10 de março de 2011
Miguel
Era comecinho de tarde quando Miguel chegou caminhando lentamente e sentou-se no banco da praça central da praia de Lagos, em Algarve. Chegou sozinho, sentou sozinho e ficou ali sozinho até o sol se pôr. Olhava pra cá e pra lá. Ora pra uma copa de árvore, ora pras pernas de uma mulher, olha pros olhos de algum outro solitário, ora pra um passarinho, ora pra um vira-lata. Arrumou os óculos delicadamente várias vezes. O boné permaneceu intacto. A bengala dançava uma valsa lenta, de mão pra outra, até repousar carinhosamente sobre sua coxa, para depois voltar à baila.
Quando o sol foi se deitar, Miguel levantou-se no mesmo ritmo lento com que se sentara, e caminhou em passinhos curtos e sincopados até sua casa e deitou-se no seu lado da cama, acompanhado do enorme vazio, que o seguia para todos os cantos e deitava agora ao seu lado.
Nas quase 5 horas que passou no banco da praça, ninguém, ninguém soube nem sequer imaginou que ali naquele mesmo banco, Miguel declarou seu amor humilde a Sara. Ninguém percebeu que o velho que estava ali sozinho, ali esteve acompanhado por 45 anos. Ali Miguel e Sara tocaram as mãos a primeira vez. Ali se beijaram inúmeras vezes. Ali brigaram, ali romperam, ali voltaram, ali perdoaram. Foi naquele banco que comeram amêndoas quentes em invernos frios. Naquele banco de praça de Lagos, Sara deitou a cabeça no colo de Miguel, e a alça de seu vestido caiu e deixou à mostra seu ombro e uma parte generosa de seu seio.
Mas ninguém dos que viram Miguel no seu último dia de vida soube de nada disso. Viram apenas um velho sozinho. Não puderam rir nem chorar com Miguel porque para eles Miguel era simplesmente uma paisagem. Nem ao menos perceberam que naquela tarde, discretamente, Miguel riu e chorou mais de uma vez.
À noite, acompanhado pelo buraco enorme que o seguia e o engolia aos poucos no último ano, Miguel foi finalmente devorado.
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Triste mas sensível e real!
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