8 de julho de 2024

Walden | Thoreau

Foto: www.chirpbooks.com


Em 2022, na rebarba final da pandemia, li Walden junto com a rapaziada do saudoso clube do livro que existiu e resistiu durante alguns anos aqui na cidade. Fiquei tocado, de capa a capa. Diz muito sobre meu eu profundo, que ainda arfeja sob os entulhos acumulados do cotidiano capitalista que nos engole sem dó. Hoje fui lembrado do livro pela mulher que amo. Corri para reler minas notas e fui novamente esbofeteado pelo espanto original. Achei interessante publicar aqui, nesse lugar onde ninguém mais habita, mas que ainda alimento com sobras para não deixar morrer.

Walden - A vida nos bosques
H. D. Thoreau

A maioria dos luxos e muitos dos chamados confortos da vida não apenas são dispensáveis como são, com efeito, obstáculos à elevação. Com relação a luxo e conforto, o sábio sempre viveu uma vida mais simples e frugal que o pobre. Os filósofos antigos, chineses, hindus, persas e gregos eram uma classe como não havia outra tão pobre em riquezas exteriores, nem tão rica em riquezas interiores. Não sabemos muito sobre eles. E notável que nós saibamos tanto sobre eles quanto sabemos. O mesmo é verdade para os reformadores e benfeitores mais modernos de suas raças. Ninguém pode ser um observador imparcial ou sábio da vida humana fora do terreno privilegiado do que nós deveríamos chamar de pobreza voluntária. De uma vida de luxos, o fruto é luxo, seja na agricultura, no comércio, na literatura ou na arte. (p18)


Não faz muito tempo, um índio andarilho foi vender cestos na casa de um conhecido advogado da minha região. "Quer comprar alguns cestos?", ele perguntou. "Não, não queremos nenhum cesto", foi a resposta. "Como assim!", exclamou o índio ao sair pelo portão, "quer que a gente morra de fome?". Vendo que seus industriosos vizinhos brancos estavam bem de vida e que o advogado só precisava tecer argumentos e, como por mágica, conquistava riqueza e posição, ele havia pensado: vou fazer negócio - faço uns cestos, é uma coisa que sei fazer. Pensou que, depois que os cestos estivessem prontos, sua parte estaria feita, e caberia ao branco comprá-los. Ele ainda não tinha descoberto que era necessário fazer que comprar seus cestos valesse a pena para o outro, ou pelo menos fazer que o outro assim pensasse, ou fazer alguma outra coisa que o outro julgasse valer a pena comprar. Também teci uma espécie de cesto de delicada tessitura. mas não consegui convencer alguém de que valia a pena comprá-lo. E, não obstante, no meu caso, julguei que valia a pena tecê-los, e em vez de estudar como fazer para que os outros homens julgassem que valia a pena comprá-los, preferi estudar como evitar a necessidade de vendê-los. O tipo de vida que os homens apreciam e admiram como bem-sucedida é um só. Por que exaltar um único tipo de vida em detrimento dos outros todos? (p22)


Cuidado com qualquer empreitada que exija roupas novas e não um novo homem dentro das roupas. (p26)


Toda geração ri das modas antigas, mas segue religiosamente as atuais. (p28)


No estado selvagem cada família possui um abrigo da melhor qualidade possível, e suficiente para suas necessidades mais primitivas e simples, mas creio que falo com fundamento quando digo que, embora as aves no céu tenham seus ninhos, e as raposas suas tocas, e os selvagens suas wigwams, na sociedade civilizada moderna menos da metade das famílias possui casa própria. Nos grandes centros e cidades, onde a civilização predomina especialmente, o número de pessoas com casa própria é uma fração muito pequena do total. O resto paga todos os anos uma taxa por esse traje externo a tudo, que se torna indispensável no verão e no inverno, cujo valor daria para comprar toda uma aldeia de tendas indígenas, mas que agora ajuda a manter o cidadão pobre pelo resto da vida. Não pretendo aqui insistir na desvantagem de ser inquilino em comparação a ser proprietário, mas é evidente que o selvagem é dono de seu próprio abrigo porque custa muito barato, enquanto o civilizado aluga em geral porque não tem o suficiente para comprar; nem, no longo prazo, para alugar nada melhor. (...) E quando o agricultor se torna proprietário de sua casa, talvez não se torne mais rico, porém mais pobre, e talvez a casa é quem seja sua proprietária. (p32-34)


Essa é a lei universal... fazer uma ferrovia ao redor do globo acessível a toda humanidade é o equivalente a aplainar toda a superfície do planeta. Os homens tem uma noção instintiva de que se continuarem com essas ações, de bolsas e pás, por tempo suficiente, acabarão chegando a algum lugar, quase na mesma hora, quase de graça; mas, embora uma multidão se aproxime da estação e o condutor grite "Todos a bordo!", quando a fumaça é soprada e o vapor condensado, acabarão percebendo que alguns estão acomodados, mas o resto está sendo atropelado - e isso se chamará, e será, "um acidente melancólico". Sem dúvida, poderão partir enfim aqueles que pagaram passagem, isto é, se sobreviverem até lá, mas provavelmente já terão perdido a elasticidade e o desejo de viajar nessa altura da vida. O desperdício da melhor parte da vida ganhando dinheiro para desfrutar uma liberdade questionável durante a parte menos valiosa da vida me lembra do inglês que foi à Índia fazer fortuna primeiro, para depois voltar à Inglaterra e viver como um poeta. Ele deveria ter subido para o sótão desde o início. "O quê?", exclamam um milhão de irlandeses vindo de todos os barracos da região. "Você está dizendo que essa ferrovia que nós construímos não é uma coisa boa?". Sim, respondo, comparativamente boa, isto é, podia ter sido pior; mas eu preferiria, como vocês são meus irmãos, que tivessem aproveitado melhor seu tempo, não cavando esta lama. (p50)


[ sobre juntar coisas ] Excederia as forças de um homem saudável hoje em dia pegar sua maca e andar (Jo 5.8). (p62)


Há costumes de algumas nações selvagens que talvez possa ser proveitoso imitarmos, pois ao menos guardam uma semelhança com a troca de pele anual: possuem a ideia da coisa, seja ela realidade ou não. Não seria bom se celebrássemos o busk, ou "festa dos primeiros frutos", como Bartram descreve ter sido costume dos índios muclasse?" Quando uma aldeia celebra o busk", ele diz, "depois de vestirem roupas novas com novas panelas, frigideiras e outros utensílios domésticos e outros móveis, eles reúnem todas as roupas velhas e outras coisas indesejáveis, varrem e limpam as casas, praças e toda a aldeia de toda sujeira, que juntam a todo cereal velho e toda provisão restante em uma mesma pilha, que se consome em chamas. Depois de ingerirem uma droga, e jejuarem por três dias, apagam toda fogueira que houver na aldeia. Durante o jejum, eles se abstém da gratificação de todo e qualquer apetite ou paixão. É proclamada anistia geral: todos os malfeitores podem voltar à aldeia. "Na quarta manhã, o sumo sacerdote, esfregando madeiras secas, acende uma nova fogueira em praça pública, a partir da qual cada casa da aldeia é suprida com uma chama nova e pura. Então fazem um banquete com o milho novo e os primeiros frutos e dançam e cantam por três dias, e nos quatro dias seguintes recebem visitas e festejam com os amigos das aldeias da região, que da mesma forma se purificaram e se prepararam". (p63)


O vento da manhã sopra eternamente, o poema da criação é ininterrupto, mas poucos são os ouvidos que o escutam. (p76)


[ Questionando o 'ter' ] Havia sido um homem rico sem prejuízo da minha pobreza. (p74)


A manhã é quando estou desperto e dentro de mim existe uma alvorada. A reforma moral é o esforço de se espreguiçar para se livrar do sono. Por que será que os homens pouco se dão conta do dia quando não dormiram? Eles não são tão ruins em fazer contas. Se não estivessem dominados pela letargia, teriam feito alguma coisa. Milhões estão acordados o suficiente para o trabalho mas apenas um em um milhão está acordado o suficiente para um esforço intelectual efetivo, e apenas um em cem milhões para uma vida poética ou divina. Estar desperto é estar vivo. Ainda não conheci ninguém desperto. Como eu poderia olhar em seus olhos? (p80)


Se não buscarmos nossos dormentes, forjarmos nossos trilhos, e dedicarmos dias e noites remendando nossa vida tentando melhorá-la, quem construiria as ferrovias? E se a ferrovia não ficar pronta, como chegaremos ao céu a tempo? Mas se ficarmos em casa e cuidarmos de nossa própria vida, quem haverá de querer ferrovia? Nós não usamos a ferrovia: a ferrovia é que nos usa. Você alguma vez pensou no que são aqueles dormentes em trilhos? Cada dormente é um homem, um irlandês ou um ianque. Trilhos foram postos sobre eles, e eles estão cobertos de areia, e vagões deslizam suavemente por cima deles. São dormentes pesados, eu garanto. E a cada par de anos um novo lote é deitado e lhe passam por cima de modo que, se alguns têm o prazer de correr sobre os trilhos, outros têm a infelicidade de passar por cima deles. E quando atropelam um sonâmbulo, um dormente extranumerário na posição errada, e o acordam, subitamente freiam o trem, e fazem alarde e choram, como se fosse uma exceção. (p82)


Dificilmente um homem cochila meia hora depois do jantar, mas quando ele acorda, ergue a cabeça e pergunta: "Alguma novidade?" como se o resto da humanidade tivesse ficado de sentinela. Algumas pessoas podem para ser acordadas a cada meia hora, sem dúvida com o mesmo intuito então, como recompensa, contam-nos seus sonhos. Após uma noite de sono as novidades são tão indispensáveis quanto o desjejum. "Por favor, contem alguma novidade que tenha acontecido com alguém em algum lugar do mundo" e ele lê, durante o café com pão que um sujeito teve os olhos arrancados hoje de manha no rio Wachito; sem sequer sonhar que ele mesmo vive na escuridão da caverna insondável deste mundo, e também tem apenas olhos rudimentares. (p83)


Trata-se de uma experiência surpreendente e memorável, além de valiosa, perder-se na floresta em algum momento. (...) Só depois que nos perdemos, em outras palavras, quando perdemos o mundo, começamos a nos encontrar, e a nos dar conta de onde estamos e da extensão infinita das nossas relações. (p151)


Deveríamos voltar para casa sempre de longe, de aventuras, e perigos e descobertas, todos os dias, a cada dia com uma nova experiência e um novo caráter. (p181)


Se o dia e a noite são tais que você saúda com alegria, se a vida emana uma fragrância como a de flores e ervas de perfume adocicado, se é mais elástica, mais estrelada, mais imortal - eis o seu sucesso. Toda natureza se congratula consigo, e você momentaneamente pode se sentir abençoado. (p188)


Cada homem é construtor de um templo, que é seu corpo, ao deus que ele adora, a partir de um estilo puramente seu, e do qual ele não pode escapar esculpindo em mármore em vez de a si mesmo. Somos todos escultores e pintores, e nosso material é a nossa própria carne, nossos próprios sangue e ossos. Qualquer nobreza começa imediatamente a refinar o semblante de um homem; qualquer baixeza ou sensualidade, a embrutecê-lo. John Farmer sentou em sua soleira uma noite de setembro, após um dia duro de trabalho, a cabeça um pouco ainda no trabalho. Depois do banho, ele se sentou ali para recriar seu homem intelectual. Havia esfriado um pouco, e alguns vizinhos estavam apreensivos esperando geada. Nem bem embarcara em seus pensamentos quando ouviu alguém tocando uma flauta, e aquele som se harmonizou com seu estado de espírito. Ele continuou pensando no trabalho; mas o fardo desse pensamento, embora continuasse em sua cabeça, e ele se pegasse fazendo planos e elucubrando contra a própria vontade, pouco lhe importava. Não passava de pele seca, constantemente descamada. As notas da flauta chegaram à sua casa, em seus ouvidos, vindas de uma esfera diferente daquela em que ele trabalhava, e sugeriam um trabalho a certas faculdades que nele estavam adormecidas. Delicadamente, aquelas notas fizeram desaparecer a rua, a vila, e o estado em que ele vivia. Uma voz disse a ele: Por que você fica aqui e vive essa vida dura e mesquinha, sendo possível uma existência gloriosa? Aquelas mesmas estrelas brilham sobre outros campos além desses. Mas como sair dessa condição e migrar efetivamente lá? Só para conseguiu pensar em praticar alguma nova austeridade, para fazer que a mente influísse em seu corpo e o redimisse, e tratar a si mesmo com um respeito cada vez maior. (p192)


E, ai, cuidar da casa!, deixar brilhantes as maçanetas do diabo, e esfregar suas banheiras neste dia claro! Melhor não ter casa para cuidar. Digamos, morar no oco de uma árvore; e ali ter como visitas matinais e festas noturnas, apenas um Pica-Pau. (p195)


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A paginação mencionada está baseada na versão da Edipro, de 13 de fevereiro de 2020, com tradução de Alexandre Barbosa de Souza.

Um comentário:

  1. Continua jogando as sobras daí, que eu continuo catando por aqui. Se tem uma coisa que esse lance de tentar driblar e entender esse sistema ensina (e o velho Thoreau tb), é que a gente não precisa de muito, se o que a gente conseguir tiver tutano. E poesia. E a Trilha aqui tem os dois.
    Quando li o Walden ele me deixou dividido. Primeiro me amarrei nas ideias, na prosa, nas possibilidades. Depois de um tempo, me pareceu que o livro era um pouco gordo. Que daria pra enxugar pra deixar mais forte. Mas continuando acho que acabei encontrando o Thoreau lá dentro, finalmente. E o Walden é um dos poucos livros em que ver o autor é de fato algo benéfico, acho. O ar meio prolixo, meio redundante demais do texto, me pareceu o autor lá na beira do lago, sem precisar lapidar a peça. Deixando as arestas, as asperezas e até material sobrando ali. Não é bom, nem ruim. É o cara no mato com o tempo nas mãos. E claro, mesmo lá, o Thoreau tava aproveitando o sistema, filando um rango aqui e ali, mas ainda em comunhão com o rincão dele e com ele próprio. Um livro batuta. E batuta reencontrar ele aqui nessa Trilha. Abraço rapá.

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