Em abril de 2008 conheci Moacir através de um pedido de socorro. Fiz o que pude naquela época para atender-lhe e lamento que não tenha sido suficiente. Do meu encontro com ele surgiram dois pequenos textos aqui no blog que republico mais abaixo, compilados em um só. Na época em que publiquei o segundo texto, Moacir ainda estava desaparecido depois de abandonar, na calada da noite, a casa de recuperação onde o havia deixado. Uma semana depois da publicação, Moacir apareceu novamente no cafofo precário que o abrigava.
Planejei visitá-lo novamente para conversar, me aproximar, me oferecer como amigo, como irmão. Não tive tempo. Seu corpo foi encontrado entre a urina, o lixo e as baratas do seu esconderijo. Fui ao velório. Foi estranho ver-lhe limpo, bem cuidado, bem trajado. Olhando para o corpo rijo lembrei da última frase que havia escrito, e chorei.
O pequeno cômodo que abriga o corpo inerte luta para manter-se em pé. A única parte da modesta casa que por pouco ainda não ruiu, permanece mergulhada em sombra. Há meses o local foi privado de água e luz, servindo apenas como precário abrigo de ratos, baratas e bêbados. O jovem que jaz desfigurado sobre colchão surrado, regado a cachaça e urina, sabe bem a que se referiu Adoniran Barbosa:
A tristeza é um bichinho
Que pra roer 'tá sozinho
E como róe a bandida
Parece rato em queijo parmesão
Sobre o banco do carro novo o corpo desfigurado do jovem movimenta-se lento e descontrolado. O caminho para a casa de recuperação é longo. Já esteve em três ou quatro. Fugiu de todas. Na última fuga, vagou a pé e descalço, durante oito dias, até chegar novamente ao rude cômodo que ele chamava de "minha casa".
A caminho da esperança, chora, xinga, grita, dorme e não consegue controlar a urina. Na casa, é recebido por anjos que viveram outrora no inferno, mas foram resgatados pelo amor e serviço de semelhantes.
É o início das dores que podem trazê-lo de volta à vida.
Mas ainda que às portas da liberdade, permanecia atado a pesadas correntes. Preso às docas, acorrentado ao cais, exalando cheiro de peixe e excremento de aves, o jovem mal conseguia abrir os olhos. A claridade do sol refletindo sobre o oceano verde azulado perfurava-lhe os olhos como lâminas afiadas. Sentia náuseas ao ouvir os sons da liberdade e sentir a imensidão do horizonte. Os anjos que o receberam transfiguravam-se diante de sua mente confusa. Eram inimigos. Gente nefasta dedicada tão somente a livrar-lhe daquilo que lhe era mais sagrado - tristeza, solidão e miséria.
Passou seis dias agarrado ao cais, com as costas voltadas para o mar, pragejando contra o sol, a água, o vento e os anjos, alimentando-se de guano, clamando pelo dia em que poderia voltar ao sepulcro fétido que lhe abrigou nos últimos anos.
No sexto dia, libertou-se. Diluiu-se e escoou pelo bueiro. Abandonou o cais sem ter experimentado o mar. Deixou os anjos, desaparecendo da vista de todos. Esvaiu pelos esgotos jubiloso, vitorioso, a caminho da morte.
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