14 de julho de 2011

Sapateia, minha gente

A porta do quarto abriu suave enquanto batidinhas discretas na madeira pediam permissão para entrar. O casal lá dentro olhou com estranheza como quem imagina que a visita só poderia ser um engano. Mas não era. Jaleco branco e nariz vermelho; a combinação inesperada por vezes gera desconfiança. Mas o sorriso debaixo do nariz desfaz o receio.
– Posso entrar?
– Claro – vem a resposta ainda um pouquinho reticente, mas agora só pela curiosidade.

E começa a conversa. O senhor L.B. não anda muito animado não. Passou um pouco dos sessenta anos e não teve vida fácil. Já começa contando sua história, suas dores e desilusões. O tanto que teve e que se esvaiu pelos vãos dos dedos. O quase nada que sobrou. A dor das tantas perdas. O tempo no hospital vem se arrastando miseravelmente e a previsão de voltar pra casa ainda não apareceu no horizonte.
– Mas volto logo! Não quero mais ficar aqui não - afirmou sem muita convicção. 
– Tudo bem, L.B., mas enquanto isso, vamos brincar? O senhor gosta de cantar?

E entra uma música, duas, três. Só no gogó mesmo, com os refrões acompanhados pela mágica cornetinha de plástico. Coisa antiga. Serestas e caipiras. O casal canta junto e as canções parecem soprar memórias e as memórias trazem sempre sentimentos. Depois da terceira música, L.B. olha direto nos olhos que ladeiam o nariz vermelho. E olha sério, e com os olhos pede um pouco de atenção. Depois de longa pausa, comenta:
– Lindas as letras dessas músicas, não?
– Também acho. As antigas são as melhores...
– Sabe que fui poeta? – escapa a pergunta reticente, como quem teve que, antes de questionar, encher o peito de ar na busca de uma confiança que há muito já se fora.
– Faz muito tempo que não escrevo nada. Quase ninguém hoje sabe que um dia escrevi. É coisa antiga, de um tempo que já se foi – e enquanto fala já desvia o olho e fixa em um canto do rodapé do quarto.
– Um poeta? Um poeta de verdade? – pergunta o palhaço de jaleco. – Quero ver. Quero ouvir. Sabe alguma de cor? – e insiste tanto e de forma tão enfática que os olhos de L.B. levantam-se de novo e encontram novamente os olhos do doutor de nariz vermelho.
– Acho que lembro de um poeminha...

Quando a saudade vem
A gente chora
Sapateia minha gente
Aproveita a mocidade...
Que depois vem a velhice
E a velhice traz saudade

"Engraçado que o poema não parece de um tempo que já foi", pensa o palhaço, "parece mesmo é que foi feito no leito do hospital, que o poeta lá dentro nunca parou". O poema veio fraquinho, desconfiado e molhado, mas encheu o rosto do palhaço de sorriso incontrolável, também umedecido, mas feliz.
– É lindo L.B. É lindo! Foi poeta? Foi? Não senhor. Um dia poeta sempre poeta. Você é um poeta, L.B., e é uma honra conhecê-lo. Peraí, deixa eu anotar esse aí.

O tempo já havia corrido demais e, depois do poema, foi preciso um abraço. E a despedida ao som de "Asa Branca", do Gonzagão, a três vozes; poeta, esposa e palhaço.

Em casa, o homem do nariz vermelho não para de pensar no poeminha e no poeta. Resolve montar o texto bem bacana no computador, faz uma dedicatória, imprime, compra uma moldura e faz um quadro. No dia seguinte vai até o hospital, bate suave na porta do mesmo quarto e quando entra já é recebido com um grito:
– Meu amigo palhaço!
– Vim aqui atrás de um grande poeta. Ontem ele me fez um bem danado com sua poesia e seu carinho. Hoje quero retribuir com um presente.
O quadro é entregue nas mãos do poeta, e presente vira abraço, abraço enorme, demorado e apertado.

Dois anos já passaram e os dois nunca mais se viram. Mas na memória do homem de nariz vermelho está marcado para sempre o inesperado encontro entre palhaço e poeta.

Um comentário:

  1. E no fundo, bem no fundo, de poeta e palhaço temos todos um pouco. Pena não praticarmos com mais assiduidade!

    ResponderExcluir