16 de setembro de 2013

No inferno [05]


05.

Acordou no quarto iluminado e lembrou-se imediatamente da voz do dia anterior, e do rosto e do olhar perdidos na sua memória. Tinha que ser a mesma pessoa e haveria de estar ainda por perto. Vestiu-se, correu para luz e perdeu os sentidos. Acordou no crepúsculo e correu para fora eufórico para retomar a busca e a gritaria do dia anterior. A empolgação era tanta que nem chegou a perceber que não houve naquele fim de tarde nenhum flash de memória. Queria encontrar aquele ser e não importava absolutamente quem era o sujeito. Podia ser o diabo. Mas era preciso encontrá-lo, encará-lo, tocá-lo. Nada que ele fizesse poderia piorar a situação.

"Alô! Sou eu. Voltei. Tá por aí ainda?", Zé Augusto seguia berrando e pulando e gesticulando, correndo para o oeste. Correu e gritou até ouvir a mesma voz do dia anterior berrando de volta: "Zé? Calma velho. Tô aqui. Senta no meio da rua, numa esquina, fica berrando e não sai do lugar. Hoje eu te acho!" "Mas quem é você, porra? Tem nome? É o diabo? Gente? Demônio?" "Fica frio Zé. Você já me viu por aqui. Estou na sua cola há décadas. Se pensar bem vai me encontrar nas suas memórias." "Eu sei. Eu sei. Já te achei na minha cabeça, mas ainda não sei quem é, nem o que você quer de mim." "Negócio agora é te achar, Zé. Depois a gente conversa. Canta alguma coisa aí. Eu vou seguindo sua voz", e os gritos do sujeito estavam cada vez mais perto. Caminhou até a esquina mais próxima, sentou no chão no meio do cruzamento, lembrou do Tom Zé e começou a cantar. No início a voz saiu baixa e tímida, mas foi aos poucos ganhando força e confiança: ♪ "Menina amanhã de manhã quando a gente acordar quero te dizer que a felicidade vai desabar sobre os homens, vai desabar sobre os homens..."

Estava de olhos fechados e cantando a plenos pulmões quando sentiu a presença de alguém ao seu lado. Calou-se e permaneceu de olhos fechados por um breve momento, até sentir o toque suave de uma mão quente sobre seu ombro. Espremeu ainda mais os olhos e aguardou silente por mais um instante. "Abre os olhos, Zé." Abriu. E era ele, o homem que lhe seguiu na memória. Estranhou vê-lo agora pessoalmente, ou conscientemente. Não sabia exatamente se já haviam se falado, mas lhe parecia que não. Vasculhou a figura que ainda lhe tocava o ombro e permanecia olhando diretamente em seus olhos como quem quisesse encontrar algo do lado de dentro. Era um homem forte, mais baixo que ele, com uma barriga levemente acentuada, com pelos grossos e negros exageradamente cobrindo a pele morena. Usava uma barba ordinária, mal acabada, que descia desgovernadamente pelo pescoço até quase alcançar a clavícula. A roupa era surrada e simples. Carregava uma bolsa de lona à tiracolo. "Então... nos achamos", balbuciou Zé Augusto. "Enfim, quem é você?" "Me chame de Abud." "Certo, Abud, e você está aqui pra me ajudar ou pra me ferrar?" "Depende do que você espera de mim, Zé. Do que você tem em mente. Do que você consideraria 'ser ajudado.'" "Quero sair daqui, é óbvio. Sair do inferno. Afinal, estou no inferno, não estou?" Abud sorriu, fez uma longa pausa, deu de ombros e respondeu pausadamente: "Você está no inferno, sem dúvida. Mas o inferno não é aqui".



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Continua...

Acompanhe a série:
No inferno | 01
No inferno | 02
No inferno | 03
No inferno | 04
No inferno | 05
No inferno | 06

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