Era dia de Páscoa e o Mestre estava reclinado à mesa com seu séquito de covardes. A última ceia não era um encontro de notáveis, de uma elite religiosa e moral. Era a ceia dos pecadores, dos medrosos, dos fujões, dos fracos, dos reticentes, dos que negam, dos que fogem, dos que abandonam quem amam para salvar a própria pele. E o revolucionário carpinteiro abriu a esse tipinho de gente os braços, sem restrições e julgamentos, e os convidou a todos para partilharem ali de sua vida, entregando-se por inteiro a todos eles, incluindo Judas, o mais notório dentre os traidores, que veio tornar-se boi de piranha da cristandade. Porque ali, naquela mesa, meus colegas, não se salvava um. Eram todos Judas. A única e lastimável diferença é que o Iscariotes, por ter sucumbido à vergonha e tirado a própria vida, não teve tempo de perceber em vida que já havia sido plenamente e eternamente perdoado, que fora graciosamente aceito à mesa junto com todos os demais.
Não se engane, meu irmão. Não existe ceia de santos. Pelo menos não com Jesus. A ceia dos perfeitos, dos superiores, dos que julgam os outros do alto de sua respeitável posição, dos que batem no peito e dizem “obrigado, Deus, porque não somos como aqueles pecadores ali” - essa ceia não conta com a presença do Mestre. Essa é a ceia dos arrogantes e esses caras não se rebaixam a sentar à mesa onde Jesus está oferecendo sua carne e seu sangue.
A ceia de Jesus é a dos que dizem, prostrados: “tem misericórdia de mim porque sou pecador”. Dos que, sabendo quem são, conhecendo suas limitações, suas carências, suas falhas, seus horrores, sua mediocridade, sua canalhice, ainda assim - e por isso mesmo - querem andar com Jesus, porque carecem dele e de suas palavras de amor, perdão e graça. É a ceia dos que ouviram o convite carinhoso e desafiador - “se alguém quer vir comigo… me siga” - e, voluntariamente, fascinados pela figura cativante do carpinteiro de Nazaré, negando-se a si mesmos largaram o que tinham e o que queriam para si - que era o que os tornava infames - para segui-lo. E, ao segui-lo de mãos vazias tornaram-se parte dele mesmo - o Corpo de Cristo simbolizado na ceia, a comunidade daqueles que se parecem com Jesus porque aceitam em sua mesa o mesmo tipo de gente que ele aceitou, e com eles repartem suas vidas, e por quem, como o Mestre, entregam suas vidas.
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Foi Ariovaldo Ramos que ouvi contar a desconcertante história de um sujeito, nos EUA, que acolheu na sua casa um rapaz problemático que não tinha pra onde ir. O sujeito abriu as portas da sua casa para acolher o desconhecido e ele morou com a família até o dia em que (horror dos horrores) violentou e matou a filha do homem que o acolheu. O rapaz foi preso e condenado à morte, mas aquele homem que o havia acolhido, o homem que havia perdido sua filha pelas mãos do indivíduo para quem abriu as portas da sua casa, decidiu perdoar o algoz de sua menina e passou a visitá-lo diariamente no presídio. E durante os anos que precederam a execução da sentença de morte, aquele homem tornou-se único amigo, confidente, conselheiro, quase um pai, do homem que matou sua filha. No dia de sua morte, aquele homem esteve com o assassino de sua filha até o último momento, e chorou amargamente durante e depois da execução. Dizem que no dia seguinte os jornais da região estampavam a manchete: "Pela primeira vez vimos um cristão de verdade".
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Esse chamado insano para sair por aí abraçando, perdoando e convidando à mesa covardes, canalhas e traidores não é, obviamente, um chamado light para uma vida boa. É bucha. É antinatural. Chega a ser ofensivo. Mas assim é o amor que mudou o mundo. Não tem explicação, não tem lógica. É "bobagem que a gente não explica, prova um bocadinho, fica envenenado e pro resto da vida é um tal de sofrer, olará, olerê". Mas Jesus continua, num sussurro constante, convidando: “se alguém quer vir… me siga”.
O problema é que vivemos dias turbulentos, barulhentos. Vivemos no horror do ruído constante. A onipresença e a urgência da comunicação nos sugou para um turbilhão de muitas vozes. A gente consubstanciou a paranóia. Materializamos a esquizofrenia. O paranóico é aquele cara que tem a sensação de ter alguém sempre ao seu lado, que ouve vozes insistentes, ameaçando, exigindo, tramando, berrando. Pois agora essa sensação se fez carne e habitou entre nós nos incansáveis dispositivos móveis e suas inesgotáveis redes sociais. E a gente não tem mais como ouvir a voz de Deus (que é a voz do amor), que sopra no silêncio e na quietude da brisa suave. Não temos como ouvir nem mais a nossa própria voz, que sussurra discreta e constante em nosso peito. Muito menos ouvir a voz do outro, do irmão, do próximo, do vizinho, de quem precisa. Assim como a mais profunda solidão se encontra no meio da multidão, é no ruído constante que habita o silêncio mais ensurdecedor.
Não é a toa que Isaías (Is 30.15) diz que nossa salvação está “no arrependimento e no descanso” (de quem sabe que é um covarde traidor, mas sabe que Jesus entrega seu corpo e sangue para covarde e traidores, numa boa), e nosso vigor está “na quietude e na confiança” (de quem sabe que carece desse silêncio tranquilo), pois só nesse lugar quieto e tranquilo é possível ouvir a voz do Amor, ouvir a si mesmo e ouvir o próximo. E é só assim, nessa condição, que a ceia de Jesus faz sentido. Só assim pode haver entre nós alguma semelhança com o Cristo. E se você é dos que, como eu, ao ouvir o convite do Mestre - se alguém quiser… - diz, entre lágrimas, “eu quero”, meu amigo, saiba, essa jornada é para que Ele seja formado em nós. Não para sermos melhores que os outros, julgando e condenando o próximo, não para sermos melhores que ninguém a não ser nós mesmos, cada dia um pouco mais parecidos com Ele, aos trancos e barrancos.
Os cristãos não deveriam ser conhecidos como os guerreiros da moral e dos bons costumes nem como os incansáveis guardiões da família tradicional, mas sim como a Comunidade do Amor, dos relacionamentos desinteressados, da aceitação, da tolerância, do cuidado mútuo. É pela liberdade, pela mutualidade, pela interdependência amorosa, pelo serviço abnegado que devemos ser lembrados. Foi essa a mais transcendente marca que Jesus deixou. Foi assim que igreja de Atos se tornou conhecida. E é nesse, e só nesse contexto que a ceia surge como símbolo, lembrança, reforço e recompromisso de quem quer colocar o corpo e o sangue de Cristo para dentro de si. Não para fazer parte de um clubinho de santos, mas para seguir os passos dele até a cruz.
Se você ouviu o sussurro do Mestre, largou suas coisas e foi atrás do cara, abra uma garrafa de vinho, convide uns amigos e reparta com eles sua vida. Depois abra os braços, as portas, a mente, a alma, abandone os medos, os julgamentos e os preconceitos e contagie o mundo com o amor de Jesus.
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PS: Esse é o momento em que alguém cita Paulo, na primeira cartinha que ele escreveu pra rapaziada de Corinto (1 Co 11.28-31). Aquele lance de examine-se antes da ceia, com ares de juízo e condenação. Mano, faça uma oração sincera pra Deus te ajudar a entender o texto sem conceitos pré estabelecidos, depois leia o capítulo inteiro. A treta ali é uma enorme falta de educação e mesquinharia na mesa (que não era uma tacinha de vinho e uma migalha de pão ou hóstia, mas uma mesa farta). O pessoal tava doido mesmo, comendo que nem adolescente com lombriga e enchendo o caneco, voltando bêbado pra casa. É disso que Paulo está falando, amigo. É por isso que ele dá uma esculachada nos crentes. Leia lá de novo. E nunca, nunca mais queira ser santo no sentido de não ter nenhum pecadinho escondido antes de participar da ceia. E, se quiser, nunca mais participe, pelo simples fato de que você jamais será santo. Aceite-se covarde e canalha como somos e você verá que seu amor pela humanidade vai aumentar porque não haverá mais espaço para julgamentos e condenações.
Uau!... repito: UAU!!! ou, como os gringos dizem: i'm speechless.
ResponderExcluirVi Jesus em cada letra, mano.
ResponderExcluirObrigado por esse texto.