16 de janeiro de 2025

A cabana e o vulcão

A cabana na Reserva Nacional Mocho-Choshuenco, Chile - 2025

Vi a mesma cabana de 27 anos atrás. Era janeiro, eu estava noivo, me casaria em maio, e fiz essa viagem com meu grande amigo e parceiro de roubadas Alexandre, e o Du Bois, uma espécie de professor de montanha que se tornou amigo também. Sem grana, sem internet, sem celular, sem GPS, sem equipamento pra gelo, quase sem informação. A viagem tem muita história, mas vou me manter nessa da cabana. Em parte dela, porque essa também é longa. 

Dois dias antes estávamos em Constituición, litoral do Chile, onde abrimos mais de uma dezena de vias em maravilhosas falésias do Pacífico. Mas queríamos neve, gelo, vulcão, cordilheira. Decidimos pelo vulcão Mocho-Choshuenco, na comuna de Panguipulli, longe do roteiro turístico tradicional.

É onde estou agora, 27 anos depois, acompanhado da minha esposa e uma amiga. Tanta coisa aconteceu nessas quase 3 décadas, e a cabana continua lá. Também seguem firmes as duas casinhas do pueblo de Enco onde naquele passado distante ganhamos um pão quentinho e alguns tomates de um menino, depois de 4 ou 5 dias no vulcão, o último deles sem comida. O pão com tomate mais delicioso da história. As mesmas casas, a mesma cabana. Quantos anos teria hoje o menino que nos trouxe pão?

Hoje vim de carro até a entrada do Parque, peguei informações sobre as trilhas demarcadas, escolhi uma segura que vai até onde agora tem um abrigozinho de montanha e começam as rampas de neve e gelo no verão. Na primeira vez não tinha carro, não tinha parque, não tinha trilha marcada. Só tínhamos um mapinha mal impresso e um ônibus caindo aos pedaços que tivemos que empurrar na rodoviária de Panguipulli. O mapa indicava que, do ponto final à cabana, teríamos que percorrer 4 km. Dali pra cima não sabíamos nada.

Campos de gelo - 27 anos atrás

Começamos a andar no fim da manhã, as mochilas cheias, pesadas, e nada de cabana. Descobrimos depois que houve uma falha de impressão naquele mapa mequetrefe que sumiu com um número 2 antes do 4. Tivemos que andar 24 km e só chegamos na cabana tarde da noite. Tínhamos planejado acampar e descansar um dia no pé do vulcão para subir no dia seguinte, mas a cabana estava aberta e dois montanhistas chilenos estavam lá. Nos receberam, deixaram entrar e era um espetáculo - quentinho, com colchão, lareira, cozinha - mas eles iam iniciar a escalada naquela madrugada. Não podíamos perder a companhia, já que da cabana pra cima não tínhamos mais muita informação.

Hoje, quando contei a uns chilenos que encontramos na trilha que 27 anos atrás eu tinha ido à pé do ponto final até o cume sem nenhum equipamento de gelo, como quem sobe o Anhangava na Serra do Mar paranaense, eles sorriram educadamente. Certamente vão contar por aí sobre o brasileiro mentiroso que encontraram na trilha. Mas, como diria Chicó, só sei que foi assim.

A greta, com o Alexandre já fora dela, final do século passado

Acordamos de madrugada e acompanhamos os chilenos até uma rampa íngreme de gelo ainda na base do vulcão. Lá eles deram meia volta e desceram. Disseram que não tinha como atravessar, que seria preciso crampons, encordamento, bastões e não sei mais o quê. Nós ficamos. Sacamos um único bastão de esqui que achamos na cabana e trouxemos pra trilha, que mais parecia uma vareta de barraca, e saímos picando gelo, degrau por degrau, até atravessarmos a rampa toda. Por baixo de nós corria um rio de degelo onde algumas vezes, no gelo mais fino, afundávamos os pés. Foi um processo, lento, demorado e assustador. Depois da rampa seguimos por enormes campos de gelo, rampas mais e menos íngremes de neve às vezes mais fofa, às vezes mais firme, blocos de rocha, vários falsos cumes, até alcançarmos o ponto mais alto do Mocho. Eu quase morri de canseira. Cheguei a desistir e dizer para meus companheiros seguirem sem mim. Mas não deu 10 minutos e eles voltaram dizendo que o cume estava ali pertinho - e fui e chegamos lá os três.

Dentro da cratera, no cume

Hoje a neve estava bem mais recuada. A maior parte da trilha foi por um bosque belíssimo e um campo florido, e o destino era um mirante ainda perto da base.

27 anos atrás, depois do cume, resolvemos descer por outro caminho, para evitar a rampa de gelo que era bastante apavorante. Hoje, conversando com o guarda-parque, descobri que o trecho que escolhemos descer no final do século passado, é uma grande glaciar com 60 metros de altura de gelo acumulado. Quando passamos por lá tinha havido uma nevasca enorme e rara em pleno verão que cobriu a geleira e o campo florido. Passamos por cima dela sem nem saber da sua existência, a não ser pelo momento em que o Alexandre desapareceu. Só ouvimos o grito. Quando nos aproximamos devagar vimos ele entalado em uma rachadura na nave. Era um buraco sem fundo, talvez, como soube hoje, com 60 metros! Eu e o Du Bois tínhamos passado por ali tranquilamente, mas quando o Alexandre passou a neve cedeu. Graças a Deus era uma fenda estreita e ele entalou. Não tínhamos corda nem nada. Pra tirar ele de lá tiramos nossas roupas, amarramos uma na outra e puxamos ele. Ainda bem que não contei isso pros chilenos. Ia ser demais.

Os campos floridos em 2025

Hoje, com a Sandra, minha esposa, e a Paula, nossa amiga, parei bem antes. Adquiri, com o passar dos anos, uma dose de bom senso mais razoável. Vontade de seguir subindo não faltou, mas hoje ninguém mais faz o que se fazia há 27 anos.

Tem sinal - 2025

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