Seu Adílio mora numa grande casa de madeira, azul, com dois pavimentos e telhado formando um ângulo agudo, construída pelo seu avô.
Na primeira vez que fui em sua casa, já me tratou como velho conhecido. E depois de muita prosa, terminou dizendo que naquela casa as trancas ficam do lado de fora - sua maneira de dizer que eu seria bem-vindo na hora em que quisesse retornar.
É difícil acreditar que aquele senhor, forte e bem disposto, seja bisavô. Algumas vezes em que fui procurá-lo, soube que estava fora por alguns dias, numa cavalgada por alguma antiga trilha de tropeiros. Ouço suas histórias com atenção. Sobre cavalgadas, ataque de porco, cobras, feitos de seus antepassados, coincidências e acidentes. Nelas, ele pode ser um espectador, a vítima, ou um perfeito trapalhão. Ainda não ouvi uma em que seja o herói. Conta sobre um novo pedaço de mato que conheceu na última cavalgada como um professor de história da arte falaria sobre uma visita ao museu de Louvre.
O Edi tem seus vinte e poucos anos. Baixo e magro, com cara de moleque. Mistura o sotaque de polaco típico da região com um caipirês interessante, temperado com uma dificuldade particular com alguns fonemas, o que faz com que quem não esteja habituado não consiga entender metade do que diz. Com uma enchada na mão é um pequeno furacão. Constrói cercas, revolve a terra, roça, carrega pedras, faz aterros, trata animais, sempre como se recebesse por tarefa executada e não por dia trabalhado. O irmão mais velho já o convidou algumas vezes para trabalhar com ele no mercado, mas ele sempre declina. Imagine só, diz ele, trabalhar o dia todo dentro de um prédio, sem liberdade, sem ver o sol. Aos domingos se arruma com botas lustradas, chapéu, monta sua bela égua cuidadosamente escovada logo cedo e vai atrás das festas da região. Se bebe um pouco além da conta, não há com que se preocupar. A égua sabe o caminho de volta.
Seu Faustão é daqueles que ri à toa. As conversas com ele são sempre temperadas com gostosas gargalhadas, que fazem balançar seu barrigão! Ganhou um bom dinheiro com alguns investimentos certeiros, mas anda por aí de fusquinha branco e chinelos havaiana. Outro dia veio com seu trator enterrar a Morena, nossa querida égua que morreu repentinamente. Viu a choradeira das crianças e a tristeza no olhar da Sil e no meu. Mas não resistiu em comentar: "É, é triste perder um animal. Mas pra vocês, era só um bicho de estimação. Triste mesmo é quando tenho que enterrar a única vaquinha da família, aquela que dá o leite de todo dia".
É estranho como dois mundos existam tão próximos. Transito entre os dois diariamente. E constantemente me sinto perdido entre eles. Parece que não faço parte nem de um, nem de outro. No competitivo ambiente empresarial, sou o cara esquisito que mora no mato, dirige uma Rural velha e enlameada e cria coelhos. Entre os vizinhos, sou o moço que "trabalha na TV", cria bichos mas não os come, tem terra mas não planta.
Nada é perfeito em nenhum dos dois. Em ambos há alegrias e tristezas, trabalho e suor (seja esse suor real ou apenas figura de linguagem). Mas a simplicidade do mundo do Seu Adílio, do Edi, do Seu Faustão e tantos outros me comove. Gostaria muito de passar mais tempo nele.
Ali a vida me parece mais real. Suor é suor mesmo. Calos nas mãos também. O sol queima, o vento refresca, a chuva molha. As rugas são resultado da pele ressecada e não de eternas preocupações.
As pessoas morrem de coice, não de stress.
Sinceramente? Acho que preferia morrer de coice.
É rapaz. O mundo dos seus vizinhos me comove tb.
ResponderExcluir"Perdido entre eles." Essa é a grande sacada, dolorida, difícil, mas, sem dúvida a melhor. Você tem o privilégio de conhecer dois mundos, e paga o preço por ele.
ResponderExcluirQuanto ao coice, fica esperto que esse há de demorar...nonspin