2 de maio de 2007

Evangelho e cultura

Uma grande dificuldade que o cristianismo tem é se relacionar com a cultura que o cerca de forma pacífica. Reside em nossos corações o medo de perder a fé e ser atacado pelo inimigo que sorrateiramente nos espreita atrás de cada manifestação cultural. Esse mesmo medo se estende para a tecnologia e o conhecimento. Vivemos cercados de medos porque cremos em um inimigo tão forte e inteligente quanto aquele que habita em nós.

Esse medo é particularmente manifesto quando a cultura carrega, explicitamente, religiosidade consigo. Por esse motivo, temos especial dificuldade com as culturas orientais. Coisas como yoga, tai-chi-chuan, do-in e acupuntura, causam arrepios aos cabelos da maioria dos crentes. Inúmeros são os relatos de cristãos que foram influenciados negativamente por essas atividades. Sentiram-se oprimidos, afastados de Deus, bloqueados, depressivos ou agressivos por terem se envolvido com coisas que pertencem aos demônios.

É certo que as técnicas orientais de meditação, relaxamento, medicina e exercícios têm excelentes resultados sobre a saúde do ser humano. Sabe-se que séculos e mais séculos de sabedoria humana estão envolvidos na formação dessa cultura. Mas em nome de Deus (ou do diabo), o cristianismo tem jogado isso no saco da religiosidade demoníaca e mantido uma distância segura desse ‘inimigo’.

A principal questão que se levanta é: até onde vai a cultura e onde começa a religião? É possível aproveitar um sem se envolver com o outro?

Interessante perceber que essa questão era corrente também nos tempos da igreja primitiva. Cultura e religiosidade eram coisas indivisíveis. E, a julgar pelas cartas de Paulo, a comunidade cristã em algumas cidades também sofria desse medo cultural.

"Feliz é o homem que não se condena naquilo que aprova."

Nesse contexto, semelhante ao nosso, Paulo escreve aos romanos (Rm14), ao tratar da necessidade ou não de se abster dos alimentos oferecidos aos ídolos: 'cada um deve estar convicto em sua própria mente'. O argumento dele parece ainda mais ousado quando diz que 'feliz é o homem que não se condena naquilo que aprova' concluindo ainda que 'aquele que tem dúvida, é condenado se comer' (de onde se conclui que a condenação não reside no ato de comer, mas na consciência de quem come). E aos corintios (1Co 8), Paulo diz que, 'em relação aos alimentos sacrificados aos ídolos, sabemos que o ídolo não significa nada no mundo e que só existe um Deus'. Mas, argumenta Paulo, alguns ainda comem alimentos sacrificados como se o ídolo fosse alguma coisa de poder semelhante à Deus e pudesse, de alguma forma, se opor à Ele 'e como a consciência deles é fraca, fica contaminada'. E como o assunto é polêmico e recorrente, Paulo ainda insiste (1Co10.23): 'comam tudo que tem no mercado sem fazer perguntas por causa da consciência'. E mais algumas vezes ele insiste que o problema não está no demônio que a cultura insere no alimento, mas na consciência de quem se alimenta, e pergunta: 'porque minha liberdade deve ser julgada pela consciência do outro?' Ou seja: se estou tranqüilo, de cuca fresca, me deixem comer em paz!

Só nos sentimos seguros entre os muros gelados da nossa instituição religiosa. Lá somos intocáveis. Lá temos o corpo fechado.

Mas nós temos muita dificuldade de agir com liberdade nessas questões. Nosso medo continua - mas se eu for lá na aula de yoga e isso for mesmo coisa do diabo? - Parece que ele vai desapercebidamente, grudar na minha "canguta", como naquele famoso romance cristão. E vivemos à sombra do medo. E só nos sentimos seguros entre os muros gelados da nossa instituição religiosa. Lá somos intocáveis. Lá temos o corpo fechado.

Engraçado é que fomos chamados para ir ao mundo, mas poucos têm essa coragem. Se nos falta coragem, se somos fracos, como diz Paulo, é porque nos falta a essência daquilo que Jesus pede de nós – amor. Porque o amor lança fora o medo. E se foi para liberdade que Cristo nos libertou, que liberdade é essa que nos faz temer o ataque do inimigo em cada canto da cultura que nos cerca?

Porque vocês se submetem a regras: não manuseie! não prove!, não toque!?

Paulo prossegue na luta de libertar o cristão desse medo. Aos colocensses (Cl2), ele pede que 'não permitam que ninguém os julgue pelo que vocês comem, ou bebem, ou com relação a alguma festividade religiosa ou à celebração das luas novas ou dos dias de sábado'. Todas essas coisas envolviam, naquele tempo, uma miscelânea indivisível de religiosidade e cultura, mas Paulo pergunta sarcasticamente: 'porque vocês se submetem a regras: não manuseie! não prove!, não toque!?' E ainda termina provocando: 'essas regras têm, de fato, aparência de sabedoria, com sua pretensa religiosidade, falsa humildade e severidade com o corpo, mas não têm valor algum para refrear os impulsos da carne'. Ele parece insistir que o problema está em outro lugar, muito mais próximo de nós do que a cultura. Está dentro, escondido num canto escuro do nosso coração evangélico e bem comportado.

Nós insistimos em que o viver santo carece de abstermo-nos do mal e, por isso, arranjamos algumas formas de conduta que possam ser julgadas como más, para podermos nos abster delas e termos aquela bela sensação de santidade. No entanto (Cl3), 'povo de Deus, santo e amado', se queremos um viver santo, 'revistam-se de profunda compaixão, bondade, humildade, mansidão e paciência. Suportem-se uns aos outros e perdoem as queixas que tiverem uns contra os outros. Acima de tudo, porém, revistam-se do amor, que é o elo perfeito'.

Porque o poder de atuação do mal sobre nós reside em nossas dúvidas, temores e medos.

Portanto, no que diz respeito à cultura que nos cerca, deixemos de nos preocupar com os demônios que habitam escondidos pelos cantos. Porque toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto. E a cultura oriental, bem como toda forma de cultura, está repleta de boas dádivas, que geram saúde, sabedoria, capacidade de concentração e relaxamento. Desfrutemos dessas boas dádivas com nossas consciências tranqüilas. Porque o poder de atuação do mal sobre nós reside em nossas dúvidas, temores e medos.

E quando ouvimos aquele testemunho do rapaz que fez acupuntura e se viu bloqueado em relação ao seu relacionamento com Deus? Creio que nesses casos, o crente se sente, no canto do seu quarto, sozinho diante de Deus, como a criança que foi pega por ter roubado doces. A consciência do sujeito já o havia condenado muito antes da primeira agulhada. E, como a consciência dele era fraca, ficou contamidada.

Sim, Paulo nos exorta a cuidarmos dos fracos. Mas esse cuidado inclui, certamente, o ensino e encorajamento para fortalecê-los. E não o amparo de uma mãe superprotetora que carrega galos crescidos debaixo das asas. Por isso, como Paulo (Ef3), devemos orar à Deus 'para que ele os fortaleça no íntimo do seu ser com poder, por meio do seu Espírito'.

6 comentários:

  1. Muito batuta!
    Essa do corpo fechado foi ótima!

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  2. Batutíssima. Da série das que eu queria ter escrito.

    Mais uma voz a clamar no deserto. Vamos encher essa baíuca :)

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  3. Anônimo4:16 PM

    Frei Tuco, li seu texto seguindo o link no post do Ebeneser.

    Que texto salutar! Faço coro às palavras do Paulo Brabo: gostaria de que eu o tivesse escrito.

    Grande Abraço!

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  4. Solange5:08 PM

    Fantástico texto!
    O que nos aprisiona é a ignorância.
    Tudo nos foi dado por Deus, devemos usufruir com serenidade.

    Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará...

    Em tempo, não gostaria de ter escrito o texto, mas que muito mais pessoas lessem-no.

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  5. Oi Solange. Obrigado.
    Divulgue o texto então. E o blog :-).

    Abraço.

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