22 de janeiro de 2014

O primeiro comunista


Estava sentado no lado esquerdo do sofá quando li mais um interessantíssimo, como era de se esperar, texto do Paulo Brabo sobre a política de direita e esquerda. Acontece que havia ali um inocente link que me levou até um texto incrível, no mal sentido, como era de se esperar, de Norma Braga, sobre o mesmo tema. Era também de se esperar que minha curiosidade masoquista me levasse até os comentários no rodapé de Norma. Inesperado, porém, foi encontrar ali a revelação que me desconcertou. Judas, o traidor, foi também o primeiro comunista. E isso ficou patente para aquele comentarista por ter Judas tido a pretensão de propor distribuir as riquezas advindas da venda do vaso de alabastro que uma mulher lhe despejava aos pés. Evidentemente o Cristo tratou logo de rechaçar a ideia daquele esquerdista distributivista (foi esse o termo usado no comentário - alterei para comunista no título por questões estéticas e por maldade - comunista dá mais arrepio na espinha) colocando-o no seu devido lugar.

Ironias à parte, é evidente que esse argumento é fraquíssimo e insustentável a ponto de a própria Norma, façamos jus a ela, não aceitá-lo, como ela mesma deixou claro em outro comentário no mesmo post. Mas é também evidente que argumentos fraquíssimos são usados por multidões e podem convencer incautos pegos de sopetão, chegando ao ponto de se tornarem quase uma unanimidade em determinados e desavisados grupos. Por esse motivo achei que valia a pena registrar aqui um fato pouco mencionado a respeito desse diálogo rápido entre Jesus e aquele comunistazinho traidor. Quem sabe algum desses que caiu no caldeirão da direita sem querer resolva pular para fora antes que o tempero pegue.

Segundo o relato dos evangelhos, Iscariotes, o traidor, teria ficado doido ao ver uma mulher derramando um perfume caro aos pés do mestre. Mais doido ainda ele ficou com o Mestre, que nada fez para coibir a moça. Judas então propõe ao seu Rabi e a rapaziada toda que o acompanhava que melhor seria vender o perfume e distribuir o dinheiro aos necessitados. Ao ouvir tamanha heresia, o mestre mandou a frase que está na ponta da língua de um número enorme de conservadores de direita conscientes ou não de o serem. Pois a frase de Jesus, que não duvido ser um ímã na geladeira de Olavo de Carvalho e seus seguidores, não foi nada mais do que a citação de um comprometedor texto do velho testamento.

Quando afirma, olhando no olho de Judas, que "sempre haverá pobres na terra ", Jesus está mencionando um trecho de Deuteronômio 15 à uma plateia que conhece muito bem o texto e o contexto. Ele faz referência a um pedaço de lei mosaica que todos à mesa sabiam bem qual era e o que exigia deles. Ele estava dizendo que aquele trocado arrecadado com a venda do perfume era irrisório diante da enormidade da exigência que lutar pelo fim da pobreza e por justiça social exigia. Ele está provocando-os a fazerem muito mais do que propôs o tesoureiro.

No final de cada sete anos as dívidas deverão ser canceladas. Isso deverá ser feito da seguinte forma: Todo credor cancelará o empréstimo que fez ao seu próximo. Nenhum israelita exigirá pagamento de seu próximo ou de seu parente, porque foi proclamado o tempo do Senhor para o cancelamento das dívidas.

Quer programa de distribuição de renda maior que esse? Pois o texto continua:


Assim, não deverá haver pobre algum no meio de vocês, pois na terra que o Senhor, o seu Deus, lhes está dando como herança para que dela tomem posse, ele os abençoará ricamente, contanto que obedeçam em tudo ao Senhor, ao seu Deus, e colocarem em prática toda esta lei que hoje lhes estou dando.



Ãhn? O Deus de Israel parece estar indicando que se tudo for feito conforme o figurino não haverá pobres entre eles e, portanto, se houver pobres entre eles é porque as coisas não estão andando como deviam, ou seja, alguns estão acumulando demais e outros empobrecendo. Não há aqui nenhuma referência à meritocracia, pelo contrário. A teoria do mérito prevê que quem enriquece, enriquece porque merece e, do ponto de vista teológico, merece porque obedece. O texto inverte, afirmando que se todo mundo obedecesse, ninguém enriqueceria porque tudo seria repetidamente redistribuído para o bem do coletivo.

É só depois de afirmar o que está dito acima que chegamos ao trecho citado por Jesus que, não custa lembrar, sabia muito bem o que estava dito acima.


Sempre haverá pobres na terra. Portanto, eu lhe ordeno que abra o coração para o seu irmão israelita, tanto para o pobre como para o necessitado de sua terra.


Aí está. O texto que afirma a existência eterna do pobre o faz não como quem observa um fato inevitável contra o qual não vale a pena lutar, mas como quem lamenta o fato de que nem Israel nem nós nem ninguém age como deveria agir, ao contrário, estamos todos lutando e nos devorando mutuamente na esperança de acumular um pouco mais, e conclui nos ordenando abrir o coração e deixar de lado essa antropofagia meritocrata (eu devoro você porque mereço, porque lutei pra subir uns degraus na cadeia alimentar social - se quiser me devorar faça o mesmo).

Judas, evidentemente, não foi o primeiro esquerdita distributivista da história. Antes dele houve Moisés, e Isaías, e todos os profetas e seus clamores. Depois dele vieram outros muitos, mas, infelizmente, nunca o suficiente.

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