30 de janeiro de 2014

Remanso

O caminho para a Comunidade Quilombola do Remanso é uma estrada tapetada de borboletas amarelas que revoam como pétalas douradas quando o carro que percorre aquela estrada de chão passa por elas. A sombra graciosa de uma mangueira imensa nos recepciona no pequeno vilarejo onde conhecemos Romário, remador do pantanal baiano que nos conduz à canoa que será nosso transporte pelas águas escuras como sua pele, como a pele de seu povo que vive ali à três gerações, e assume seu remo na popa. Cada remada de Romário equivale a cinco minhas, pelo menos. Incansável, remando como um touro, suando sob o sol forte do interior da Bahia, nos leva pelo labirinto de rio e plantas, deslizando o barco suavemente por duas horas entre a vegetação densa e exuberante do rio até o início da trilha ao Roncador, onde amarramos nosso barco.

Início da trilha até as cachoeiras do Roncador.


Na trilha encharcada, nuvens de muriçocas nos cobrem a pele fina enquanto caminhamos descalços no mato fechado com água até os joelhos. A parte alta da cachoeira é belíssima, mas o caminho que conduz à parte baixa é que guarda a visão mais vertiginosa. O mato da trilha é um túnel verde escuro que desemboca no branco brilhante dos areais do pantanal. Os mosquitos são respeitosos e reverentes e não incomodam ninguém que se afaste do mato e deleite-se nas águas tranquilas do rio, seus remansos e cachoeiras. Caminhar naquele areal é como estar em uma praia deserta e edênica de água doce e negra. À sua frente, porém, não há a linha reta do horizonte azul juntando céu e mar, mas uma cachoeira tão bela quanto violenta, que se lança rosnando e arfando pela rampa de rochas amarelas, fragmentadas e pontiagudas, e derrama com força correntes brancas e ocres de água formando brumas leves que dançam suavemente, carregadas pela correnteza do rio. Atrás, a exuberância dos muitos tons de verde da floresta intocada e acima o azul turquesa do céu.



Atravessamos o rio à nado e subimos, margeando a corrente negra, amarela e branca do Roncador até o alto de um mirante de onde contemplamos estarrecidos a imensidão atordoante daquele lugar. Meus filhos brincam e conversam mais abaixo. Ao meu lado está Romário, negro forte e quieto, discreto e arredio. Estamos sentados no chão, recostados no bloco de rocha que deita sobre nós uma sombra refrescante, ambos com os braços apoiados nos joelhos altos e mãos cruzadas à frente. Ele olha com atenção, mais uma vez, a mesma paisagem que conhece desde a infância e que eu via, admirado, pela primeira vez, e uma brisa suave sopra em nossos rostos perplexos.

- Deus é muntchu maravilhoso - balbucia Romário, sem tirar os olhos do rio e do mato, e faz uma pausa longa de silêncio respeitoso antes de suspirar fundo, fechando os olhos em reverência, e prosseguir - fez isso tudo pra nós.

É verdade, Romário, meu irmão. É verdade.

27 de janeiro de 2014

Os mais batutas - 2013


Dá pra acreditar que já percorro essa trilha há 7 anos? É o mesmo tempo que o Brad Pitt passou no Tibet. Ou o número de face que tinha o incrível Dr. Lao. Desconcertante é imaginar que já foram depositadas nesse blog quase setecentas postagens. Mas, enfim, entramos no ano 8 com a tradicionalíssima lista arbitrária e duvidosa dos melhores conteúdos de 2013.


A verdade é seda esvoaçante

A linha que tracei

A série, No Inferno

Um convite à desilusão

Luz e trevas

A trilha

Quando sentir falta

Fábulas

Viva o progresso

A páscoa

A mais mesquinha das infâmias

Ichtys da prosperidade

Almas à venda

Assombrosamente singular

Um novo e subversivo Reino

Se o início do ano está lento, com o freio de mão puxado e você se contra em um entediante marasmo de verão, ainda pode clicar aqui e acompanhar todos os mais batutas desde 2007.

22 de janeiro de 2014

O primeiro comunista


Estava sentado no lado esquerdo do sofá quando li mais um interessantíssimo, como era de se esperar, texto do Paulo Brabo sobre a política de direita e esquerda. Acontece que havia ali um inocente link que me levou até um texto incrível, no mal sentido, como era de se esperar, de Norma Braga, sobre o mesmo tema. Era também de se esperar que minha curiosidade masoquista me levasse até os comentários no rodapé de Norma. Inesperado, porém, foi encontrar ali a revelação que me desconcertou. Judas, o traidor, foi também o primeiro comunista. E isso ficou patente para aquele comentarista por ter Judas tido a pretensão de propor distribuir as riquezas advindas da venda do vaso de alabastro que uma mulher lhe despejava aos pés. Evidentemente o Cristo tratou logo de rechaçar a ideia daquele esquerdista distributivista (foi esse o termo usado no comentário - alterei para comunista no título por questões estéticas e por maldade - comunista dá mais arrepio na espinha) colocando-o no seu devido lugar.

Ironias à parte, é evidente que esse argumento é fraquíssimo e insustentável a ponto de a própria Norma, façamos jus a ela, não aceitá-lo, como ela mesma deixou claro em outro comentário no mesmo post. Mas é também evidente que argumentos fraquíssimos são usados por multidões e podem convencer incautos pegos de sopetão, chegando ao ponto de se tornarem quase uma unanimidade em determinados e desavisados grupos. Por esse motivo achei que valia a pena registrar aqui um fato pouco mencionado a respeito desse diálogo rápido entre Jesus e aquele comunistazinho traidor. Quem sabe algum desses que caiu no caldeirão da direita sem querer resolva pular para fora antes que o tempero pegue.

Segundo o relato dos evangelhos, Iscariotes, o traidor, teria ficado doido ao ver uma mulher derramando um perfume caro aos pés do mestre. Mais doido ainda ele ficou com o Mestre, que nada fez para coibir a moça. Judas então propõe ao seu Rabi e a rapaziada toda que o acompanhava que melhor seria vender o perfume e distribuir o dinheiro aos necessitados. Ao ouvir tamanha heresia, o mestre mandou a frase que está na ponta da língua de um número enorme de conservadores de direita conscientes ou não de o serem. Pois a frase de Jesus, que não duvido ser um ímã na geladeira de Olavo de Carvalho e seus seguidores, não foi nada mais do que a citação de um comprometedor texto do velho testamento.

Quando afirma, olhando no olho de Judas, que "sempre haverá pobres na terra ", Jesus está mencionando um trecho de Deuteronômio 15 à uma plateia que conhece muito bem o texto e o contexto. Ele faz referência a um pedaço de lei mosaica que todos à mesa sabiam bem qual era e o que exigia deles. Ele estava dizendo que aquele trocado arrecadado com a venda do perfume era irrisório diante da enormidade da exigência que lutar pelo fim da pobreza e por justiça social exigia. Ele está provocando-os a fazerem muito mais do que propôs o tesoureiro.

No final de cada sete anos as dívidas deverão ser canceladas. Isso deverá ser feito da seguinte forma: Todo credor cancelará o empréstimo que fez ao seu próximo. Nenhum israelita exigirá pagamento de seu próximo ou de seu parente, porque foi proclamado o tempo do Senhor para o cancelamento das dívidas.

Quer programa de distribuição de renda maior que esse? Pois o texto continua:


Assim, não deverá haver pobre algum no meio de vocês, pois na terra que o Senhor, o seu Deus, lhes está dando como herança para que dela tomem posse, ele os abençoará ricamente, contanto que obedeçam em tudo ao Senhor, ao seu Deus, e colocarem em prática toda esta lei que hoje lhes estou dando.



Ãhn? O Deus de Israel parece estar indicando que se tudo for feito conforme o figurino não haverá pobres entre eles e, portanto, se houver pobres entre eles é porque as coisas não estão andando como deviam, ou seja, alguns estão acumulando demais e outros empobrecendo. Não há aqui nenhuma referência à meritocracia, pelo contrário. A teoria do mérito prevê que quem enriquece, enriquece porque merece e, do ponto de vista teológico, merece porque obedece. O texto inverte, afirmando que se todo mundo obedecesse, ninguém enriqueceria porque tudo seria repetidamente redistribuído para o bem do coletivo.

É só depois de afirmar o que está dito acima que chegamos ao trecho citado por Jesus que, não custa lembrar, sabia muito bem o que estava dito acima.


Sempre haverá pobres na terra. Portanto, eu lhe ordeno que abra o coração para o seu irmão israelita, tanto para o pobre como para o necessitado de sua terra.


Aí está. O texto que afirma a existência eterna do pobre o faz não como quem observa um fato inevitável contra o qual não vale a pena lutar, mas como quem lamenta o fato de que nem Israel nem nós nem ninguém age como deveria agir, ao contrário, estamos todos lutando e nos devorando mutuamente na esperança de acumular um pouco mais, e conclui nos ordenando abrir o coração e deixar de lado essa antropofagia meritocrata (eu devoro você porque mereço, porque lutei pra subir uns degraus na cadeia alimentar social - se quiser me devorar faça o mesmo).

Judas, evidentemente, não foi o primeiro esquerdita distributivista da história. Antes dele houve Moisés, e Isaías, e todos os profetas e seus clamores. Depois dele vieram outros muitos, mas, infelizmente, nunca o suficiente.

20 de janeiro de 2014

13 de janeiro de 2014

Miúda e Branca



Não há mentira que se aprume
E atravesse ilesa a barra do tempo
Que permaneça em pé, impune
Dançando louca em seu tormento
Pois haverá de se expor ao lume
Do dia claro com forte vento

        [ E depois do vendaval ]

Descansará tranquilamente
Sobre os destroços, com suavidade
Uma florzinha miúda e branca
Com o doce e forte cheiro da verdade