19 de dezembro de 2013

A face do Deus vivo

Era noite fria e chuvosa. Estava de joelhos, cabeça baixa, tenso, no beco escuro de uma viela sombria. Encheu-se de coragem, ergueu os olhos do chão e encarou, enfim, a face do Deus vivo, que chorava. Desviou os olhos com vergonha, lamentando dolorosamente ter passado tantas vezes ao seu lado sem vê-Lo, sem estender-Lhe a mão, sem saber que estava ali, nu e coberto de chagas.

- Busquei-o em tantos templos - falou, reticente.

E o Deus vivo, tossindo e gemendo, secou as lágrimas com a manga de camisa surrada que era seu manto, tocou-lhe a face carinhosamente e sorriu.

- Eu sei, meu filho. Eu sei - sussurrou ofegante, beijando a face do peregrino com Seus lábios murchos, e o fez repousar em Seu peito.

Aos pés do Todo-poderoso o peregrino depositou humildemente um cobertor, uma térmica de café e um pão caseiro quentinho. E cearam juntos sob o coro de anjos que dançavam ao seu redor.

12 de dezembro de 2013

Se, de fato, aconteceu...


Se a encarnação aconteceu, foi o evento central na história da terra — é o evento em torno do qual toda história gira. [...] É mais fácil argumentar, no campo histórico, que a encarnação realmente ocorreu, do que mostrar, no campo filosófico, a probabilidade da sua ocorrência.

A dificuldade histórica em dar uma explicação para a vida, para os pronunciamentos e as influências de Jesus, que não seja mais dura do que a explicação cristã, é muito notável. A discrepância entre a profundidade, a sanidade e (deixe-me acrescentar) a astúcia do ensino moral de Jesus e a megalomania descontrolada que estaria por trás do seu ensino teológico se ele não fosse de fato Deus, nunca foi satisfatoriamente superada.


Surrupiado do site da Ultimato, que surrupiou do livro da Ed Ultimado, que surrupiou de algum livro de C. S. Lewis

9 de dezembro de 2013

Um Novo e Subversivo Reino

Um ramo surgirá do tronco de Jessé, 
e das suas raízes brotará um renovo.
(Isaías 11...) 

O velho profeta anunciava a chegada do menino, o ramo no tronco de Jessé, como a chegada de um novo Reino. Na boca de Isaías, o nascimento do ungido que seria chamado Emanuel - Deus conosco - era a aurora de uma revolução sem precedentes.

E o bebê que surge nos evangelhos, 600 anos depois do profeta, surge arrebentando a boca do balão. No que diz respeito à subversão (Subverter = perverter; pertubar; desordenar; corromper; sublevar; conturbar; convulsionar; tumultuar), o primogênito de Maria entra de sola. Rei nascido entre os bichos e deitado na palha dura de um cocho, em uma cidadezinha esquecida num canto da palestina, o surgimento do rebento por pouco não passou despercebido de quem quer que fosse, à exceção de umas vaquinhas e jumentos que, naquela noite, não tiveram onde comer. Os poucos afortunados que souberam do fato histórico que viria a dividir para sempre o calendário ocidental, foram gente de terceira categoria. Pastoreando ovelhas à noite, fora dos holofotes e do agito da cidade, funcionários do turno 3 ouviram anjos e foram ver o pequenino. Depois deles, José e Maria, quando levaram o guri para apresentá-lo ao Deus judeu, como mandava a tradição, foram abordados por um velhinho aposentado e uma senhora amalucada no pátio do templo. Sacerdotes, levitas e fariseus também estavam por lá, mas viram somente mais um bebê entre tantos. Aí vieram os astrólogos, observadores de estrelas, de algum canto não registrado do oriente, pagãos incircuncisos, que não eram reis coisa nenhuma, sei lá de onde tiraram isso. Depois desses, somente trinta anos depois é que surge o doido varrido do João, o primeiro vegano (veganos comeriam insetos?), berrando do meio do rio Jordão - "eis o cordeiro de Deus!". Só gente da periferia, párias distantes dos holofotes é que reconheceram naquele indivíduo o Renovo, a raiz de Jessé evocada por Isaías.

É subversão a dar com o pau. Tudo errado. Tudo fora do protocolo. Parece até provocação. O rei revolucionário que surge, surge revolucionariamente.

Ninguém à exceção dessa gente distante da oficialidade, da respeitabilidade vinda do status, dos diplomas e das indicações, conseguiu enxergar naquele Jesus, o Cristo. E porquê? Ora, os respeitáveis temem qualquer coisa que surja de outros que não seus pares. Que não seus iguais. Por isso os respeitáveis oprimem, calam e, se preciso, matam aqueles que, não sendo respeitáveis como eles, surgem clamando por justiça, igualdade e "julgando a favor dos pobres" (Is 11). Os respeitáveis, não raro, assumem a forma de lobos, leopardos, leões e cobras. O que mais temem é perder sua posição de predadores e serem forçados a deitar lado a lado com os pequeninos, com os frágeis.

O anúncio da vinda do messias é o anúncio de um sonho maravilhoso materializado no esvaziamento de Deus, na fragilização do criador, no Deus bebê deitado na manjedoura. O anúncio do fim da lógica de presa e predador como mola propulsora da humanidade.

"O lobo viverá com o cordeiro.
(...) Uma criança os guiará".


O Reino que nasce em Cristo é o reino daqueles que submetem-se a ser guiados por uma criança. Que abrem mão de um sistema que está todo ele fundamentado em predadores e presas. Que se satisfazem com a ausência das hierarquias de controle, com a fraternidade, com o irmanamento de todos. Que, sendo fortes, abrem mão de sua força e, sendo fracos, não querem uma revolução que os coloque no poder e inverta a opressão. Querem caminhar ombro a ombro, lado a lado. É o sonho de Isaías, o delírio de Mandela.

Mas isso, e aí está o ponto mais subversivo de toda essa subversão, não pode surgir por meio da força, das lutas armadas, dos gritos de guerra. É convulsão interior armada apenas com aquilo que Nietsche definiu como a maior fraqueza: o amor. Não qualquer amorzinho abobado, romântico e chorão, mas o amor de Jesus, o amor que aquele bebezinho deitado no cocho levaria às últimas consequências.

O Reino é, enfim, silenciosa e discreta semente procurando solo fértil no coração do homem, buscando aqueles que a recebam com o solo irrigado e sigam os passos do Mestre.


5 de dezembro de 2013

Santa Quitéria


Era um fim de tarde rubro. Com quatorze anos cheios, frequentava a sétima série da Escolinha Tia Paula. A camisa do uniforme da rapaziada do ginásio ostentava o nome do grêmio estudantil Victor Ferreira do Amaral, para evitar o vexame de trazer no peito adolescente o nome verdadeiro daquele colégio. Estudei lá desde o maternal e as professoras mais antigas me chamavam pelo apelido de família que hoje já virou nome.

A dona Selva não era mais a diretora e o elegante badalar do sino, acionado manualmente por uma corrente do lado de fora da torre da capela, havia sido definitivamente substituído por um ruído eletrônico vulgar.

Eu acabara de me desfazer da velha Monareta, da qual havia sacado os para-lamas e serrado o bagageiro, na tentativa de lhe dar um ar ousado de bicicross. Com ela eu havia quebrado meu pulso numa rampa da pista de terra atrás do riozinho, quando ainda fazia fisioterapia para dar mobilidade ao braço esquerdo, enrijecido pela fratura do cotovelo num jogo de futebol de rua. Agora, sem ela, teria que voltar para casa de ônibus.

O Marcelo, aluno novo, grande e forte, havia me jurado de morte por algum motivo banal que já não me recordo, e ir embora sozinho, quando soava aquele ruído eletrônico vulgar, era uma insanidade necessária e terrível. Meu irmão mais velho (e em situações como essa, um irmão mais velho assume a forma de um prodigioso herói) já migrara para o segundo grau no CEFET e o caminho da segurança do portão da Escolinha Tia Paula até o longínquo ponto de ônibus era floresta escura, deserto inclemente, assombrado, coberto com o manto terrível do silêncio.

Iniciei o percurso agarrado à minha mochila como se guardasse ali alguma arma secreta, como se abrindo o zíper pudesse mergulhar para dentro dela como o gato Félix e ressurgir à salvo no meu quarto, sentindo cheiro de pãozinho quente com manteiga. Mas era uma mochila comum abrigando livros, e o Marcelo poderia estar atrás de qualquer arbusto, de qualquer muro, de qualquer árvore, de qualquer carro estacionado. Ou pior, o miserável poderia estar no ponto de ônibus e eu jamais conseguiria entrar na segurança do Santa Quitéria a caminho de casa.

Passei por todos os arbustos, carros e muros e cheguei ao ponto de ônibus. Sentei no meio-fio aguardando a chegada da carruagem amarela que me salvaria daquela angústia e só então observei a barra escarlate que manchava o horizonte e fazia da cidade um perfil negro e plano de telhados e copas de árvores. Os pardais festejavam o fim do dia numa algazarra desgovernada e a grilarada começava a entoar os hinos secretos subliminares em seu vertiginoso roçar de pernas, enquanto uma formiga carregava silenciosa e obstinada uma graveto enorme, escalando incansavelmente a barra da calça do meu uniforme. Um vento fresco secava o suor da minha apreensão e sussurrava as cantigas de um cassete do grupo Elo e, de fato, naquele instante, me sentia tão calmo, sereno e tranquilo que quase não percebi a chegada do ônibus. Só me dei conta quando ouvi uma voz conhecida: "levanta magrelo! O ônibus chegou". Era o Marcelo que, descobri naquele dia, morava na Santa Quitéria.

2 de dezembro de 2013

Caminhando no ar

Um clássico de natal que nunca vi.
Belíssima animação, belíssima trilha, belíssima voz do menino de 9 anos (a partir dos 16'26").