11 de fevereiro de 2019

O agronegócio matou Abel

Cain and Abel - Leonetto Spada (atribuído) 1612-14 [ clique para ver maior ]


Eu estava na sala de espera de um consultório médico e entre uma dezena de revistas enfadonhas descansava um livrinho interessante, repleto de artigos curtos, ideais para quem aguarda uma consulta, com o intrigante título As maiores invenções da história, ou algo bem parecido. Cada artigo era escrito por algum estudioso, pesquisador, phD e coisa do gênero. O sujeito dava seu palpite sobre a invenção mais emblemática e em seguida defendia sua tese.

O primeiro falava da corrente elétrica, o segundo do telégrafo, o terceiro da prensa e por aí ia. Pelo que se vê, demorou bastante para eu ser atendido. Mas foi ótimo, porque lá pelo quinto ou sexto artigo, me deparei com esse inesperado vaticínio: a invenção das invenções, aquela que virou o mundo de pernas pro ar, de acordo com Colin Tudge, pesquisador do Centro de Filosofia da London School of Economics, foi o arado.

Eu lembro de viajar por dois ou três dias inteiros pelo interior do Brasil em diferentes direções. De Blumenau a Amambai, no Mato Grosso do Sul. Ou até Nobres e Cáceres, no Mato Grosso. Ou ainda pra São Borja, no Rio Grande do Sul. De cima abaixo, o oeste brasileiro é um desolador oceano de soja, pasto e alguns outros commodities. Foram vários os pequenos aviões despejando agrotóxicos que nos sobrevoaram em cada um desses trajetos. Em Jangada e Rosário Oeste cheguei a chorar quando vi emas silvestres correndo naquela horrenda monocultura verde, fugindo da descarga de um desses aviões agrícolas.

Pois isso tudo me veio a mente enquanto lia o artigo de Tudge, além, é claro, de uma série enorme de reportagens denúncia sobre a antropofágica volúpia insana e insaciável do agronegócio brasileiro.

Tudge diferencia a agricultura das atividades de pequena escala, chamadas de pastoralismo e horticultura. Diz, como quem se espanta, que Linconshire, na Grã-Bretanha, ficou entregue a carneiros por dois mil anos, mas agora é cereal e batata de ponta a ponta. Se percorresse os 2 mil quilômetros entre São Borja e Nobres teria um colapso. A horticultura e o pastoralismo de outrora, afirma Colin Tudge, davam conta de suas pequenas comunidades deixando a paisagem mais ou menos intacta. Mas aí veio o arado.

[...] os agricultores do arado pegam a natureza pelo cangote e curvam-na à sua vontade. A flora nativa é reduzida ao solo nu, um mero substrato. A paisagem original não importa. Muitos eruditos sugeriram que a expulsão de Adão e Eva do Éden representa os primórdios da agricultura em larga escala. [...] Creio que o assassinato de Abel por Caim é simbólico do início da agricultura pelo arado: aquele que retalha o solo mata o gentil pastor. Os autores do Gênesis reconhecem claramente a importância disso. Para eles, o revolvimento do solo, a obliteração da paisagem do próprio Deus, era blasfêmia. O solo sulcado é de fato a marca de Caim.

E cá estamos nós, na beira do apocalipse climático, vendo o pecado do Gênesis ainda retalhando a terra enquanto, sem piedade, derrama sangue humano. O agronegócio matou Abel, e segue matando.

0 comentários:

Postar um comentário