23 de abril de 2014

O universo inescapável do comum

Se você, como eu, sabe que produzimos papel demais no mundo mas mesmo assim gosta mesmo é de ler um bom livro impresso. Se acha aqueles aplicativos page flip mais sem graça que o Rafinha Bastos. Se gosta do barulho do grafite sublinhando uma frase irretocável que jamais será consultada ou de dobrar um canto da folha quando perde o marca página, comece agora mesmo a economizar alguma grana para adquirir o mais novo livro derivado deste inclassificável blog.



Meia-corda - e outras incríveis histórias medíocres de montanha, é um livro que vai libertar você da opressão da performance e lhe encher de orgulho de fazer parte do universo inescapável  do comum, do ordinário, do trivial, do vulgar, banal, corriqueiro... enfim, do medíocre. E isso enquanto atravessa vales, sobe montanhas, decola do alto de serras, despenca em florestas, é alvejado por espinhos venenosos e outras banalidades.

Se você acha que já leu esse livro aqui mesmo no blog, está enganado. Mais da metade das incríveis histórias medíocres é inédita.

O livro está na revisão final e só Deus sabe quando ficará pronto, mas tudo indica que será ainda no primeiro semestre desse ano.

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Meia Corda será lançado pela Editora Grafar que comete a inexplicável insanidade de publicar pela segunda vez um livro meu. O outro, você já deve saber, é o Igreja entre aspas. Logo ambos estarão à venda no saite da editora.

20 de abril de 2014

Poema pascal

Isso está ficando repetitivo, mas simplesmente não consigo evitar. Toda páscoa coloco aqui a mesma música, e de novo, e de novo.

Ressuscita-me
Lutando contra as misérias do cotidiano


É que não existe maior poema pascal que esse.
E não existe nada mais pascal que um poema.

Ressuscita-me
Quero acabar de viver o que me cabe

A poesia da ressurreição chama-se "O Amor", porque não há nada diferente do amor que possa gerar vida. Tragar das sombras o corpo inerte e colocá-lo de novo em pé é o benefício maior do amor que alcança e abraça o desgraçado em uma de suas mortes, e o faz eternamente, e de novo, e de novo.

Clique no play e feche os olhos, prostrado ao chão, em reverência e adoração.





Música e Caetano Veloso sobre adaptação de poema de Maiakovski, na voz de Renato Braz.

16 de abril de 2014

Páscoa é quarto de adolescente

É verdade que o Natal virou o feriado mais famoso do calendário cristão. Mérito maior do Papai Noel e todo aparato comercial em torno dele, é claro, além das férias que acompanham a festividade. Você me dirá que a universalização da Páscoa também é fruto de aparatos comerciais, com seus coelhos e ovos, e eu não terei como negar, mas não é isso que vem ao caso agora.

O que é preciso salientar é que é a Páscoa, e não o Natal, o Grande Evento que virou o mundo de pernas para o ar. Deus entre nós em carne e osso (o Natal), teria sido história razoável para a humanidade não tivesse ele morrido esfolado e solitário em humilhante evento público. É esse o evento que inverte tudo, que revira tudo, que descontrói tudo, que deixa tudo de pernas pro ar, feito quarto de adolescente. O nascimento do menino Deus é belíssimo e cativante. Deus nu e em farrapos na cruz é rude e revoltante.

"Salvou a outros e a si mesmo não pode salvar", é o que diziam, orgulhosos de si, os fariseus ao pé da cruz. E estavam certos. De fato não podia. A cruz não é só Deus em farrapos. É Deus fraco e sem poder. Porque se salvasse a si mesmo, seria o triunfo da força e o consequente fim de sua mensagem de graça e amor irrestritos. Se salvasse a si mesmo, condenaria a humanidade a seguir o caminho do poder, da opressão do forte sobre o fraco. Mas o amor o colocou nessa incrível sinuca de bico: para salvar os outros, não poderia salvar a si.

O amor é o sentimento dos fracos, era argumento recorrente de Nietzsche. E ele não podia estar mais certo. Foi o amor que levou Deus à insanidade de esvaziar-se de si e, portanto, fragilizar-se por completo, tornando-se um de nós e obedecendo até a morte a voz interior que lhe dizia que a vitória do amor faria tudo valer à pena.

Sim, Cristo ressuscitou, mas só depois de haver vivido e morrido. É assustadoramente ridículo ter que afirmar o óbvio mas é, acima de tudo, necessário. Porque seguir o mestre é seguir seus passos enquanto vivo. É portanto, fragilizar-se como ele, para que triunfe o amor.

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PEDRA
Tuco Egg / Gladir Cabral

Eu era pedra e ainda sou
Eu era vidro, eu era seda
Eu era cera, cristal
Quem dera

Eu era pedra e ainda sou

Era menino, era criança
Era esperança, amor
Pudera

Eu era pedra e ainda sou

Eu era hoje, seda e cristal
criança e amor, eu era
e ainda sou

10 de abril de 2014

O brinde e o abraço

Não há no mundo nada mais belo que perdão e reconciliação. Dois homens, cabelos grisalhos, pele sulcada de rugas profundas, frente a frente, relembrando atritos passados e suas consequências e seu afastamento, depositando tudo humildemente sobre a mesa, não sem dor e horror, para despejar sobre eles o jarro do perdão e beber a taça da reconciliação, celebrada em um longo e silencioso abraço. O momento é solene e sagrado, e o pano de fundo que ninguém vê é o céu abrindo-se e despejando luz e graça embalada por desconcertante coros de anjos.

Não é à toa que Tiago afirmou ser morta a fé sem obras. Fé, do ponto de vista dos evangelhos ou, ainda melhor, do ponto de vista do protagonista dos evangelhos, não é nada mais do que uma rendição desarmada, irrestrita e incondicional ao amor. E é precisamente por isso que toda fé genuína é um passo decidido para dentro de uma floresta escura e misteriosa que esconde em si os mais belos cenários e as mais agudas dores. Alegria e dor são duas faces de uma mesma moeda - o amor.

Amor é verbo e verbo é palavra que exprime um fato, uma ação. Se não houver uma ação derivada, não é verbo, não é amor. Evidentemente todas as ações que o verbo amar exprime são essencialmente belas, mas entre todas não há maior, mais dramática e inebriante do que a ação do perdão que se desdobra em reconciliação.

Quando finalmente se abraçam homens que por anos nem se falavam, desce do céu o Reino anunciado pelo carpinteiro.

Perdão e reconciliação é a mensagem central do homem/Deus que deu o passo resoluto e definitivo para dentro da floresta escura do amor e nos chamou a todos para segui-lo em loucura semelhante. Perdão e reconciliação são ato de fé, ação do amor, que arrebenta a frieza de um mundo rancoroso e derrama luz e graça.

E isso tudo começa com Deus anunciando através do carpinteiro de Nazaré que Ele mesmo derrama perdão e reconciliação incondicional, que Ele mesmo, o Santo, o Justo, ao contrário do que anunciam por aí seus pretensos representantes atrás dos púlpitos, em momento algum permite que pecado, qualquer que seja, o demova de sua intenção maior e irrestrita de abraçar e perdoar sempre e de novo... e de novo. Dizer, como disse Paulo em uma de suas cartas, que Deus não leva em conta os pecados dos homens, equivale a dizer que Ele, o Eterno, está pouco se lixando para meus pecados, meu amigo, e, muito pior, me convida a fazer o mesmo em relação aos pecados de terceiros. Isso, evidentemente, não no sentido de que ninguém deve preocupar-se com o mal que meu pecado faz a mim mesmo ou a quem é atingido por ele. O assunto aqui é perdão e reconciliação. Você fez o quê? Disse o quê? De novo? Ok, tudo bem, venha aqui que quero te dar um abraço.

O abraço - perdão e reconciliação - de Deus precede e prescinde arrependimento e é terrível saber que, não bastasse assumir tamanha insanidade para si, o criador parece sugerir que façamos o mesmo. Estamos longe disso, eu sei, mas é esse o Reino que foi proposto. E é por isso que não é loucura afirmar que [1] só não entra no Reino quem não quer e [2] haverá de haver muitos que de fato não querem.

Para entrar no reino será preciso submeter-se à nudez e ao despojamento de quem perdoa e é perdoado.



Tudo isso provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação, ou seja, que Deus em Cristo estava reconciliando consigo o mundo, não lançando em conta os pecados dos homens, e nos confiou a mensagem da reconciliação.
Paulo, escrevendo pra rapaziada de Corinto.