28 de abril de 2015

Os mais batutas - 2014

Me peguei por algum motivo besta olhando a barra lateral deste insistente blog, que ainda acredita ter mais valor que as mídias sociais sejam quais forem, e percebi, atônito, que a relação duvidosa e arbitrária dos textos mais batutas de cada ano estava incrivelmente desfalcada do décimo quarto ano deste eletrizante século.

E já estamos em maio de 2015.

Antes que acumulem-se duas listas inócuas consecutivas, relaciono abaixo os mais interessantes rabiscos do ano que enterrou Gabriel García Marques, Ariano Suassuna, Rubem Alves, João Ubaldo Ribeiro, Manoel de Barros, mas deixou de pé o Sarney que está escrevendo outro livro.

Remanso

O primeiro comunista

A lista

Capim estrela

O universo inescapável do comum

Páscoa é quarto de adolescente

O brinde e o abraço

Coisa esquisita no ar

Amigos de montanha

A ausência do Deus presente

24 de abril de 2015

Chuck Norris e a Bíblia

Tenho um amigo bastante improvável. Já tivemos algo em comum: ambos subíamos montanhas e subimos juntos muitas delas. Mas o tempo passou, as montanhas ficaram para trás e restou-nos apenas, como fio que contém as miçangas da amizade, o passado. Tudo que diz respeito ao presente parece nos colocar em posições opostas. E meu amigo é daqueles que gosta de contrariar publicamente, expor sua opinião e desmontar os argumentos que se opõe à ela. É um lutador. Sempre foi. Desde os tempos de montanha, quando se enfiou em roubadas que sempre almejei e nunca alcancei, simplesmente porque não tenho essa gana, essa birra toda que caracteriza meu amigo.

Uma das discussões que tivemos começou com a redução da maioridade penal, projeto que lamento existir e contra o qual me posiciono com uma veemência que me é rara, e terminou com uma comparação tão comum quanto equivocada dessa lei com o Deus sanguinário que habitaria as páginas do Velho Testamento. Meu amigo sabe que sou cristão, desses que leem a Bíblia, fazem oração e se reúnem com outros para compartilhar as incertezas da fé. Ele, evidentemente, é um ateu militante. Acontece que, para defender seu argumento favorável à redução da maioridade frente a um cristão, ele apelou para um dos mais improváveis argumentos, tão improvável quanto nossa amizade: se sou crente e tenho um bíblia toda sublinhada na minha mesa de cabeceira, devo ser favorável à redução da maioridade penal, porque a bíblia (pelo menos a maior parte dela, o chamado velho testamento) seria um "livro que tem sangue no zóio" e apresentaria um "deus mais vingativo que qualquer Chuck Norris". Me parece que a infeliz bancada BBB (Bíblia, Boi e Bala) no congresso concorda com meu amigo.

"Um deus mais vingativo que qualquer Chuck Norris"

A comparação com Chuck Norris é culpa minha. Já havia usado contra ele o argumento de que a justiça que todo mundo quer foi apreendida nos filmes de ação de Hollywood. 87% da população brasileira é favorável à redução, dizem algumas pesquisas. É muito Chuck Norris, penso eu. A justiça que a imensa maioria quer fundamenta-se no roteiro base de qualquer daqueles filmes, e são milhares, em que o mocinho, no final, todo arrebentado, dispara um tiro certeiro na cabeça do vilão medonho e, no mesmo instante, somos todos inundados de profundo sentimento de alívio e paz. Justiça foi feita. Está tudo bem. Vamos dormir.

Meu amigo disse que o Deus do Velho Testamento é mais vingativo que Chuck Norris e sei que existe uma série de versículos que atestam esse pensamento. Argumentei que é preciso avaliar o texto dentro de seu contexto histórico, de como a sociedade resolvia as coisas na época em que o texto foi escrito. E foi nesse momento que chegamos no ponto mais interessante da discussão, que foi também o instante em que, covardemente, pulei fora dela. É que esse negócio de discutir em pequenos e rápidos argumentos nas áreas de comentários de facebuques e coisas afins me dá um desânimo incrível. Mas resolvi usar o espaço obsoleto desse blog para organizar meu pensamento. O argumento de meu amigo para se opor à minha defesa de que o texto deve ser analisado dentro do contexto foi: "Que deus é este que escreve um livro que era para ser um guia para as pessoas e no entanto requer que as pessoas para entendê-lo façam verdadeiros cursos? Não seria mais justo ser direto?". É realmente curioso que para entender a bíblia o interessado precise ser um doutor em teologia e saber grego e hebraico. E meu amigo está certo, caso o interesse de alguém seja entender a bíblia. É um livro complexo pra caramba, escrito por cerca de 40 autores diferentes em um período provável de 1600 anos sendo que os livros mais antigos têm entre 3 e 4 mil anos de idade. Alguém quer entender essa parada sem estudar?

"Que deus é este que escreve um livro que era para ser um guia para as pessoas e no entanto requer que as pessoas para entendê-lo façam verdadeiros cursos?"

Entretanto, a questão da qual não quero me desviar, é que existe um evidente distinção entre entender a bíblia e ser um seguidor do rabi judeu que inaugurou o que, bem posteriormente, passou a ser chamado de cristianismo. Existem, aliás, dois pontos que, apesar de amplamente utilizados, são incrivelmente falhos no argumento apresentado por meu amigo. Pelo menos do ponto de vista da fé cristã, ou seja, a fé que deriva do judeu chamado Jesus de Nazaré. Primeiro, supor que deus escreveu um livro. Segundo, que o livro foi escrito para ser um guia. O próprio conceito de 'um livro' já é um tanto equivocado, umas vez que a bíblia é uma compilação de cerca de 70 manuscritos (66 para os protestantes, 73 para os católicos), mas beleza, até dá para tratá-la como um livro feito de livros. O que não dá é para imaginar que um discípulo de Jesus é um cara chamado para seguir um livro escrito por Deus, mesmo que esse livro seja o livro que todo cristão tem (ou deveria ter) na sua mesa de cabeceira, todo gasto, anotado, sublinhado.

As religiões tem seus livros sagrados que servem de guia, sem dúvida. A Torá do judaismo, o Alcoorão do islamismo, o Vedas, o Bhagavad Gita e mais alguns do hinduísmo e assim por diante. Oficialmente a bíblia deve aparecer como livro sagrado e guia do cristianismo, mas essa é uma ideia que não passava na cabeça do sujeito que propôs essa nova e inusitada jornada de fé que cristalizou-se nisso que hoje conhecemos como cristianismo. A proposta do Cristo era ser ele nosso guia, não um livro, seja qual for. Moisés reuniu um bando de apátridas, apontou para Javé e redigiu a Torá. Maomé teve uma visão, apontou para Alá e redigiu o Alcoorão. Jesus apontou para si e não redigiu bulhufas. Não tivesse sido ele o suprassumo do amor, da humildade e de tudo aquilo que se pode ainda hoje chamar universalmente de virtude, teria de ser considerado, por aquilo que disse acerca de si, o rei do arrogantes e prepotentes ou um completo demente, mestre dos desvairados.

"A proposta do Cristo era ser ele nosso guia, não um livro, seja qual for"

Para alívio dos que não querem estudar teologia, aprender grego e hebraico e sair por aí compreendendo todos os detalhes da complexa bíblia cristã, a fé proposta pelo Cristo não exige nada disso de ninguém. "Se alguém quer vir atrás de mim, pegue sua própria cruz e me siga. Eu sou o caminho. Basta ao discípulo ser como o mestre." São palavras assim que saem da boca do rabi que ousou resumir a lei toda em uma só - a lei do amor. Seria evidentemente menos comprometedor aprender grego e hebraico do que seguir Jesus, e talvez por isso os teólogos estudem tanto ou eu mesmo faça tantas anotações nas páginas gastas da minha bíblia. Isso não é uma desculpa para parar de lê-la ou para desprezá-la, é claro. Não jogue sua bíblia fora. É um livro belíssimo e riquíssimo. Tem absolutamente tudo a ver com nossa cultura e lê-la é ler parte de sua própria história, já que todo o mundo ocidental está irredutivelmente submerso em suas páginas. Ela é repleta de sabedoria, beleza e poesia. Jamais esqueça, porém, que há sim um guia a ser seguido, mas não é um livro e sim uma pessoa. Que a Palavra de Deus não é outra senão o Verbo encarnado em Cristo. Se é terrível para você ler aquele livro todo, atenha-se a leituras e releituras simples e dedicadas das cerca de 20 páginas de um dos evangelhos. É o suficiente para transformar e comprometer sua vida inteira. "Terrível coisa é estar sozinho com o Novo Testamento", dizia Kierkegaard. Se depois quiser ir além, e eu o aconselho que vá em frente, mas filtre tudo que ler nas tramas resultantes da leitura dedicada do evangelho e não restará espaço para Chuck Norris.

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Eu lhe recomendo ler tudo que Kierkegaard tinha a dizer sobre a leitura da bíblia na parte de sua Provocação sarcasticamente intitulada Morte aos Comentaristas.

17 de abril de 2015

Alameda Vazia

A algibeira rota rebenta e esbugalha-se no solo frio da alameda vazia. A alameda é estreita mas vasta. Vasta ao infinito, contudo vazia de quem quer que seja.

Não há ninguém que possa ajudar o homem solitário a recolher os despojos que escaparam dos trapos velhos esfacelados. Nem álamos para sombreá-lo. A alameda é vasta, não há ninguém, nem álamos e o sol castiga. A pele dura e áspera do homem solitário rasga-se em sulcos profundos de dores profundas e em linhas secas de distantes risos incontidos.

Os despojos que tanto lhe custaram se dispersam agora no chão gelado e rolam ladeira abaixo, tomando cada um seu caminho como ratos afoitos escapando de predador faminto.

O homem solitário não reage, não se vira, nem com os olhos acompanha qualquer que seja o fragmento do que trazia há séculos alameda acima. Intuitivamente sabe que o esforço seria vão.

Então simplesmente congela seus movimentos no exato instante em que tudo se solta de si e toma outro rumo. Tão somente cerra os olhos e acompanha o som seco dos objetos despencando, rolando, se afastando em rumos dispersos e imprevisíveis, até ouvir novamente o silêncio absurdo da alameda vazia.

A algibeira é agora um trapo furado e sem sentido. Aquilo que carregava, e o valor todo que lhe fora atribuído durante a penosa jornada, já não há. Perdeu-se ladeira abaixo.

O homem permanece inerte por um instante que tange a eternidade, até que o silêncio rompe estridente a linha que anulava o tempo e, enfim, conforta o homem solitário, que abre os olhos, respira fundo e segue caminhando, agora mais leve.

13 de abril de 2015

Vingança, justiça e graça

Philip Yancey em "Rumores de Outro Mundo

Quando o mundo vê a graça em ação, fica em silêncio. Mandela ensinou ao mundo uma lição sobre a graça quando, após ser eleito presidente da África do Sul e depois de 27 anos de prisão, convidou seu carcereiro a juntar-se a ele no palanque de posse. Então, convidou o arcebispo Desmond Tutu para chefiar uma equipe do governo com um nome bastante imponente: Comissão da Verdade e Reconciliação. Mandela procurou neutralizar o processo natural de vingança que ele vira em tantos países, onde uma raça ou tribo oprimida toma o controle da outra.

Durante os dois anos e meio seguintes, os sul-africanos ouviram relatos de atrocidades chegando às audiências da Comissão da Verdade e Reconciliação. As regras eram simples: se um policial, ou oficial do exército, branco, enfrentasse voluntariamente seus acusadores, confessasse seu crime e reconhecesse totalmente a culpa, poderia não ser julgado e punido por aquele crime. Partidários de procedimentos mais duros reclamaram da evidente injustiça de deixar criminosos sair livres, mas Mandela insistiu que o país precisava muito mais de restauração que de justiça.

Em uma audiência, um policial chamado Van de Broek relatou um incidente no qual ele e outros policiais fuzilaram um garoto de 18 anos de idade e incendiaram seu corpo, virando-o sobre o fogo como um pedaço de churrasco a fim de destruir qualquer evidência. Oito anos mais tarde, Van de Broek voltou à mesma casa e capturou o pai do rapaz. A esposa foi forçada a assistir a tudo, enquanto policiais amarravam seu marido a uma pilha de madeira, jogavam gasolina em seu corpo e ateavam fogo.

A sala do tribunal ficou em absoluto silêncio quando a mulher, já idosa, que perdera primeiro o filho e depois o marido, teve a oportunidade de responder. O juiz perguntou: "O que a senhora deseja para o sr. Van de Broek?". Ela disse que queria que Van de Broek fosse ao lugar onde tinha queimado o marido dela e reunisse suas cinzas, de modo que ela pudesse lhe dar um funeral decente. Cabisbaixo, o policial balançou a cabeça concordando.

Então ela fez um pedido adicional: "O senhor Van de Broek tirou minha família inteira, mas ainda tenho muito amor para dar. Duas vezes por mês, gostaria que ele viesse ao gueto e passasse um dia comigo, a fim de que eu possa ser uma mãe para ele. E gostaria que o sr. Van de Broek soubesse que foi perdoado por Deus e que eu também lhe perdoo. Eu gostaria de abraçá-lo, para que ele soubesse que meu perdão é verdadeiro".

De forma espontânea, algumas pessoas na sala do tribunal começaram a cantar "Amazing Grace", enquanto a anciã se dirigia até o local das testemunhas, mas Van de Broek não conseguiu ouvir o hino. Havia desmaiado, pasmo com o que acontecera.

A justiça não foi feita naquele dia na África do Sul, nem em todo país durante os angustiantes procedimentos da Comissão da Verdade e Reconciliação. Ocorreu, sim, algo além da justiça. Paulo disse: "Não se deixem vencer pelo mal, mas vençam o mal com o bem". Nelson Mandela e Desmond Tutu compreenderam que, sempre que o mal é feito, somente uma reação pode vencê-lo. A vingança perpetua o mal. A justiça o pune. O mal só é vencido pelo bem se a parte ferida o absorve, recusando-se a permitir que siga adiante. E assim funciona a graça sobrenatural que Jesus demonstrou em sua vida e morte.



Não há nada que nos possa salvar
Nós, que merecemos morrer, precisamos de um milagre
W. H. Auden



Philip Yancey em "Rumores de Outro Mundo"

A canção "Amazing Grace" para todos os gostos:

- U2 e Soweto Choir 
- Elvis Presley 
Ray Charles 
Whitney Houston à capela
- Mahalia Jackson
- Em português na voz e violão de João Alexandre 
- A história da música

Bônus:
Trailler do belíssimo filme Amazing Grace


Especial:
Karaokê pra cantar sozinho em casa :)

9 de abril de 2015

Ponta de faca

Na ponta da faca recostou-se o peito arfante
E o fio da lâmina fria encontrou o vão dos ossos
Traçando caminho preciso até o preciso ponto
Que encerra a dor onde abriga esperança e sonho

E cravou-se a lâmina fria
E esvaiu-se do peito arfante esperança e sonho
Mas não a dor

Senhora teimosa agarrada às cortinas d'alma
Madre arpoada ao corpo do filho que foi
Quem desprega essa dona da parede de carne?
Quem liberta o bebê de seus braços vis?

O tempo - sussurra a brisa -
Haverá de trazer de volta esperança e sonho
E afastar a dor