30 de outubro de 2018

A Vila e seu Diabo



Um clarão e um estrondo acordaram quase todos no pequeno povoado do interior. Aos poucos os homens saíram das casas no meio da madrugada, entre cochichos desconfiados, procurando a origem do estouro. Da janela da cozinha, Jaciara apontou na direção do Morro do Cego, de onde subia a dança sinuosa de um estranho vapor laranja resplandecido pelo luar. Destacou-se um grupo com lanternas, facões e enxadas que subiu a estrada velha na direção da luz.

Quando chegaram lá, encontraram estrebuchando no chão a estranha criatura que parecia ser a origem daquele fenômeno. Estavam todos apavorados ouvindo os rosnados constantes de uma criança cor de laranja neon, com uma longa cauda, suando à cântaros e emitindo aquele vapor que era visto desde a vila. Ela parecia estar ardendo em chamas, mas não havia ali fogo algum, calor algum. Ocorreu a Telmo, o lenhador, jogar no menino a água que havia trazido para matar a sede. A criança reagiu com um grito e um salto, caindo em pé e mostrando o rosto espantoso e aterrador para o grupo de homens, que recuou imediatamente, mantendo-se em posição de defesa, com facões e enxadas à postos.

A criança não tinha pelos e os olhos eram incrivelmente grandes, com as pupilas enormes dilatadas até deixar ao seu redor apenas um ínfimo filete branco, e projetavam-se para fora do rosto, sobrepondo-se ao local onde deveria estar a cavidade ocular. A boca era longuíssima, indo de orelha a orelha, mas, que orelha? Onde elas deveriam estar havia apenas uma estranha cavidade retorcida. Os homens permaneciam acuados, trocando olhares sem tirar a atenção da pequena criatura que, da mesma forma, os olhava a todos.

“É um diabo”, sentenciaram alguns. Os demais concordaram assustados e recuando mais uns passos, menos Telmo, que permaneceu em sua posição com o olhar fixo na pequena figura bestial. Aos poucos foi parecendo claro que não havia no pequeno ser, apesar da aparência pavorosa, nenhuma postura de hostilidade.

“É um diabo, sem dúvida”, concluiu Telmo, “mas ainda um diabo miúdo. Se o pegarmos agora podemos domar-lhe e fazê-lo nos servir”. Depois de alguns minutos de silêncio e reflexão, os homens assentiram discretamente para Telmo, que aguardava um aval do grupo para tomar uma atitude. Assim que recebeu o aceno, o lenhador se aproximou com cuidado do pequeno diabo, estendeu-lhe a mão, e a criatura deixou-se tocar. Apesar da impressão que causava, a pele do pequeno era gelada como a água que descia do vale do Morro do Cego até a cidade.

Os homens baixaram as armas e o diabo foi levado no colo ao povoado.


* * * 


A comunidade já havia se acostumado com a presença assustadora da criatura. Durante todo aquele ano ele fizera parte do cotidiano da pequena vila. Quando fora deixado na casa de Nicolau, único que dispôs-se a abrigá-lo, o tinhoso tinha o porte de uma criança de 3 anos. Agora, doze meses depois, era do tamanho de um homem feito, mas comportava-se como um menino desengonçado.

Logo nos primeiros dias o pequeno belzebu foi trocando seus grunhidos por palavras e duas ou três semanas depois já comunicava-se com facilidade. O vocabulário, no entanto, apresentava uma estranha característica de seletividade. A criatura assimilara um amplíssimo leque de palavras ríspidas e sabia construir frases de efeito assombrosamente ofensivas, mas não conseguia encontrar formas de expressar afetos. Com olhar azedo disparava impropérios a torto e a direito, ofendendo toda sorte de habitantes da pequena comunidade. Aliás, quase toda. O pequeno destacamento de homens que trouxera o cramunhão da floresta passara, desde aquele dia, a reunir-se com frequência na casa de Nicolau. A eles a criatura não ofendia e chegava mesmo a prestar-lhes favores, ainda que com bastante discrição.

O dia-a-dia na vila não teve nenhuma mudança radical, mas pequenas coisas antes incomuns passaram a tornar-se corriqueiras. A cordialidade dos habitantes passou lentamente a dar lugar a desconfiança. Pequenos rancores encontraram lugar entre amigos de longa data. O diabo seguia disparando disparates como se portasse uma metralhadora.

Alguns membros da comunidade quiseram calar o jovem diabo, mas o grupo de Nicolau levantou-se para defender o capeta argumentando insistentemente que o que ele dizia eram só palavras, coisa dita da boca pra fora, que se poderia tolerar as palavras desde que se lhe domassem o comportamento. Mas o que houve de fato foi que aos poucos, a começar pelo grupo de Nicolau, a própria comunidade passou a acreditar nos vitupérios repetidos pelo cramunhão e os repetiam insistentemente uns aos outros.

Quando um grupo fincou o pé, exigindo o silêncio de satã em nome do bem da comunidade, o sete pele passou para um estágio de agressividade maior, e repassava ao grupo dos que o defendiam, frases de efeito que incitavam a eliminação sumária de seus opositores - e as frases eram repetidas em coro, a plenos pulmões ainda que os alvos dos gritos fossem vizinhos, amigos ou irmãos. A aldeia via-se tomada por portentoso e descontrolado alvoroço, mas uma parte dela se mantinha reclusa, evitando emitir opinião ou tomar partido.

Em poucos dias as tensões eram tantas que foi inevitável convocar a todos para uma discussão que pusesse termo ao caos. Os moradores da vila encontraram-se num fim de tarde na Praça da Fonte e entre gritos, argumentos, afrontas, ofensas e insultos decidiram por maioria eleger o Diabo como seu líder e calar a oposição usando de quaisquer que fossem os meios. O Diabo assumiu seu posto sob os aplausos da multidão e o horror da minoria dos que queriam a vila livre de satã. Enquanto a vila começava uma grande festa, cercando a minoria do voto vencido, cirandando ao seu redor e apontando-lhes os dedos, o grupo de Nicolau saía eufórico pegar os facões e enxadas para iniciar a faxina em nome da paz.

4 comentários:

  1. Meu Deus!!! Que horror!!! Ainda bem que é apenas um conto de ficção, de terror... quero dizer, É, né?

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  2. Do Sete-Pele a gente nem esperaria outra coisa. A gente que trouxe pra vila, alimentou e não ficou de olho quando deveria. O que dói é ver os aldeões em quem você acreditava (acredita) empunhando facão bem faceiros.

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