5 de fevereiro de 2023

Oração ao Eterno


Para ler e/ou ouvir.


Comove ouvir as ondas lambendo as areias
Céu branco da madrugada azulando imponente
O sol sorrateiro espiando o acordar da praia
Que descuidada e lenta espreguiça inocente

Chegou mais um dia
Gritou alguém
Amanhã mais um
Depois também

Porquê ainda comove a eterna rotina?
Que mistério é esse do encantamento?
O que haverá por trás do cotidiano
Que arranca beleza de dentro do eterno momento?

Não sei o que há
Gritou alguém
Mas é certo que há
Eu sei também 

Se a onda, a areia e o sol são sempre os mesmos
Se é azul, todo azul, sempre azul o céu que tu vês
Se a praia desperta de novo repetidamente
Porquê comove-nos tanto ver tudo outra vez?

É a saudade
Gritou alguém
Do instante perfeito
Que nos contém 

E o que nos revela a beleza daquele momento
É que o instante perfeito corrompe a dureza do tempo
Perfeita mistura do dia passado e presente
Converte em beleza aquilo que foi sofrimento

Me revela
Gritou alguém
Tamanha beleza
A mim também 

Se insisto (e insistimos todos) diariamente
Em rever, reviver, renascer, fazer tudo de novo
E se no exercício diário do refazimento
Encontramos de novo e de novo o encantamento

É que cremos
Gritou alguém
Que o instante é eterno
Pra sempre, amém

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Escrito na areia da praia de Cabeçudas, em janeiro de 2023. Era 6h da manhã, um homem chegou ao meu lado, olhou o sol nascendo e disse: chegou mais um dia!

23 de dezembro de 2022

Natal e o sumiço de Deus

 

Montagem sobre A Adoração dos Pastores - Matthias Stom | Google Arts

Não é raro que o religioso mais devoto viva na expectativa de um Deus pronto para intervir a seu favor. Ou a favor da humanidade, no caso raro de um religioso mais altruísta. A expectativa, no entanto, opõe-se à revelação de Deus no livro base da fé cristã. Já no Antigo Testamento as aparições divinas são raras exceções, ao contrário do que possa parecer. As poucas páginas que separam uma e outra das incríveis histórias do Deus que vira do avesso o destino do povo de Israel escondem, na verdade, séculos de silêncio sepulcral. As aparições do Yaweh de Israel são respingos de Deus no asfalto quente da história. Mas são respingos de um Deus todo-poderoso, onipresente, onipotente, onisciente. O típico Deusacimadetodos professado por tantos nos últimos anos. Respingos no asfalto quente, mas respingos poderosos.

Mas aí vem o Novo Testamento e o Deusacimadetodos abre mão de si e seu poder e se lança no mundo nascendo na frágil figura de um bebê, e um bebê pobre, simples e periférico. Inconsequente e irresponsavelmente Deusacimadetodos abre mão de tudo e voluntariamente se limita por espaço e tempo, lançando-se de cabeça na história. Um menino nos nasceu, e esse menino é Deus, e Deus não está mais acima de todos mas no meio de nós ou, mais precisamente, entre os bichos de um estábulo esquecido de um canto irrelevante do mundo. Deus no meio de nós, limitado por espaço e tempo.

Mas esse é ainda somente o primeiro passo do projeto divino do sumiço do Eterno. 

Quando tudo já parece suficientemente improvável e perigoso, acontece algo ainda maior, uma nova e perigosíssima revelação do Eterno que não é nem o Deus crucificado nem o Deus ressurreto, mas o vertiginoso Deus disperso, o espírito do Eterno dentro de cada um de nós. A viagem do Todo-poderoso é a viagem não só da fragilização, mas do sumiço, da diluição completa, da dissolução imprudentemente irreversível. É Deus escondido em nós. O que o religioso devoto parece ainda não ter entendido, é que quando Deus decide diluir-se em nós, decide também agir através de nós. Verdadeiramente surpreendente nessa história toda, é que Ele parece ter confiado em nós. Percebeu que estávamos prontos e sussurrou em nossos ouvidos: “Vocês conseguem. Agora é com vocês”.

Ah, Deus disperso, ajuda-me a crer em mim como você crê, a vê-lo em mim como você me vê em ti. Para que eu seja aqui, aquilo que você é.



Veja também: A moita onde Deus se esconde.

20 de outubro de 2022

Você tem medo de quê?


É fácil de perceber e difícil de admitir a onda de medo que assombra o cristão sincero e penitente nos últimos anos. Fácil de perceber porque escancarado na boca e no gestual de uma multidão deles. Desde o surgimento da mamadeira de piroca os medos não param de se amontoar ao redor do crente devoto. Difícil de admitir porque João, o discípulo amado, já nos havia revelado que “o perfeito amor lança fora todo medo”

O leitor crente que possa vir a ter acesso a esse texto deve lembrar-se do dia em que conheceu Jesus de Nazaré, não o personagem da historinha ou da cultura ocidental, mas o Filho do Deus vivo. Creio que a sensação poderia ser descrita como a de uma criança pequena, perdida num Shopping Center, apavorada no caos entre as tantas pernas desconhecidas, que é subitamente encontrada pelo pai (ou mãe) que a agarra em seu braços e aninha no colo. Alcançado pelo amor perfeito, o medo todo vai pro beleléu. Foi assim que tudo começou na vida de um enorme número de cristãos. Mas, infelizmente, não é assim que prossegue.

Jesus disse que veio inaugurar um novo Reino. O reino da Graça veio nos salvar de um outro reino - o da Lei. O reino da graça só existe no ambiente do amor. O da Lei no ambiente do medo. No amor não há medo assim como na graça não há lei (ou há uma só lei - a do amor). E eu me pergunto o que leva o cristão comum a abandonar a experiência redentora do amor para afogar-se  no lago lamacento do medo? Pois não é isso que estamos vendo acontecer em velocidade e intensidade aterradores?

Graça e amor são libertadores porque nos fazem livres. Mas liberdade é coisa com a qual não nos acostumamos facilmente. O passo seguinte à redenção pela Graça é a crise de abstinência de Lei. A solução pra crise é um retorno lento e gradual para o ambiente do medo a partir da manipulação religiosa da Lei da qual havíamos sido libertos. Ou, mais recentemente, a manipulação política. Porque o horror é que o grupo político que nos governa hoje percebeu essa crise de abstinência e passou a disseminar todo tipo de medo bizarro para cooptar para si os fiéis em processo de migração da graça pra lei, do amor pro medo. Estamos há anos debaixo de uma terrível avalanche de mentiras. Uma fábrica de fantasmas. Esse é o ponto a que chegamos: o que move o crente não é o amor que sonha alimentar famintos, cuidar de doentes, vestir nus, acolher estrangeiros, visitar prisioneiros (Mt 25), mas o medo do comunismo, do gay, do banheiro coletivo, da mamadeira de piroca, do aborto, da perversão, do ataque à família. 

A manipulação do medo não é novidade. É promovida pela religião desde que religião houve. E também pela política. Mas acredito que desde o nazi-fascismo essa coisa não acontecia de forma tão descarada e eficiente. O medo é um poder devastador. Quem está apavorado faz qualquer coisa. E é isso que estamos vivendo. Parentes e amigos babando ódio e violência, berrando impropérios, defendendo horrores, fazendo vista grossa para desumanidades, desejando o extermínio do outro, do diferente, armando-se até os dentes, aceitando com naturalidade a devastação de povos e florestas. Tudo fruto do medo. Medo de fantasmas criados pra manipular.

Será ainda preciso um grande esforço pra desfazer esse estrago. Mas o caminho a ser percorrido nesse esforço de reconversão já está escrito: 

“Meus queridos amigos, não creiam em tudo que ouvem. Examinem cuidadosamente o que os outros dizem. Nem todo mundo que fala de Deus vem de Deus. Há muitos pregadores mentirosos mundo afora. (...) Deus é amor. Quando passamos a habitar plenamente no amor, vivendo uma vida de amor, vivemos em Deus e Deus vive em nós. Assim o amor tem o controle da casa, fica à vontade e amadurece em nós (...) e não há mais espaço para o medo. Pois o perfeito amor expulsa o medo” (1 Jo 4).

Por hora é preciso seguir firme na luta e na certeza de que o amor vencerá o medo. Porque o amor sempre vence.


Imagem: Dante e Virgilio
William-Adolphe Bouguereau - 1850
Google Arts

5 de outubro de 2022

Valores Cristãos




A força da batida insistente na porta me assustou. Abri uma fresta e perguntei quem era. Um homem grande, marombado, de camisa social, calça jeans e sapatênis respondeu “meu nome é Valores Cristãos”, forçou a porta me jogando pra trás e entrou. Eu tentava, assustado, me recompor e entender o que tava rolando, mas antes que pensasse em qualquer coisa ele emendou, deixando o corpo pesado desabar no sofá:

— Soube que vc tá precisando urgente de mim. Pelas coisas que você tem dito, pelas pessoas que tem apoiado, houve um consenso geral de que vc tá precisando muito de mim.

— Sério? Rapaz, não tinha sentido falta não. Achei que a gente tava junto.

O cara endireitou a coluna, sentou na ponta do sofá, acendeu um cigarro sem tirar o olho dos meus olhos e falou com firmeza.

— Você? Junto com Valores Cristãos? Tu tá comunista, velho, que eu fiquei sabendo.

— Eita, vc fuma? — perguntei, confuso.

— Depende.

— Depende de quê?

— Do tempo, do espaço, da cultura. Já fumei muito. Até meados do século 20 fumei um monte. Depois começou a pegar mal e parei. Mas hoje, aqui, tem ninguém vendo, deu vontade.

— Mas que doidêra. Valores Cristãos não é o mesmo desde a fundação dos tempos?

— Hahaha. Óbvio que não. Tem época que não deixo ter cabelo comprido, depois só pode cabelo comprido, barba não pode, depois é obrigado, uma hora só vestido, depois pode calça, depila, não depila, joga não joga futebol, cinema pode e não pode. Teve uma época que eu dizia que a terra era o centro do universo, quem discordasse mandava queimar na fogueira. Era engraçado. Pessoal berrando enquanto o corpo ardia. Depois proibi dizer que a terra tinha bilhões de anos, evolução das espécies, essas coisas. A terra foi criada em sete dias, eu gritava. Nesse tempo já não dava pra queimar na fogueira, mas chamava de herege, excomungava, essas coisas.

— Que horror.

— Também acho. Um horror discordar de mim. Ah! Lembrei de uma boa. Todo mundo batizava bebê, daí apareceram uma chatos dizendo que só podia batizar adulto. Sabe o que fiz? Mandei afogar os caras. Em vez de fogueira, mandava matar afogado, pra aprender a não me contradizer. Criativo, né?

— Jesus…

— Quem? Bom, também não interessa. Tamos aqui pra falar de você. Você tá comunista cara. Dizem que até falou mal da Damares. E defende os gays, as feministas. Endoideceu.

— Mas, cara, que loucura. Cada hora vc é de um jeito.

— Na real eu sou de todo jeito ao mesmo tempo, sacou? Depende. Pra uns eu digo que não pode comer carne de porco ou fazer transfusão de sangue. Pra outros eu digo que isso pode, mas não pode pular carnaval ou fumar, ou beber uma cervejinha. Vou vendo o que cola com cada um e me ajeitando. Mas a grande sacada mesmo é criar uns monstros grandes e juntar todos os grupos em torno dos monstrões. O que emplacou bem atualmente é comunismo, gayzismo, feminismo, essas coisas.

— Mas, velho, isso não tem nada a ver com nada. Jesus ensinou amor, perdão, igualdade, fim de todas as diferenças e hierarquias. Ele disse pra não julgar ninguém, pra considerar o outro superior a si mesmo e…

— Ah, Jesus! Lembrei do maluco. O cara era meio comunista também.— Valores Cristãos falava olhando pra cima, num ponto qualquer do infinito, puxando da memória, enquando o cigarro ia queimando na mão apoiada sobre a coxa —  A gente conversou bastante, tentei explicar pra ele como funcionam as coisas aqui, mas o cara é birrento, cheio de sonhos, utopias. Fiquei 40 dias com ele no deserto e não aprendeu nada. Ele ainda anda por aí, mas tem pouca gente ao redor dele. A multidão mesmo anda comigo.

“É o que vc pensa”, balbuciei baixinho.

2 de setembro de 2022

Engolindo o Caroço


Eu já tinha escalado uns 30 metros sem achar a primeira proteção. Fiz uma ou duas costuras em chumaços de taquaras enraizadas na parede vertical de granito. Agora havia encontrado um pequeno platô onde podia sentar. Montei uma parada de três pontos numas taquaras. Meu irmão subiu e decidimos procurar mais uns metros acima, dessa vez o Tato na ponta da corda. Mas a coisa ficou cabulosa demais. Já tínhamos, há muito, passado do ponto. O Tato desescalou até o platô, rapelamos nas taquaras pro chão e abandonamos a parede. Estávamos, soubemos depois, no lugar errado. A via Caroço da Esfinge ficava bem mais a esquerda.

Agora, depois de 28 anos, fazíamos o mesmo trajeto, dessa vez munidos de caprichadíssimos croquis de trilha e via. Na primeira tentativa, levávamos um rabisco feito por um amigo, de memória, num guardanapo de papel.

O mundo gira. A coisa agora não é mais tão mambembe quanto já foi. E nós ganhamos um pouco mais de bom senso junto com os cabelos brancos.

Ainda assim, nem tudo são flores. Apesar de uma escalada sem grandes percalços, nos perdemos no tempo. Coletamos algumas informações que nos levaram a prever umas 5h escalando. Escalamos 9h. A noite caiu e os rapeis tiveram que ser feitos de noite. Minha lanterna, a mesma que levei 28 anos atrás (mas com pilhas novas!), encerrou sua carreira no final do segundo rapel. Dali pra frente fiquei no escuro. Mas o Tato ia na frente e montava a parada. Eu só precisava descer na direção da luz da cabeça dele lá em baixo.

Confesso que o nível da canseira foi gigante. Descemos a Noroeste nos arrastando. Mas chegamos na base 16h depois da partida. 11h na parede, entre subir e descer. 5h na trilha, levando em conta uns 40min perdidos na base da Esfinge antes de começar a via.

Engolimos o Caroço que há 28 anos tava engasgado na garganta.

PS1: Deixo aqui registrada minha eterna gratidão à boa alma que deixou presas fitas refletivas nas paradas de rapel. Esse cara merece um beijo.

PS2: Esse texto merecia ser mais poético, porque fazer essa via 28 anos depois junto com meu parceiro, amigo e irmão foi pura poesia. ♥️

PS3: A história original da Caroço tá no meu livro que vc acha no site da @editoragrafar 😉