28 de fevereiro de 2014

A lista

— Cara, mas a bíblia é muito doida. Fica falando de graça, perdão e reconciliação, de um Deus amoroso e tal. Mostra Jesus perdoando todo mundo, a torto e a direito, com aquela frase tipo, "alguém te condenou? eu também não te condeno" e essas coisas todas. Aí, do nada, aparece uma lista de condenados, gente que não pode entrar no Reino de Deus. Tem de tudo lá, mentiroso, ciumento, fofoqueiro e sei lá mais o quê. É uma loucura isso.

— O que gera tanta confusão é o histórico, meu velho. A gente tá imerso em dois mil anos de cultura cristã. O ocidente todo está. Não tem um que se escape. Dois mil anos de rituais, doutrinas, hierarquias e medos. A gente já lê a bíblia condicionado. Até ateu faz assim, porque cristianismo não é só religião, fé, crença; cristianismo é cultura ocidental. O que nos chama a atenção é o que a igreja oficial gritou do alto dos púlpitos esse tempo todo. E a mensagem oficial é política. Tem a ver com controle de massas, com jogos de poder, com grana, com vaidades de todo tipo. Os dois mil anos de discurso oficial nos tornaram cegos para o fato mais assombroso da mensagem bíblica. O que não somos mais capazes de ver é que a bíblia é toda ela subversiva. Mas é um livro inserido na história e que precisa ser lido entendendo esse vínculo profundo de cada parte dela com o tempo em que foi escrito. A lei de Moisés era um grito de justiça e igualdade atravessando a opressão das lanças e escudos da idade do bronze. Séculos depois os profetas levantam a voz relendo a lei sobre novos olhos, reinterpretando a lei e confrontando reis e sacerdotes. "Misericórdia quero e não sacrifícios", é a reformulação do grito da lei para uma nova geração. Jesus lendo Isaías na sinagoga é o novo grito, agora encarnado, agora definitivo.

— Mas a lista de condenados é posterior a Jesus.

— É verdade. Mas veja bem. A história da bíblia é a história das interpretações humanas a respeito da revelação discreta de Deus na alma confusa do homem. Primeiro Abraão, depois Moisés, depois os profetas, cada um reinterpretando e resignificando a mesma mensagem de graça, perdão, reconciliação, de um Deus amoroso, como podia, a seu tempo. Aí vem Jesus, o Emmanuel, o Deus conosco, a encarnação desse Deus que vinha sendo interpretado durante toda história. Depois de Jesus, começa tudo de novo. Novas interpretações e resignificações dessa mensagem, com a diferença que, agora, a mensagem é observável, tem carne e osso. Mas as reinterpretações prosseguem. Paulo e Tiago, por exemplo, reinterpretam-se a tal ponto que um parece contrariar o outro às vezes. Lutero queria tirar a carta de Tiago da bíblia porque ele reinterpretava e resignificava Paulo. Mas mais do que isso, Paulo reinterpreta e resignifica a si mesmo em diferentes situações. Num momento somos todos iguais e já não há judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher - coisa que é subversão ainda hoje, imagine na época - em seguida as mulheres devem se calar porque não é bom que falem em público.

— Mas e a lista?

— Não há uma lista de condenados, amigo. Pelo menos não como você imagina. Você lê como se houvesse porque lê a partir da cultura cristã de dois milênios. Para Jesus a coisa é simples. O Reino de Deus é como um rei que queria cobrar as dívidas dos seus súditos, é o que diz aquele contador de histórias. Porque, não custa lembrar, a bíblia é essencialmente um livro de histórias, e histórias tem muito mais a dizer do que doutrinas a ensinar. O Reino é como um rei que, para cobrar uma dívida, chama um súdito sabendo que o que ele deve é muito maior do que jamais poderia pagar. É o reino de um rei que vê o súdito olhar nos seus olhos desesperado porque sabe não ter como pagar, e crê que há uma pena natural para quem não paga. Mas é, acima de tudo, o reino de um rei que com voz mansa e olhar amoroso derrama graça, perdão e reconciliação sobre o devedor. Anula o débito. Já não há nada a ser pago. Assim é o Reino de Deus, é o que afirma Jesus em sua parábola. Acontece que o súdito perdoado também tem alguém que deve a ele, e a história prossegue. E do ponto de vista desse súdito, perdoar não é algo aceitável. Ele aceita o perdão, mas não perdoa. Receber é admissível, mas oferecer é ofensivo. O sujeito manda prender seu credor e executar a dívida. Mas o reino é lugar de perdão, graça, amor e reconciliação. Essa é a mensagem. É lugar de perdão e graça mútuos. Basta ao discípulo ser como o mestre é o mesmo que dizer basta ao súdito agir como o rei. A sua confusão, amigo, é entender que a lista de condenados indica gente que não pode entrar. Não é isso que indica a lista. O ambiente do Reino é perdão, graça e amor. Essa é a atmosfera, o ar que se respira nesse Reino. Esse é o reino sussurrado em toda bíblia, de capa a capa. A lista não indica quem não pode. Indica quem não quer.

6 de fevereiro de 2014

Capim-estrela

Os Gerais do Rio Preto são margeados no nascente por amplas e imponentes escarpas verticais, torres abruptas de rocha fragmentada, sulcada em linhas horizontais levemente oblíquas, e no poente por colinas suaves, delicadas e sinuosas. Toda amplidão do terreno plano que conduz a água preta do rio está coberta por um tapete verde e macio de capim. No entardecer o sol reflete em pétalas brancas e discretas criando manchas douradas que parecem flutuar sobre o capim conduzidas pelo vento fresco que carrega consigo as sombras suaves do crepúsculo. Com a luz intensa do dia banhando os gerais, é difícil perceber a poesia daquelas pétalas encabuladas. Capim-estrela. O nome já é uma canção. Um poema repleto de metáforas e significados. Capim-estrela.

O entardecer nos Gerais do Rio Preto


A vida no Vale do Paty segue ritos que há muito se perderam. A liturgia do morador do vale em seu cotidiano assemelha-se a contos antigos ou histórias de sertões remotos. No fundo do enorme vale algumas casas simples persistem girando em uma órbita diferente da urbanidade industrial e mecanizada que engoliu o mundo. As portas são baixas, algumas paredes de taipa, as telhas moldadas à mão sobre as coxas, o chão dos quartos é de terra batida, o fogão é à lenha, o banheiro fica do lado de fora, não há energia elétrica nem sinal de celular. Se quiser falar com Dona Maria, precisa caminhar até sua casa e olhar-lhe nos olhos. Dona Léia nos recebe dentro de casa e acompanhamos sua lida em torno do fogão a lenha que prepara o jantar. Sua mãe de 76 anos que mora em Guiné de Cima e nas temporadas mais agitadas sobe à pé os gerais, atravessa o campo e desce ao vale para ajudar a filha, num trecho de mais de 20km, aparece trazendo lenha. Seu irmão chega com notícias da cidade e das trilhas no vale. Há algum problema no Wilson, uma mula se machucou e é só isso que pudemos entender daquela conversa empolgada em família. Há um dialeto local, de sertão e serra, de caboclos e antigos, que nos isola daquele diálogo intenso. Quando querem que saibamos de algo, falam de forma distinta e as palavras e frases passam a fazer sentido.

Na venda da igrejinha, há 1 hora de trilha da casa de Léia, descansa uma geladeira azul bebê embrulhada em plástico bolha. Seu Antônio a trouxe nas costas de Guiné em um dia inteiro de caminhada (ela é pesada demais pras mulas, me confidencia seu Antônio). Está lacrada "esperando a placa", que é o conjunto de captação de energia solar que fará finalmente a cerveja gelar. É preciso buscá-lo na cidade, mas o kit desmontado vai caber nos cestos e será transportado no lombo das mulas, para alegria do dono da venda, penso eu, apesar de ele não reclamar de nada.

Em cima do vale, já no caminho de volta, observo longamente os gerais verdes, cobertos de capim. Capim, o símbolo daquilo que há de mais ordinário, banal, rasteiro, medíocre e comum. Um campo de capim. Então o sol desce até o horizonte e reflete nas discretas pétalas brancas deste capim, banhando os gerais de dourado. Estrela, a metáfora daquilo que é extraordinário, exótico, inusitado, singular e admirável. Capim-estrela. Caminhar nos Gerais do Rio Preto é mover-se sobre o solo santo de um poema vivo.

3 de fevereiro de 2014

Travessia

Seria um desatino cruzar aquele rio naquelas circunstâncias. O nível da água subia visivelmente e o negrume das nuvens engolia o horizonte sem sombra de saciar-se. No entanto, não havia a menor chance de voltar dali, debaixo daquela tempestade. Foram quatro dias de marcha pesada cruzando vales e selas de um relevo inclemente até chegar à margem do Khalungwa. Permanecer ali esperando o temporal dispersar seria uma possibilidade viável, se houvesse esperança de que ele fosse de fato dispersar. As notícias que vieram via rádio desde aquela manhã eram terríveis. A tempestade vinha varrendo tudo que se lhe opunha e trazendo atrás de si uma frente fria tão intensa que o número de mortos já passava das centenas. Do lado de lá, as cavernas de Rippenang mantinham a boca aberta e convidativa. Seria possível alcançá-las em pouco mais de 2 horas de passos largos e, concluímos rapidamente, era essa a única opção que tínhamos.

Em seu nível normal, o largo rio, apesar da forte correnteza, nos alcançaria somente o meio da cocha. Agora já era difícil prever. Avançando muito além do leito normal, as águas turbulentas carregavam avidamente galhos e pedras em um estrondo incessante diante de nossos olhos aterrorizados. Concluímos que seríamos inevitavelmente arrastados pela correnteza e caminhamos o máximo possível rio acima para tentar sair do outro lado perto da clareira que permanecia em nossa memória desde que cruzáramos o rio pela última vez, cinco anos atrás. Precisávamos evitar ao máximo ser arrastados muito abaixo, para encontrar a margem oposta antes da garganta rochosa que funcionaria como contrafortes de um castelo impenetrável condenando-nos à morte. Cerca de quinhentos metros nos separavam das paredes de rocha e o tempo que perdíamos subindo o rio para nos distanciarmos delas, era o tempo precioso em que o volume de água não cessava de erguer-se e esparramar-se pelas margens ampliadas desse rio esfomeado.

Abrimos as mochilas rapidamente e esvaziamos o máximo que pudemos, mantendo dentro delas somente itens de emergência uma muda de roupa seca bem embalada e alguma comida. Corremos entre tropeções e escorregadas com os olhos vagando entre o leito do rio ao lado, as nuvens negras à frente e a garganta rochosa abaixo, e já sentindo as primeiras gotas pesadas de água ferir os olhos. Budheng ia à frente e decidiu em um momento rápido que alcançara o ponto de sua travessia. "Eu vou aqui", berrou numa mistura de ousadia e horror, e virou à direita lançando-se perpendicularmente ao rio com convicção e fúria. Estanquei apavorado, acompanhando meu colega com os olhos e sem saber se ia atrás ou aguardava para acompanhar seu desempenho. A força da água que berrava em seus tornozelos derrubou-o duas vezes antes mesmo de alcançar os joelhos. Quando chegou à cintura, um galho enorme emaranhou-se à ele derrubando-o definitivamente. Ainda não estava nem perto do meio do rio. No meio da turbulência era possível ver seus braços debatendo-se freneticamente na tentativa desesperada de conduzir o corpo à margem segura a tempo. Com as ondas altas formadas pela turbulência das águas, perdi o galho e o amigo de vista. No instante seguinte me vi caminhando na direção da outra margem esforçando-me ao máximo para manter os pés firmes no solo rochoso enquanto a água tentava varrer-me com ela. Mantive os olhos firmes rio acima, tentando livrar-me dos troncos e galhos que vinham carregados pela correnteza. Um tronco fino e pesado martelou com força meu joelho e mergulhei nas águas turvas pela primeira vez. Dali em diante foram vários mergulhos, um seguido do outro, entre passos largos e tropeções. Cada tombo seguido de goles de água barrenta e açoitado pela angústia de erguer a cabeça e respirar, a agonia de firmar os pés no chão firme e lançar o corpo à frente e o desespero de ver os contrafortes de rocha aproximando-se enquanto a outra margem ainda permanecia assustadoramente distante.

Ainda consegui ver Budheng erguendo-se à salvo na margem oposta antes de afundar mais uma vez e bater violentamente a cabeça em um bloco de pedra no fundo do rio. Mal tive tempo de alegrar-me por ele. Senti somente o solavanco violento e ouvi o barulho seco do impacto. Não houve dor. No instante seguinte mão conseguia mais perceber se estava dentro ou fora da água e isso parecia não fazer nenhuma diferença. A pancada livrou-me instantaneamente de toda ansiedade e medo. Por um longo e doce momento, sentia como se estivesse flutuando na escuridão silenciosa e calma do espaço, ou nas profundezas abissais do oceano.

Cruzar o rio naquelas circunstâncias, definitivamente, fora um desatino.