18 de julho de 2012

Cicatrizes

Adélia tem razão. A redenção encontra-se na capacidade do homem fazer florescer profunda gratidão dentro de si, justamente  no momento solitário em que percebe tudo que possivelmente não valeu à pena. Na escuridão do instante em que lucidez suficiente nos revela que não passamos de um fiapo miserável de sensações e sentimentos, quando enfim damo-nos de cara com nossa fragilidade e nenhuma virtude resiste à dor dessa descoberta, é aí que se revela - e não num momento de vitória, num instante de conquista - a redenção daquele que, inexplicavelmente, encontra improváveis motivos para agradecer.

A redenção, quando a vida desequilibra na corda bamba - e ela haverá de desequilibrar, disso não resta nenhuma dúvida - é revelada àquele que percebe que os detalhes mais banais, mais corriqueiros, mais inócuos, mais irrelevantes, mais triviais, mais ordinários, estão inundados de beleza, transpirando graça, revelando presença, embebidos no sagrado e suave sopro do amor e da providência. Como produto de sincera observação retrospectiva, brota gratidão imensa pelo que, tempos atrás, não fora nada nem tivera valor algum.

Quem percebe a enormidade da beleza que há naquela insistente rachadura na parede, no bolor de um casaco que sai do armário para receber as primeiras lufadas do inverno, no muco que escorre do nariz de um menino de rua, numa semente seca, num banho quente ou num copo de água fresca, haverá de sobreviver, apesar das cicatrizes, aos impiedosos solavancos que a vida nos reserva.

E as cicatrizes serão belas.


Bendito
(Adélia Prado)

Louvados sejas Deus meu Senhor,
porque o meu coração está cortado a lâmina,
mas sorrio no espelho ao que,
à revelia de tudo, se promete.
Porque sou desgraçado
como um homem tangido para a forca,
mas me lembro de uma noite na roça,
o luar nos legumes e um grilo,
minha sombra na parede.
Louvado sejas, porque eu quero pecar
contra o afinal sítio aprazível dos mortos,
violar as tumbas com o arranhão das unhas,
mas vejo Tua cabeça pendida
e escuto o galo cantar
três vezes em meu socorro.
Louvado sejas porque a vida é horrível,
porque mais é o tempo que eu passo recolhendo despojos,
– velho ao fim da guerra como uma cabra –
mas limpo os olhos e o muco do meu nariz,
por um canteiro de grama.
Louvados sejas porque eu quero morrer,
mas tenho medo e insisto em esperar o prometido.
Uma vez, quando eu era menino, abri a porta de noite,
a horta estava branca de luar
e acreditei sem nenhum sofrimento.
Louvado sejas!


Veja também:
No olho de quem olha

2 comentários:

  1. Grande e doído aprendizado.
    Um abraço, Tuco!
    Sempre bom estar aqui.

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    1. Valeu Patrícia. Sempre bom ter qlguém por aqui :)

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