7 de outubro de 2013

No inferno [11]


11.

Abud aproveitou o que pôde da geladeira, depois refestelou-se no sofá e procurou algo interessante na imensa TV da sala de estar. Zé Augusto teve um dia corrido mas conseguiu resolver pouco do que pretendia. Estava confuso, e ter deixado Abud sozinho em sua casa começou a parecer-lhe uma imensa estupidez. Voltou bem mais cedo do que programara e encontrou Abud dormindo no sofá, com uma bandeja de bolachas, queijos e pipoca no chão e uma garrafa de vinho vazia na mesa de centro. Vê-lo em casa já foi um alívio, pois temia não encontrar nem o acidentado nem alguns objetos de valor. Comeu alguma coisa na cozinha e foi tomar banho. Quando apareceu novamente na sala, Abud já acordara e lia uma das revistas espalhadas no balcão da TV.

"Passou bem o dia?", perguntou Zé Augusto enquanto olhava para os restos de comida e pegava a garrafa de vinho na mão.

"Maravilhosamente bem", respondeu Abud, sem nenhum constrangimento. "Quase já não sinto dor. E você, aproveitando bem o inferno?"

Zé Augusto franziu a testa e, olhando fixo para Abud, respirou fundo e sentou-se na mesa de centro, segurando firme a garrafa de vinho com a mão esquerda, enquanto o indicador direito deslizava girando na boca da garrafa. "Que raio de inferno é esse? Aqui vai tudo bem. Não tenho do que reclamar. Mas passei o dia com imagens estranhas pipocando na cabeça. De quartos escuros, vielas estreitas, cheiro de mofo. Aquilo tinha muito mais cara de inferno que isso."

"Você já passou por momentos ruins aqui, Zé. O inferno é assim. Te dá um gás pra você ficar todo empolgado, depois desce o cacete quando você menos espera" e enquanto falava ia mordiscando alguns pedaços de queijo que sobraram na bandeja. "Você pode passar mais um tempo aqui nessa piração, todo feliz com seu sucesso, mas vai chegar a hora em que os dias e a badalação passarão voando e, se tudo correr bem, só lhe restará o quarto cinza" e levantou caminhando na direção da geladeira, Zé Augusto acompanhando com os olhos.

"Se tudo correr bem? O inferno é o quarto cinza, cacete. Não isso aqui. É só eu tomar cuidado para não ir para naquele quarto."

"É aí que você se engana", continuou Abud com a cabeça enfiada dentro da geladeira, "o quarto cinza é sua salvação. Mas não adianta nada eu tentar convencê-lo disso. Sei que parece um absurdo. Já disseram uma vez que é loucura pra quem não crê, pra quem não vê, pra quem não percebe", e tirou da geladeira um pote de azeitonas. "Sua visão da realidade agora está distorcida, contaminada por esse inferno onde você se meteu. Mesmo nos momentos em que você finalmente se percebe numa roubada e acaba querendo algo diferente para si, não consegue ver a beleza que há do lado de fora. Para você é cinza e escuro lá e aqui é festa. Mas isso é uma percepção afetada, distorcida, contaminada. Além disso, você ainda não conseguiu se livrar do medo de perder o que tem aqui. Enquanto esse medo não sumir, o quarto cinza seguirá sendo cinza aos seus olhos."

"Então não é cinza aos seus? Eu lembro de já ter tido medo do inferno em uma ou outra ocasião, mas já não tenho mais faz tempo."

"Tem muita gente com medo de ir para o inferno, mas é sempre daquela caricatura religiosa de inferno cheio de diabos vermelhos e tridentes. O avesso do inferno é o amor e amor encerra o medo. O seu problema, Zé, é o problema da humanidade. Não o medo de ir pro inferno, mas o medo de deixá-lo, de ter de abrir mão dele. É só o que tenho a dizer por enquanto, Zé. Daqui pra frente é contigo. Estarei no quarto cinza se você voltar pra lá." Abud levantou-se, encheu a mão de azeitonas e saiu mancando, ainda doído pelo atropelamento.



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Continua...

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2 comentários:

  1. Empolgante história Tucco. De infinita reflexão de valores físicos e espirituais. Parabéns! Afonso.

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