5 de fevereiro de 2023
Oração ao Eterno
23 de dezembro de 2022
Natal e o sumiço de Deus
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Montagem sobre A Adoração dos Pastores - Matthias Stom | Google Arts |
Não é raro que o religioso mais devoto viva na expectativa de um Deus pronto para intervir a seu favor. Ou a favor da humanidade, no caso raro de um religioso mais altruísta. A expectativa, no entanto, opõe-se à revelação de Deus no livro base da fé cristã. Já no Antigo Testamento as aparições divinas são raras exceções, ao contrário do que possa parecer. As poucas páginas que separam uma e outra das incríveis histórias do Deus que vira do avesso o destino do povo de Israel escondem, na verdade, séculos de silêncio sepulcral. As aparições do Yaweh de Israel são respingos de Deus no asfalto quente da história. Mas são respingos de um Deus todo-poderoso, onipresente, onipotente, onisciente. O típico Deusacimadetodos professado por tantos nos últimos anos. Respingos no asfalto quente, mas respingos poderosos.
Mas aí vem o Novo Testamento e o Deusacimadetodos abre mão de si e seu poder e se lança no mundo nascendo na frágil figura de um bebê, e um bebê pobre, simples e periférico. Inconsequente e irresponsavelmente Deusacimadetodos abre mão de tudo e voluntariamente se limita por espaço e tempo, lançando-se de cabeça na história. Um menino nos nasceu, e esse menino é Deus, e Deus não está mais acima de todos mas no meio de nós ou, mais precisamente, entre os bichos de um estábulo esquecido de um canto irrelevante do mundo. Deus no meio de nós, limitado por espaço e tempo.
Mas esse é ainda somente o primeiro passo do projeto divino do sumiço do Eterno.
Quando tudo já parece suficientemente improvável e perigoso, acontece algo ainda maior, uma nova e perigosíssima revelação do Eterno que não é nem o Deus crucificado nem o Deus ressurreto, mas o vertiginoso Deus disperso, o espírito do Eterno dentro de cada um de nós. A viagem do Todo-poderoso é a viagem não só da fragilização, mas do sumiço, da diluição completa, da dissolução imprudentemente irreversível. É Deus escondido em nós. O que o religioso devoto parece ainda não ter entendido, é que quando Deus decide diluir-se em nós, decide também agir através de nós. Verdadeiramente surpreendente nessa história toda, é que Ele parece ter confiado em nós. Percebeu que estávamos prontos e sussurrou em nossos ouvidos: “Vocês conseguem. Agora é com vocês”.
Ah, Deus disperso, ajuda-me a crer em mim como você crê, a vê-lo em mim como você me vê em ti. Para que eu seja aqui, aquilo que você é.
Veja também: A moita onde Deus se esconde.
20 de outubro de 2022
Você tem medo de quê?
É fácil de perceber e difícil de admitir a onda de medo que assombra o cristão sincero e penitente nos últimos anos. Fácil de perceber porque escancarado na boca e no gestual de uma multidão deles. Desde o surgimento da mamadeira de piroca os medos não param de se amontoar ao redor do crente devoto. Difícil de admitir porque João, o discípulo amado, já nos havia revelado que “o perfeito amor lança fora todo medo”.
Jesus disse que veio inaugurar um novo Reino. O reino da Graça veio nos salvar de um outro reino - o da Lei. O reino da graça só existe no ambiente do amor. O da Lei no ambiente do medo. No amor não há medo assim como na graça não há lei (ou há uma só lei - a do amor). E eu me pergunto o que leva o cristão comum a abandonar a experiência redentora do amor para afogar-se no lago lamacento do medo? Pois não é isso que estamos vendo acontecer em velocidade e intensidade aterradores?
Graça e amor são libertadores porque nos fazem livres. Mas liberdade é coisa com a qual não nos acostumamos facilmente. O passo seguinte à redenção pela Graça é a crise de abstinência de Lei. A solução pra crise é um retorno lento e gradual para o ambiente do medo a partir da manipulação religiosa da Lei da qual havíamos sido libertos. Ou, mais recentemente, a manipulação política. Porque o horror é que o grupo político que nos governa hoje percebeu essa crise de abstinência e passou a disseminar todo tipo de medo bizarro para cooptar para si os fiéis em processo de migração da graça pra lei, do amor pro medo. Estamos há anos debaixo de uma terrível avalanche de mentiras. Uma fábrica de fantasmas. Esse é o ponto a que chegamos: o que move o crente não é o amor que sonha alimentar famintos, cuidar de doentes, vestir nus, acolher estrangeiros, visitar prisioneiros (Mt 25), mas o medo do comunismo, do gay, do banheiro coletivo, da mamadeira de piroca, do aborto, da perversão, do ataque à família.
A manipulação do medo não é novidade. É promovida pela religião desde que religião houve. E também pela política. Mas acredito que desde o nazi-fascismo essa coisa não acontecia de forma tão descarada e eficiente. O medo é um poder devastador. Quem está apavorado faz qualquer coisa. E é isso que estamos vivendo. Parentes e amigos babando ódio e violência, berrando impropérios, defendendo horrores, fazendo vista grossa para desumanidades, desejando o extermínio do outro, do diferente, armando-se até os dentes, aceitando com naturalidade a devastação de povos e florestas. Tudo fruto do medo. Medo de fantasmas criados pra manipular.
Será ainda preciso um grande esforço pra desfazer esse estrago. Mas o caminho a ser percorrido nesse esforço de reconversão já está escrito:
“Meus queridos amigos, não creiam em tudo que ouvem. Examinem cuidadosamente o que os outros dizem. Nem todo mundo que fala de Deus vem de Deus. Há muitos pregadores mentirosos mundo afora. (...) Deus é amor. Quando passamos a habitar plenamente no amor, vivendo uma vida de amor, vivemos em Deus e Deus vive em nós. Assim o amor tem o controle da casa, fica à vontade e amadurece em nós (...) e não há mais espaço para o medo. Pois o perfeito amor expulsa o medo” (1 Jo 4).
Por hora é preciso seguir firme na luta e na certeza de que o amor vencerá o medo. Porque o amor sempre vence.
Imagem: Dante e Virgilio
William-Adolphe Bouguereau - 1850
Google Arts
5 de outubro de 2022
Valores Cristãos
2 de setembro de 2022
Engolindo o Caroço
Eu já tinha escalado uns 30 metros sem achar a primeira proteção. Fiz uma ou duas costuras em chumaços de taquaras enraizadas na parede vertical de granito. Agora havia encontrado um pequeno platô onde podia sentar. Montei uma parada de três pontos numas taquaras. Meu irmão subiu e decidimos procurar mais uns metros acima, dessa vez o Tato na ponta da corda. Mas a coisa ficou cabulosa demais. Já tínhamos, há muito, passado do ponto. O Tato desescalou até o platô, rapelamos nas taquaras pro chão e abandonamos a parede. Estávamos, soubemos depois, no lugar errado. A via Caroço da Esfinge ficava bem mais a esquerda.
Agora, depois de 28 anos, fazíamos o mesmo trajeto, dessa vez munidos de caprichadíssimos croquis de trilha e via. Na primeira tentativa, levávamos um rabisco feito por um amigo, de memória, num guardanapo de papel.
O mundo gira. A coisa agora não é mais tão mambembe quanto já foi. E nós ganhamos um pouco mais de bom senso junto com os cabelos brancos.
Ainda assim, nem tudo são flores. Apesar de uma escalada sem grandes percalços, nos perdemos no tempo. Coletamos algumas informações que nos levaram a prever umas 5h escalando. Escalamos 9h. A noite caiu e os rapeis tiveram que ser feitos de noite. Minha lanterna, a mesma que levei 28 anos atrás (mas com pilhas novas!), encerrou sua carreira no final do segundo rapel. Dali pra frente fiquei no escuro. Mas o Tato ia na frente e montava a parada. Eu só precisava descer na direção da luz da cabeça dele lá em baixo.
Confesso que o nível da canseira foi gigante. Descemos a Noroeste nos arrastando. Mas chegamos na base 16h depois da partida. 11h na parede, entre subir e descer. 5h na trilha, levando em conta uns 40min perdidos na base da Esfinge antes de começar a via.
Engolimos o Caroço que há 28 anos tava engasgado na garganta.
PS1: Deixo aqui registrada minha eterna gratidão à boa alma que deixou presas fitas refletivas nas paradas de rapel. Esse cara merece um beijo.
PS2: Esse texto merecia ser mais poético, porque fazer essa via 28 anos depois junto com meu parceiro, amigo e irmão foi pura poesia. ♥️
PS3: A história original da Caroço tá no meu livro que vc acha no site da @editoragrafar 😉