3 de fevereiro de 2014

Travessia

Seria um desatino cruzar aquele rio naquelas circunstâncias. O nível da água subia visivelmente e o negrume das nuvens engolia o horizonte sem sombra de saciar-se. No entanto, não havia a menor chance de voltar dali, debaixo daquela tempestade. Foram quatro dias de marcha pesada cruzando vales e selas de um relevo inclemente até chegar à margem do Khalungwa. Permanecer ali esperando o temporal dispersar seria uma possibilidade viável, se houvesse esperança de que ele fosse de fato dispersar. As notícias que vieram via rádio desde aquela manhã eram terríveis. A tempestade vinha varrendo tudo que se lhe opunha e trazendo atrás de si uma frente fria tão intensa que o número de mortos já passava das centenas. Do lado de lá, as cavernas de Rippenang mantinham a boca aberta e convidativa. Seria possível alcançá-las em pouco mais de 2 horas de passos largos e, concluímos rapidamente, era essa a única opção que tínhamos.

Em seu nível normal, o largo rio, apesar da forte correnteza, nos alcançaria somente o meio da cocha. Agora já era difícil prever. Avançando muito além do leito normal, as águas turbulentas carregavam avidamente galhos e pedras em um estrondo incessante diante de nossos olhos aterrorizados. Concluímos que seríamos inevitavelmente arrastados pela correnteza e caminhamos o máximo possível rio acima para tentar sair do outro lado perto da clareira que permanecia em nossa memória desde que cruzáramos o rio pela última vez, cinco anos atrás. Precisávamos evitar ao máximo ser arrastados muito abaixo, para encontrar a margem oposta antes da garganta rochosa que funcionaria como contrafortes de um castelo impenetrável condenando-nos à morte. Cerca de quinhentos metros nos separavam das paredes de rocha e o tempo que perdíamos subindo o rio para nos distanciarmos delas, era o tempo precioso em que o volume de água não cessava de erguer-se e esparramar-se pelas margens ampliadas desse rio esfomeado.

Abrimos as mochilas rapidamente e esvaziamos o máximo que pudemos, mantendo dentro delas somente itens de emergência uma muda de roupa seca bem embalada e alguma comida. Corremos entre tropeções e escorregadas com os olhos vagando entre o leito do rio ao lado, as nuvens negras à frente e a garganta rochosa abaixo, e já sentindo as primeiras gotas pesadas de água ferir os olhos. Budheng ia à frente e decidiu em um momento rápido que alcançara o ponto de sua travessia. "Eu vou aqui", berrou numa mistura de ousadia e horror, e virou à direita lançando-se perpendicularmente ao rio com convicção e fúria. Estanquei apavorado, acompanhando meu colega com os olhos e sem saber se ia atrás ou aguardava para acompanhar seu desempenho. A força da água que berrava em seus tornozelos derrubou-o duas vezes antes mesmo de alcançar os joelhos. Quando chegou à cintura, um galho enorme emaranhou-se à ele derrubando-o definitivamente. Ainda não estava nem perto do meio do rio. No meio da turbulência era possível ver seus braços debatendo-se freneticamente na tentativa desesperada de conduzir o corpo à margem segura a tempo. Com as ondas altas formadas pela turbulência das águas, perdi o galho e o amigo de vista. No instante seguinte me vi caminhando na direção da outra margem esforçando-me ao máximo para manter os pés firmes no solo rochoso enquanto a água tentava varrer-me com ela. Mantive os olhos firmes rio acima, tentando livrar-me dos troncos e galhos que vinham carregados pela correnteza. Um tronco fino e pesado martelou com força meu joelho e mergulhei nas águas turvas pela primeira vez. Dali em diante foram vários mergulhos, um seguido do outro, entre passos largos e tropeções. Cada tombo seguido de goles de água barrenta e açoitado pela angústia de erguer a cabeça e respirar, a agonia de firmar os pés no chão firme e lançar o corpo à frente e o desespero de ver os contrafortes de rocha aproximando-se enquanto a outra margem ainda permanecia assustadoramente distante.

Ainda consegui ver Budheng erguendo-se à salvo na margem oposta antes de afundar mais uma vez e bater violentamente a cabeça em um bloco de pedra no fundo do rio. Mal tive tempo de alegrar-me por ele. Senti somente o solavanco violento e ouvi o barulho seco do impacto. Não houve dor. No instante seguinte mão conseguia mais perceber se estava dentro ou fora da água e isso parecia não fazer nenhuma diferença. A pancada livrou-me instantaneamente de toda ansiedade e medo. Por um longo e doce momento, sentia como se estivesse flutuando na escuridão silenciosa e calma do espaço, ou nas profundezas abissais do oceano.

Cruzar o rio naquelas circunstâncias, definitivamente, fora um desatino.

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