27 de julho de 2012

Qué isso mermão?

De vez em quando ainda aparece alguém com aquele papo: "Rapaz, tu tá é lôko. Que pira é essa de ficar falando mal da igreja, da bisparada, dos pastores e pastoras, dos apóstolos e apostilas. Que lance é esse de falar que os evangélicos formam um forrobodó caótico sem significado? Qué isso mermão? Não é membro de igreja nenhuma. Cuidado, bróder. Abre o olho. Se cuida que sei lá onde cê vai parar com essa onda".

E eu fico aqui pensando, não sei se respondo, se não respondo. Abaixo a cabeça, testa franzida, vagando o olho pro lado e pra cima, imaginando a poeira da palestina passando, carregada pelo vento quente que sopra do mar de Tiberíades. Quase consigo sentir o calor do sol queimando o lombo dos discípulos enquanto eles vão levantando as paredes daquela nova espécie de sinagoga. Mateus, que tem a pele das mãos finas, os músculos frouxos por estar há tempos afastado do trabalho braçal, acostumado a contar moedas no seu escritório, foi incumbido de pintar a placa: "Ministério do Cordeiro de Deus". A sugestão do nome veio de João Batista, que às margens do Jordão panfletava os passantes. "Convém que a sinagoga dele cresça e a minha diminua", dizia o Batista. Pedro, Tiago, João e Judas acompanhavam o mestre nas suas andanças, quando reunia multidões para falar de seu projeto visionário. Tiago e João, que com sua voz de trovão pareciam o Pavarotti e o Plácido Domingo, abriam os encontros conduzindo o louvor. Jesus vinha em seguida com uma mensagem, lembrando de frisar a importância de contribuir com a obra que estava em andamento e abençoaria muitas vidas, sempre com Pedro ao seu lado. Vez ou outras Jesus pedia que Pedro desse um testemunho do que Deus vinha fazendo em sua vida através do "Ministério do Cordeiro de Deus". Judas passava em seguida pelo povo juntando os dízimos e ofertas, sempre repetindo, "contribuam pra construção da nossa sede".

Bartolomeu, desconfiado que era, cumpria muito bem o papel de gerenciar a construção nos arredores de Cafarnaum. Só tinha trabalho com Tomé, sempre do contra: "Essa viga não vai aguentar Bartolomeu", "vai sim, Tomé", "hum, só acredito vendo...".

E lá vão eles, pelos outeiros da Galiléia, entre figueiras, tamareiras e oliveiras, ladeados pelas delicadas colinas da Jordânia, levantando fundos para construção, abrindo franquias por toda Israel, convidando o povo a tornar-se membro do Ministério e, consequentemente, estar presente em todas as reuniões, encontros, retiros e campanhas, sem falta. Caso contrário, cuidado bróder. Abre o olho.

25 de julho de 2012

Rotina

Gerson acorda perdido. Nada poderia ser mais surreal. Antes de abrir os olhos percebe o frio intenso e úmido que invadira o quarto. Pisca tentando acostumar-se com a luz amena (mas intensa para quem está acordando), a mão tateando na busca afobada pelo óculos de lentes grossas que descansa inequivocamente, sem a menor possibilidade de falha, na mesinha ao lado da cama. Mas não encontra óculos nem mesinha. Bate com a ponta dos dedos em uma parede gelada e irregular. Retrai a mão e permanece estático por alguns segundos, enquanto a pupila se contrai. Percebe que o lugar onde seu corpo repousa não é propriamente uma cama. Espreme os olhos confuso tentando entender o que se passa. A parede é de pedra. Blocos enormes de rocha sobrepostos, encaixados. A cama é uma tábua forrada com um pouco de palha e sustentada por duas correntes, unindo um lado da tábua à parede em uma linha diagonal. Já acostumado com a luz, percebe a janela pequena num canto muito alto, bem acima da tábua, sem vidro e gradeada com grossas barras de ferro. Na parede oposta à cama, uma muda de roupas bem dobrada descansa no chão gelado de pedra. Levanta devagar e caminha lento até elas. Camisa social branca, calça de sarja cáqui, corte reto, alinhado, sapatos pretos bem engraxados, meias pretas e um blazer marron escuro. Em baixo das roupas, seu laptop e o óculos. Na parade ao lado uma pesada porta de ferro fecha o quarto. Está trancada e pela janela minúscula na altura do seu rosto, Gerson percebe o clarão intenso que vem de fora e sente o ar morno soprado de lá. Dá uns passos para trás, leva a mão ao queixo, sente a barba mal feita e observa pensativo cada canto do cubículo onde se encontra. Veste-se lentamente, coloca o óculos olhando a janelinha da porta e ouvindo um burburinho intenso. Senta na cama de tábua e palha, suspensa por correntes, laptop no colo. Já sabe o que lhe espera. A porta se abrirá em instantes e Gerson ouvirá os gritos elnouquecidos de uma multidão. Será preciso sair do quarto e entrar na arena. Talvez sobreviva mais um dia.

18 de julho de 2012

Cicatrizes

Adélia tem razão. A redenção encontra-se na capacidade do homem fazer florescer profunda gratidão dentro de si, justamente  no momento solitário em que percebe tudo que possivelmente não valeu à pena. Na escuridão do instante em que lucidez suficiente nos revela que não passamos de um fiapo miserável de sensações e sentimentos, quando enfim damo-nos de cara com nossa fragilidade e nenhuma virtude resiste à dor dessa descoberta, é aí que se revela - e não num momento de vitória, num instante de conquista - a redenção daquele que, inexplicavelmente, encontra improváveis motivos para agradecer.

A redenção, quando a vida desequilibra na corda bamba - e ela haverá de desequilibrar, disso não resta nenhuma dúvida - é revelada àquele que percebe que os detalhes mais banais, mais corriqueiros, mais inócuos, mais irrelevantes, mais triviais, mais ordinários, estão inundados de beleza, transpirando graça, revelando presença, embebidos no sagrado e suave sopro do amor e da providência. Como produto de sincera observação retrospectiva, brota gratidão imensa pelo que, tempos atrás, não fora nada nem tivera valor algum.

Quem percebe a enormidade da beleza que há naquela insistente rachadura na parede, no bolor de um casaco que sai do armário para receber as primeiras lufadas do inverno, no muco que escorre do nariz de um menino de rua, numa semente seca, num banho quente ou num copo de água fresca, haverá de sobreviver, apesar das cicatrizes, aos impiedosos solavancos que a vida nos reserva.

E as cicatrizes serão belas.


Bendito
(Adélia Prado)

Louvados sejas Deus meu Senhor,
porque o meu coração está cortado a lâmina,
mas sorrio no espelho ao que,
à revelia de tudo, se promete.
Porque sou desgraçado
como um homem tangido para a forca,
mas me lembro de uma noite na roça,
o luar nos legumes e um grilo,
minha sombra na parede.
Louvado sejas, porque eu quero pecar
contra o afinal sítio aprazível dos mortos,
violar as tumbas com o arranhão das unhas,
mas vejo Tua cabeça pendida
e escuto o galo cantar
três vezes em meu socorro.
Louvado sejas porque a vida é horrível,
porque mais é o tempo que eu passo recolhendo despojos,
– velho ao fim da guerra como uma cabra –
mas limpo os olhos e o muco do meu nariz,
por um canteiro de grama.
Louvados sejas porque eu quero morrer,
mas tenho medo e insisto em esperar o prometido.
Uma vez, quando eu era menino, abri a porta de noite,
a horta estava branca de luar
e acreditei sem nenhum sofrimento.
Louvado sejas!


Veja também:
No olho de quem olha

16 de julho de 2012