12 de julho de 2010

O morro

Era um fim de tarde gelado de sol forte e Fernando suava aos baldes enquanto subia a ladeira íngreme com a garganta seca pelo ar frio e a respiração ofegante condensando branca diante dele, fazendo-o lembrar de seu tempo de fumante. O cheiro de café vindo inclemente de uma das casas apinhadas no morro fazia o gosto do cigarro brotar na saliva fina e quente. Fazia 15 anos que Fernando havia largado o fumo, mas o sabor da nicotina parecia não desgrudar do cheiro de café.

O morro era quase vertical e as casas que ladeavam a ruela pareciam um brinquedo de blocos de empilhar prestes a ruir. Fernando caminhava convicto, passos firmes, resolvido a dar um fim nos atritos que haviam tirado seu sono nas últimas semanas. Rostos desconfiados espiavam dos cantos das janelas, quase sem piscar. Indiferente aos olhos, Fernando saiu da rua e começou a subir a escadaria estreita e irregular que contornava uma porção de casas impossíveis, que poderiam servir de cenário para filmes alemães do início do século passado. Os vértices das parede projetavam-se verticalmente em direções distintas, raramente paralelos e frequentemente estendendo-se oblíquos por sobre as escadas tortas. Casebres que nasciam separados por dois metros de solo inconstante, encontravam-se timidamente 4 metros acima num beijo discreto.

Fernando trazia consigo o silêncio que varria as casas diante de sua passagem, e deixava atrás de si cochichos e apostas. Tirou a camisa encharcada e seguiu de peito nu no gelado do crepúsculo que já surgia pelos cantos dos casebres. Era noite de lua cheia e o corpo negro molhado fez-se prata ao luar quando finalmente chegou ao topo do morro, ofegante mas ainda determinado. Na laje que circulava a casa maior, a única de paredes paralelas, uma luz amarela vazava da janela entreaberta e deitava-se no chão gelado e úmido do sereno da noite. Dois homens encasacados encostados na mureta da laje acendiam seus cigarros com os olhos fixos em Fernando. A umidade da laje dançava na luz projetada da janela e dois cachorros vira-lata começaram a latir em algum lugar no canto escuro da casa.

Fernando postou-se diante da porta fechada e espremeu os olhos para tentar ver algo pelo canto da janela. Percebeu os cochichos e movimentos dos curiosos que vinham chegando atrás de si e se encostavam nos cantos escuros da laje esperando para ver o desenlace da confusão que iniciara dois anos antes. A verdade é que o morro todo torcia por Fernando e ele sentia o peso da esperança da multidão nas costas.

Quando a porta se abriu, o silêncio que abraçou a laje foi absoluto. Até os cães pararam de latir. Do lado de dentro da casa, Rinaldo, de pijama, gorro de lã e uma caneca de café quente na mão, encarou Fernando nos olhos por segundos que pareceram eternos. Então desviou os olhos por sobre os ombros suados de seu oponente e balançou a cabeça afirmativamente. Os dois homens encasacados sacaram suas pistolas e descarregaram as armas nas costas nuas de Fernando que caiu como árvore seca sobre o cimento úmido e gelado. A porta se fechou e enquanto a multidão dispersava solene, um homem riscou na parede de um casebre, com um caco de gesso, uma quinta curta linha vertical. Depois esmagou o gesso lentamente, com força e raiva, numa linha transversal que cortou as cinco marcas. “Isso não vai ficar assim” pensou o homem com a ponta do dedo sangrando, esfolada na parede áspera do casebre. "Isso não vai ficar assim".

3 comentários:

  1. Fala, Tuco!

    A crítica do meu blog foi justamente pelo motivo que vc citou: pessoas permanecem na igreja por causa de "ministérios". Como também escrevi, não sou contra se organizar, afinal, precisamos de horários para nos programar. O problema gira em torno do que fizeram com o verdadeiro ministério que é pregar, ensinar, batizar...

    Um abraço!

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  2. Daniel Mota5:17 AM

    Grande Tuco, fiquei impressionado pela seleção de textos, pela criatividade e pelo talento. Sou Filosofo de Formação você é Filosofo de bloggeação..camarada muito bom!

    Daniel Mota

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  3. Muchas gracias, meu filósofo favorito! Abraço.

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