26 de abril de 2007

Muros e pontes

A partir do século XV, com o Renascimento, a razão passou a ser a única forma de alcançarmos a Verdade. Esse pensamento foi assimilado pela igreja, e foi nesses moldes que desenvolvemos as teologias modernas. Abraçamos a fé pela razão e racionalizamos seu conteúdo. Criamos normas, nos separamos em grupos distintos, desenvolvemos nossas confissões de fé e moldamos nossa vida cristã a elas. Tudo fundamentado em um “racionalismo cristão”.

As conclusões a que chegamos são sempre menores do que as provocações de Jesus.

Essa forma de encarar a espiritualidade não condiz com a forma como Jesus a encarou, viveu e ensinou. Em Mateus 5, Jesus desmonta a racionalização da lei, e a coloca em uma outra esfera, não racionalizável, não descritiva, não sistematizada e indigesta. O grande perigo da racionalização é que ela deseja ser conclusiva e universal. Mas as conclusões a que chegamos são sempre menores do que as provocações de Jesus. Assim, nivelamos nossa vida por esse padrão menor, e nos sentimos satisfeitos – dever cumprido. Ora, nossas conclusões podem até ser boas, mas quando nos habituamos a elas e nos satisfazemos com elas, iniciamos nossa ruína. E como se não bastasse, universalizamos essas conclusões e a aplicamos a toda e qualquer situação. Do conforto de nossas cadeiras ergonômicas, julgamos o mundo pelas nossas convicções. Julgamos a todos baseados na nossa percepção do mundo, e condenamos a todos, menos a nós mesmos.

Jesus mostrou que a lei de Deus não reside na razão, mas no tempo. Não pode ser descrita em documentos eclesiais, mas deve ser vivida em relacionamentos. Ainda que Deus possa ser considerado absoluto (e por conseqüência sua vontade também seja), a aplicação prática desse absoluto na realidade deformada da nossa existência não pode ser absolutizada.

Cosmovisão e “os outros”
A forma mais clara de observar essa questão é diante do choque do Evangelho, tal como o concebemos em nossa realidade ocidental, com culturas diversas. São vários os exemplos dentro da realidade das “missões transculturais” que mostram de forma clara a dificuldade de categorizarmos os ensinamentos bíblicos em moldes universais. A tendência da igreja é acreditar ou, pelo menos, agir como se a Verdade estivesse nela e não em Cristo. A partir desse pensamento a pregação da igreja é ela mesma, suas normas, seus dogmas, suas conclusões. E a conversão acontece quando alguém abraça esses preceitos racionais e conclusivos. Ora, como a razão nos pertence (agimos como se pertencesse), cremos, ainda que desapercebidamente, que temos em nós algo que nos faz melhores que os “outros”. Esse pensamento acontece dentro e fora da igreja e é a origem das hierarquias e classes sociais, dos conflitos de grupos, das guerras, das disputas de poder, da dicotomia clero/laico e de muitos outros problemas humanos.

O Evangelho, no entanto, despedaça os degraus que nos colocam em diferentes níveis. Nem Jesus considerou que o que ele era, era algo a que deveria apegar-se (Fp 2:6-7). E ele sugere ainda que nem mesmo a diferença entre salvos e perdidos é algo assim tão claro como queremos crer, quando faz parecer que nem um nem outro terão necessariamente consciência de sua condição diante do Filho do Homem (Mt 25:37;44).

Oficial X Popular
Tanto a racionalização como a percepção do “outro” são responsáveis pela divisão clara que se estabelece em todas as esferas do comportamento humano entre o oficial e o popular. O pensamento racional e sistemático é insuficiente para permear as questões práticas de nossas vidas. A resposta para nossas necessidades existenciais não provém da razão, mas da experiência. Com a polarização natural entre eu e o outro, as questões de nossa espiritualidade tendem também a polarizar-se entre o oficial e o popular. O conteúdo do oficial é ordenado pela razão, pela classe culta, pela teologia. Mas esse conteúdo é impessoal e distante das necessidades humanas. O resultado é que o popular concorda com o oficial, mas vive um experimentalismo prático e funcional independente do aval do conteúdo ‘aprovado’. Ora, entre um e outro, não existe o certo e o errado. Ambos acertam, ambos erram. A dificuldade aqui, a meu ver, reside em duas questões centrais.

1. Outro. Como já comentado, a percepção do outro como alguém que não trilha o caminho correto (que é, evidentemente, o meu caminho) é crucial. Desprezar o experimento em favor da razão é tão absurdo quanto o contrário. O nivelamento do outro diante de mim é o primeiro passo para que haja uma ponte entre os dois extremos. E a motivação não pode ser fazer com que o outro suba alguns degraus até o meu nível, mas que eu suba alguns degraus até o nível do outro, considerando-o, assim, superior a mim mesmo. Esse nivelamento é a base sobre a qual deve se construir o restante da ponte.

2. O sacerdócio é universal. Creio que o princípio da dicotomia “oficial x popular” são as dicotomias “clero x leigo” e “sacro x profano”. A forma como a igreja trabalha hoje é extremamente arraigada em uma diferenciação entre o que ministra a palavra e o que a recebe. Ser ordenado como pastor (ou presbítero, ou ministro de louvor...) significa, invariavelmente, deixar de pertencer ao grupo dos humanos e adentrar em uma nova casta. E nós cremos que, de alguma forma, dependemos dessa casta para desenvolver nossa espiritualidade. Em alguns grupos, essa casta está sobre constante análise, debaixo de constantes expectativas e julgamentos. Em outros, a casta tem em si aura de santidade. Suas palavras são sopros divinos, seus sonhos, sonhos de Deus, suas loucuras, visões proféticas. Mas em ambos os grupos, existe um mediador entre homens e Deus. Alguém responsável pela minha espiritualidade, pelo meu crescimento, pelo meu relacionamento com Deus. Da mesma forma, cremos que Deus só dá o ar da sua graça na igreja, e desprezamos pessoas e culturas ‘externas’. Criamos o universo cristão, e damos a ele ares de santidade simplesmente pelo título que carrega. Da mesma forma, condenamos à perdição manifestações da graça e da beleza de Deus, unicamente por não carregarem em si o título salvífico de “cristão”.

***

Tenho a impressão que, para construir uma ponte sólida que una o oficial e o popular, temos que demolir o muro entre clero e leigo, entre sacro e profano, entre eu e outro. Viver nossas vidas de igual pra igual com todos os que estão ao nosso redor, seja dentro da “igreja” ou fora dela. Assumir a responsabilidade de nossa espiritualidade para nós mesmos. Desmamar. Andar pelas próprias pernas.

Mas isso só será possível se aqueles que hoje são os “responsáveis” pela nossa espiritualidade abrirem mão dessa responsabilidade. Abrirem mão do poder que têm, e que seduz, de gerir almas. O povo deve ser ensinado que não há ofícios que exijam a presença de alguém ordenado para que possam ser sacramentados. O sacerdócio é universal.

É possível que, diante de uma situação como essa, muitos dentre o povo queiram abandonar as fileiras. Porque o que se quer é o mimo, o colo, a papinha. Mas eu creio que enquanto esse muro estiver entre nós, as pontes não poderão se erguer.

“O muro caiu, olha a ponte
Da liberdade guardiã
O braço do Cristo – horizonte
Abraça o dia de amanhã”
(Maurício Tapajós)

Um comentário:

  1. "Mas isso só será possível se aqueles que hoje são os “responsáveis” pela nossa espiritualidade abrirem mão dessa responsabilidade. Abrirem mão do poder que têm, e que seduz, de gerir almas."

    Abrir mão do poder? Alguns prefeririam a morte, mano.

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