5 de outubro de 2022

Valores Cristãos




A força da batida insistente na porta me assustou. Abri uma fresta e perguntei quem era. Um homem grande, marombado, de camisa social, calça jeans e sapatênis respondeu “meu nome é Valores Cristãos”, forçou a porta me jogando pra trás e entrou. Eu tentava, assustado, me recompor e entender o que tava rolando, mas antes que pensasse em qualquer coisa ele emendou, deixando o corpo pesado desabar no sofá:

— Soube que vc tá precisando urgente de mim. Pelas coisas que você tem dito, pelas pessoas que tem apoiado, houve um consenso geral de que vc tá precisando muito de mim.

— Sério? Rapaz, não tinha sentido falta não. Achei que a gente tava junto.

O cara endireitou a coluna, sentou na ponta do sofá, acendeu um cigarro sem tirar o olho dos meus olhos e falou com firmeza.

— Você? Junto com Valores Cristãos? Tu tá comunista, velho, que eu fiquei sabendo.

— Eita, vc fuma? — perguntei, confuso.

— Depende.

— Depende de quê?

— Do tempo, do espaço, da cultura. Já fumei muito. Até meados do século 20 fumei um monte. Depois começou a pegar mal e parei. Mas hoje, aqui, tem ninguém vendo, deu vontade.

— Mas que doidêra. Valores Cristãos não é o mesmo desde a fundação dos tempos?

— Hahaha. Óbvio que não. Tem época que não deixo ter cabelo comprido, depois só pode cabelo comprido, barba não pode, depois é obrigado, uma hora só vestido, depois pode calça, depila, não depila, joga não joga futebol, cinema pode e não pode. Teve uma época que eu dizia que a terra era o centro do universo, quem discordasse mandava queimar na fogueira. Era engraçado. Pessoal berrando enquanto o corpo ardia. Depois proibi dizer que a terra tinha bilhões de anos, evolução das espécies, essas coisas. A terra foi criada em sete dias, eu gritava. Nesse tempo já não dava pra queimar na fogueira, mas chamava de herege, excomungava, essas coisas.

— Que horror.

— Também acho. Um horror discordar de mim. Ah! Lembrei de uma boa. Todo mundo batizava bebê, daí apareceram uma chatos dizendo que só podia batizar adulto. Sabe o que fiz? Mandei afogar os caras. Em vez de fogueira, mandava matar afogado, pra aprender a não me contradizer. Criativo, né?

— Jesus…

— Quem? Bom, também não interessa. Tamos aqui pra falar de você. Você tá comunista cara. Dizem que até falou mal da Damares. E defende os gays, as feministas. Endoideceu.

— Mas, cara, que loucura. Cada hora vc é de um jeito.

— Na real eu sou de todo jeito ao mesmo tempo, sacou? Depende. Pra uns eu digo que não pode comer carne de porco ou fazer transfusão de sangue. Pra outros eu digo que isso pode, mas não pode pular carnaval ou fumar, ou beber uma cervejinha. Vou vendo o que cola com cada um e me ajeitando. Mas a grande sacada mesmo é criar uns monstros grandes e juntar todos os grupos em torno dos monstrões. O que emplacou bem atualmente é comunismo, gayzismo, feminismo, essas coisas.

— Mas, velho, isso não tem nada a ver com nada. Jesus ensinou amor, perdão, igualdade, fim de todas as diferenças e hierarquias. Ele disse pra não julgar ninguém, pra considerar o outro superior a si mesmo e…

— Ah, Jesus! Lembrei do maluco. O cara era meio comunista também.— Valores Cristãos falava olhando pra cima, num ponto qualquer do infinito, puxando da memória, enquando o cigarro ia queimando na mão apoiada sobre a coxa —  A gente conversou bastante, tentei explicar pra ele como funcionam as coisas aqui, mas o cara é birrento, cheio de sonhos, utopias. Fiquei 40 dias com ele no deserto e não aprendeu nada. Ele ainda anda por aí, mas tem pouca gente ao redor dele. A multidão mesmo anda comigo.

“É o que vc pensa”, balbuciei baixinho.

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