zé apavorado. A simples hipótese de ver alguém de verdade o levava a um estado de euforia vertiginoso. Não importava mais quem era e o que queria. Berrava e pulava e corria de um lado para o outro. Desesperava-se quando a voz se distanciava: "Não! Não! Tá indo pra longe. Volta, pô. É pra cá. Tô aqui!". E berrou a noite toda até perder a voz. Até cair no sono.



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9 de setembro de 2013

No inferno [03]

03.

Mais um dia no Hades. Despertou, vestiu-se, foi engolido pela luz e piscou tonto e confuso já no quarto cinza. Saiu correndo porta afora enquanto os flashes de memória fragmentada ainda pipocavam em sua mente. E correu, tropeçou, caiu, levantou e seguiu correndo e tropeçando misturando realidade com a memória que piscava luminosa diante de seus olhos. Ora corria no cinza escuro e solitário do poente, ora nas luzes e cores fortes das lembranças e assim seguiu correndo até chocar-se violentamente contra uma parede e desabar confuso no chão gelado. Só então percebeu que chovia e fazia muito frio. Permaneceu sentado na chuva, sorvendo com calma o sangue que lhe escorria pelo nariz enquanto analisava o lugar onde estava, tentando descobrir de onde saiu e para onde poderia ir. Era um loteamento sofisticado com casas grandes, imponentes, mas muito próximas umas das outras. Não havia jardins. As casas eram alinhadas à calçada e seguiam emparelhadas, idênticas, por uma rua infinita cortada por transversais a cada cem metros. Um último suspiro de luz ainda mantinha-se no horizonte à sua esquerda. Olhou para o lado oposto e notou a escuridão engolindo tudo, parecendo derramar-se na sua direção. Não havia iluminação nenhuma na rua nem das casas. À sua frente, do outro lado da rua, a porta aberta da casa de onde saiu correndo; sua residência no inferno. Não ouviu som nenhum que não fosse da chuva, nem viu nenhum movimento que pudesse indicar a presença de mais alguém naquele loteamento fantasma. Decidiu ficar ali mesmo, deixar-se engolir pelo breu da noite, e ver o que aconteceria.

A chuva e o frio devem ter ajudado a manter Zé Augusto acordado. A escuridão engoliu o inferno todo, mas aos poucos foi se acostumando com ela. Quase pode sentir a pupila dilatar-se até que tudo ao seu redor tornou-se novamente visível. Era cinza-escuro, mas podia perceber nitidamente as formas e contornos. Sentiu-se animado, vivo, forte e ágil. A chuva já havia limpado o sangue do nariz, que parara de escorrer. Levantou-se e correu pelo meio da rua escura a toda velocidade. Sentia falta de cansar-se. Correu por horas até não aguentar mais. Não viu ninguém nem ouviu som algum. Era só a repetição de casas e quadras idênticas por quilômetros e quilômetros. Sentou-se ofegante no chão molhado para descansar um pouco, e pegou no sono.



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Deus não é um homem branco



Até o Pat Robertson?


5 de setembro de 2013

No inferno [02]

02.

Já estava ali há muito tempo. Anos, décadas ou, quem sabe, séculos. Era difícil descrever a rotina naquele inferno miserável. Amanhecia nu, confuso, mas consciente de ter de fato amanhecido. Tinha certeza que despertara e que aquilo tudo não era só um pesadelo. O quarto era branco a ponto de ofuscar-lhe os olhos. Não conseguia enxergar janela nem porta. Só a cama e uma cadeira simples onde descansava uma muda de roupa, sempre a mesma - jeans, camiseta e uma sandália de couro. Vestia-se e começava a caminhar em qualquer direção, tentando proteger os olhos da luz para encontrar a porta. A claridade aumentava até o insuportável, atravessando as mãos mesmo quando elas já cobriam completamente o rosto, e as pálpebras fechadas. No instante seguinte encontrava-se tonto, nauseado, sentado num canto escuro e úmido, onde passava a ser metralhado por flashes de instantes confusos do que parecia ser do dia que passou. Eram lembranças de multidões, risadas, copos de uísque, bares, festas, videogames, lingeries, shows e campeonatos esportivos. Não havia conexão entre cada um dos momentos nem lembrança sobre a forma como se deslocava de um lugar para outro. Entre os fragmentos de memória confusa, começava a perceber que estava novamente no mesmo quarto onde amanhecera, mas agora ele era sombrio, cinza, gelado e exalava odor forte de bolor e urina. Um sono pesado desabava sobre ele, que adormecia no chão até despertar novamente no quarto reluzente.

Aos poucos foi se familiarizando com o horror dessa nova rotina. Percebeu no entardecer sombrio que a porta do quarto ficava na parede oposta à cadeira. Nas manhãs seguintes, tentou em vão repetidas vezes correr em direção à porta na esperança de alcançar o lado de fora antes de perder a consciência. Concluiu ser inútil o esforço e decidiu aproveitar-se dos momentos de lucidez do entardecer para vagar pelas ruas do inferno na esperança de encontrar alguém ou algo que pudesse lhe dar alguma esperança de escapar dali. Faria sua primeira tentativa no dia seguinte.



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2 de setembro de 2013

No inferno [01]

01.

Ia tudo bem com Zé Augusto, até o dia em que se percebeu no inferno. E não era uma metáfora. Nunca chegou a descobrir exatamente quando ou como chegou lá. Simplesmente acordou certa manhã confuso com algum sonho estranho do qual não podia lembrar-se, com a certeza de que estava no abismo, no hades, no sheol, no mundo dos mortos. Não havia fogo nem enxofre e quem visse de longe não notaria diferença entre lá e cá. Era nas sutilezas que o inferno evidenciava-se. Aquele tipo de sutileza que o passar dos dias torna insuportável, como uma goteira insistente ribombando na calha. Pode pingar por algumas horas, talvez até algumas noites, sem ser percebida, mas no momento em que se ouve o gotejar pela primeira vez, torna-se impossível deixar de percebê-lo, até que se saia furioso em plena madrugada, no inverno, na chuva e de pijama, para arrancar a calha se for preciso, antes de enlouquecer por completo. Mas o inferno não se pode arrancar.

Desde que se dera conta de onde estava, Zé Augusto passou a tentar lembrar-se de como havia chegado lá, mas sua memória tornara-se um labirinto confuso, sem nenhum sentido. Em pouco tempo tentar lembrar-se passou a ser um tormento maior do que assumir a incapacidade de fazê-lo. Decidiu abandonar esse esforço na esperança de que as lembranças retornassem naturalmente. Desistiu de encontrar os caminhos passados e concentrou-se nos futuros. Teria de haver uma maneira de sair dali, de abandonar o inferno e, ainda que não houvesse esperança de paraíso, atirar-se ao limbo, purgatório ou seja lá o que houvesse.

O engraçado era que mesmo no inferno parecia haver momentos de alegria. Jogos, piadas, brincadeiras e gargalhadas. Tinha gente por todo lado, e todos riam quase que o tempo todo. Mas no meio da multidão parecia não haver ninguém específico. Apesar de viver cercado de muita gente, não sabia o nome de ninguém, nem nada sobre a vida de quem quer que fosse e começava mesmo a duvidar que seu próprio nome fosse José Augusto. Resolveu escrevê-lo nas paredes de casa, enquanto ainda lhe restava alguma noção de identidade. Todo fim de tarde falava para si mesmo, insistentemente, até pegar no sono:

- José Augusto Heiss, é meu nome. José Augusto Heiss...


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