"Ela tava tão bonita (...)
Que esqueci de me vingar"
É um mundo complicado o que nos serve de lar. Vivemos entre terrorismos declarados e velados, praticados em todos os níveis, em constante estado de guerra. Das nações aos casais, das religiões às políticas, dos vizinhos aos desconhecidos que se esbarram no trânsito, nas arquibancadas, na vaga do estacionamento. Das pancadarias às frases sutis. Dos olhares aos golpes de facão. Habitamos um mundo passional com os nervos a flor da pele. Mesmo na beira do roçado, onde a tristeza não vem, um cantador qualquer que apareça sorrateiro, pode levar o sossego à ebulição descontrolada.
É também um mundo cruel, que engole virtudes e as cospe como vitupérios. No caminho de casa existe uma placa onde se lê "salão de beleza". Não há quem discorde que beleza é uma virtude, mas a placa a que me refiro estampa um rosto feminino, de pele branca, olhos azuis, cabelo sedoso, lábios assustadoramente grossos e carnudos, sobrancelhas cuidadosamente desenhadas. E por algum motivo que não consigo compreender, aquela imagem ilustra o conceito de beleza que nomeia o salão. E por motivo ainda mais indecifrável, mulheres fazem fila e agendam horário e pagam caro para entrarem no salão acreditando que saem dali mais próximas da beleza do que entraram.
Quem ouve a música "Vingança", de Francisco Mattoso e José Maria de Abreu (interpretada no final dessa postagem pela minha tia famosa, por ocasião da entrevista que deu ao jornalista Aramis Millarch nos anos 90), deve conseguir com um pequeno esforço, se fechar os olhos, imaginar a figura da mulher que por pouco não desfaleceu nas mãos do homem que a amava e sentia-se por ela friamente traído. É a última estrofe da canção e a mulher que era alvo de ódio e rancor, surge como a imagem encarnada da redenção. A beleza arranca, sem aviso e sem piedade, em um único e certeiro solavanco, a mesquinhez de um homem amargurado, elevando-o à imagem e semelhança do criador que derrama perdão e graça generosamente, e sem poder evitar, ao mais infame dos traidores.
Em uma noite gelada, entre papelões e cachimbos feitos em latas vazias, debaixo de uma marquise da rua XV, Cléverson cobre Iracema com seu único cobertor, delicadamente, para não arcordá-la. E abraça os próprios joelhos, tremendo de frio, sem tirar os olhos de Iracema, que conheceu na rua e aninhou em seus braços. A mulher tem apenas quatro dentes e é mais magra do que parece ser possível. Cléverson também é magríssimo, mas tem o dobro do peso de Iracema. E o dobro dos dentes. Iracema percebe o cobertor e estende a mão sem abrir os olhos, puxando seu homem para perto de si, com um sorriso discreto, para aquecê-lo com seu corpo esquelético.
Em uma ensolarada tarde de sábado, num parquinho no centro da cidade, Lucia e Pedro embalam com cuidado no balanço o pequeno Igor, portador de síndrome desconhecida. Seus olhos são enormes e completamente desalinhados, assim como as orelhas. A cabeça é muito maior que o normal, e os pais precisam sustentá-la com cuidado enquanto balançam o menino, que abre o maior sorriso de sua vida quando sente o vento acariciar seu rosto. Os pais não controlam o riso e logo os três juntos gargalham como nunca haviam gargalhado, por longos minutos, e seguem rindo e gargalhando, de brinquedo em brinquedo, por toda tarde.
Mara é cega, mas sempre que senta no banco de madeira virado para o mar no fim da tarde, e ouve o canto das gaivotas e as risadas dos meninos correndo na areia, e o farfalhar das folhas da árvore que a sombreia, sabe que está diante de uma paisagem assombrosamente encantadora, e chora de alegria pelo privilégio de sentar ali e sentir na pele e nos ouvidos a imensidão da beleza do entardecer.
Cada um tem motivos de sobra para lambuzar-se no visgo amargo do rancor. Mas diante de cada um, diariamente, espetáculos gratuitos de beleza e graça se derramam generosamente. Felizes os puros de coração, porque verão a beleza em qualquer canto, e por ela serão redimidos. Um dia de cada vez.
VEJA TAMBÉM:
No olho de quem olha
Mônica Salmaso tentando interpretar Vingança tão bem quanto Stellinha
Emocionante!!!!
ResponderExcluirBem aventurados os puros de coração, pois poderão ver o belo.
ResponderExcluirLindíssimo texto, Tuco! Sensacional inspiração divina, digna de imiscuir-se nos escritos à mão de CS Lewis! Quase posso dizer "só você para me dar uma alegria literária dessas, aqui neste Brasil de analfabetismos e frustrações mil!". E acredite: ouvir a voz de sua tia me fez lembrar minha mãe, que, ao cantar "o avental todo sujo de ovo, se eu pudesse eu iria outra vez mamãe, começar tudo tudo de novo!", cortando meu coração com as lembranças de um tempo que não volta mais. De fato, estamos agora no tempo do estresse constante, onde ninguém mais se entende, nem mesmo os cristãos. Que o Rei volte logo e o Pai te abençoe em tudo!
ResponderExcluirValeu amigos, bom ler uns comentários no blog de vez em quando. Inda mais de gente fina assim. ;)
ResponderExcluirHolofotes iluminam a libido e o vírus... abração Tuco!
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