22 de agosto de 2014

A ausência do Deus presente

A ausência do Deus presente
Há entre os cristãos (especialmente os de linha protestante/evangélica), uma dificuldade enorme de lidar com a ausência do Deus presente por eles anunciado. A maior parte do mundo evangélico brasileiro contemporâneo prega e busca esse Deus que está sempre à disposição. Evidentemente há uma dificuldade enorme de encontrá-lo de fato nessa forma de Deus-que-me-serve-sempre-que-preciso, o que acaba gerando uma inevitável reação. Os cristãos que julgam servir o Deus presente acabam, uma hora ou outra, criando mentalmente respostas às suas demandas, enganando a si mesmos quando as atribuem à Deus.

Essas respostas podem ser conscientemente criadas ou não.

Quando são conscientes, costumam ser fruto de hipocrisia religiosa - preciso mostrar aos outros que Deus está comigo, mesmo que não esteja. É uma reação extremamente comum especialmente entre aqueles que tem alguma posição (ou pretensão) de liderança entre seus irmãos. Esses caras começam com uma manipulaçãozinha 'inocente' para legitimar sua própria pregação do Deus presente, e terminam criando monstros enormes dentro de si. Tornam-se lobos que alimentam-se de mentiras.

De outro lado, quando as respostas criadas são inconscientes, elas são fruto de um desejo enorme de ser tão especial quanto aquele líder que demonstra ter sempre Deus consigo (que é, evidentemente, o cara descrito no parágrafo acima), dirigindo cada passo e respondendo cada oraçãozinha de forma clara e objetiva. Esses sujeitos conseguem levar a vida nessa ilusão por algum tempo, mas sempre chegam ao inevitável dia em que percebem estar iludidos e tornam-se gente frustrada, fria, esvaziada de vida, oprimida, por perceberem a assustadora ausência do Deus presente que lhes é constantemente apresentado, até [1] cederem a tentação do primeiro grupo e passarem a alimentar seu próprio monstrinho interior ou [2] tornarem-se criaturas de gelo, cínicas quanto à sua fé, ou mesmo completamente descrentes de tudo.

A narrativa bíblica, no entanto, parece apresentar um Deus completamente distinto desse Deus presente. A presença de Deus nas páginas do livrão de capa preta é uma exceção, não uma regra. A bíblia apresenta-se como uma revelação progressiva, evolutiva de Deus. E, nessa evolução narrativa, Deus vai tornando-se cada vez mais ausente, mais sumido. A própria encarnação, que acontece 'na plenitude do tempo', sugerindo essa evolução narrativa, não é uma expansão, mas uma restrição de Deus. Deus reduzido a um único homem no meio da humanidade toda. Evidentemente a sequência da encarnação é a dispersão total de Deus, sua pulverização, que é o supra sumo do sumiço do eterno. A mensagem final é: daqui pra frente é com vocês.

A presença do Deus ausente
Evidentemente esse sumiço está longe de ser um sinônimo de abandono. Deus ainda dá as caras, mas costuma ser de forma tão sutil que só os puros de coração conseguem ver, como o carpinteiro deixou bem claro no seu mais famoso discurso. Eu já vi Deus no sorriso desdentado de um homenzarrão com deficiência mental que derramou sobre mim todo seu amor, suas lágrimas e sua baba quando o visitei no hospital vestido de palhaço. Naquele dia recebi o maior e mais gracioso abraço de toda minha vida. Também vi Deus sujo de lama um dia, e o vi várias vezes nos olhos e sorrisos dos meus filhos. É claro que a maior parte do tempo eu não o vejo, não o percebo. Também sou um canalha egoísta como você, salvo por esses pequenos vislumbres de graça.

O lembrete que quero deixar anotado aqui para mim mesmo é que o Deus que sumiu, diluiu-se em gente e só pode ser encontrado em relacionamentos humanos sinceros e desarmados. Um dia reencontraremos o Deus sumido e ele nos olhará nos olhos e dirá: estive nu e você me vestiu, com fome e repartiu seu alimento comigo, com sede e me trouxe um copo dágua, me convidou para um café, sozinho e me deu um abraço, com medo e me encorajou, fraco e me carregou no ombro.

Ou não.

2 comentários:

  1. Cara muito bom. Aprendo muito com seus textos. São viserais é totalmente provocativos.

    Infelizmente os cristãos estão lendo basicamente pela experiência de concordar com tudo - "sim, é verdade" -, ao passo que a grande Literatura faz-nos parar e pensar: "Nunca havia pensado nisto antes". (Pois a fé é um ato de descoberta, não um pacote de ortodoxia mandado do alto.)

    Abraços.

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